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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.47 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2013

 

ARTIGOS TEMÁTICOS: MEDO

 

"Tão negra quanto a madeira desta moldura..."

 

"As dark as the wood of this frame..."

 

"Tan negra como la madera de este marco..."

 

 

René DiatkineI; Claude AvramII; Tradução Claudia Berliner

IRené Diatkine (1918-1997) era Professor doutor, Pedopsiquiatra e Psicanalista da Societé Psychanalytique de Paris SPP
IIPsiquiatra e psicanalista da Societé Psychanalytique de Paris SPP - França

Correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo investiga, por meio da psicanálise, como um conto de fadas ("Branca de Neve") possibilita, à maneira de um sonho, evocar fantasias inconscientes geradoras de angústias próprias ao complexo de Édipo, permitindo, assim, sua elaboração psíquica. Parte-se das seguintes perguntas: por que as crianças se interessam pelo conto? E por que os adultos se emocionam frente a ele? Valendo-se da simbologia que permeia o conto, além de sua forma e conteúdo específicos, evidencia-se o combate de vida e morte presente naquele que se vê sujeito de seus próprios desejos e de suas respectivas realizações alucinatórias, particularmente quando dirigidos à imagem materna, como no caso de Branca de Neve.

Palavras-chave: conto de fadas; elaboração psíquica; função narrativa; símbolos; conflito das pulsões de vida e morte; complexo de Édipo.


ABSTRACT

This article investigates, by means of psychoanalysis, how a fairy tale ("Snow White") enables one, in the same way as a dream, to evoke unconscious fantasies which generate anxieties pertaining to the Oedipus complex, allowing, as such, psychic elaboration. The following questions are taken as starting points: why are children interested in the story? And why are adults moved by it? Taking the symbolism which permeates the story, as well as its shape and specific contents, the battle of life and death, present in he who sees himself as subject of his own desires and respective hallucinatory realizations, is brought to light. Especially when such desires and realizations are directed to the maternal image, as is the case in Snow White.

Keywords: fairy tale; psychic elaboration; narrative function; symbols; conflict between life and death drives; Oedipus complex.


RESUMEN

Este artículo investiga, mediante el psicoanálisis, cómo un cuento de hadas ("Blanca Nieves") permite, en forma de sueño, evocar las fantasías inconscientes que generan angustias propias del complejo de Edipo, posibilitando, de esta forma, su elaboración psíquica. Se parte de las siguientes preguntas: ¿por qué los niños se interesan por el cuento?, y ¿por qué los adultos se emocionan ante él? Valiéndose de la simbología que impregna el cuento, además de su forma y contenido específicos, se evidencia el combate de vida y muerte presente en aquel que se ve sujeto de sus propios deseos y de sus respectivos logros alucinatorios, particularmente cuando están dirigidos a la imagen materna, como en el caso de Blanca Nieves.

Palabras clave: cuento de hadas; elaboración psíquica; función narrativa; símbolos; conflicto de los pulsos de vida y muerte; complejo de Edipo.


 

 

Introdução

Durante toda sua carreira de psicanalista e de psiquiatra infantil, René Diatkine teve grande interesse pelos contos de fadas e pelo que a eles está associado: a linguagem e seu desenvolvimento. O artigo que aqui apresentamos era o primeiro elemento de um livro que sua morte não lhe permitiu terminar.

Nos anos 70, ele criou em Paris, no décimo terceiro arrondissement, uma instituição, L'Unité de Soins Intensifs du Soir (Unidade de Cuidados Intensivos da Tarde), que acolhia crianças psiquicamente muito perturbadas e culturalmente carentes. Nessa instituição, um espaço importante foi dedicado para a leitura de contos para as crianças, numa oficina coordenada por psicoterapeutas. Foi um laboratório muito estimulante, em que se pôde estudar o efeito da leitura dos contos sobre as crianças.

O estudo dos contos infantis sempre despertou interesse, mas se hoje sua leitura para os pequenos é geralmente bem aceita, em particular graças ao fomento que acabo de mencionar, nem sempre foi assim. Uma das críticas muitas vezes feita é que os contos contêm elementos capazes de dar medo nas crianças e traumatizá-las. Esse temor dos adultos já fora notado por Bettelheim em seu livro A psicanálise dos contos de fadas (2002), no capítulo "Medo da fantasia". Esse medo de que as crianças tenham medo resultou em toda uma corrente politicamente correta, em que qualquer alusão ao que pudesse ser da ordem da destrutividade e do sexual, ou seja, do pulsional, foi alterada, amainada ou eliminada.

Com efeito, é o Eu que, como se sabe, dá o sinal de alarme ante o perigo da pulsão, e o conto, ao fornecer os materiais específicos, possibilita os processos de figurabilidade, deslocamento e ligação.

Neste número da revista sobre o medo, parece necessário lembrar a distinção entre medo e angústia. Em alemão, medo e angústia têm o mesmo significante: Angst; "ter medo de" traduz-se por: Angst haben vor. O medo implica um objeto determinado: tem-se medo do lobo, da bruxa (supondo que esses objetos sejam bem determinados!). A angústia é um afeto, um estado. Na sua segunda concepção da angústia ("Inibição, sintoma e angústia"), Freud indica que este afeto está ligado à expectativa de um objeto indeterminado, ao passo que o medo implica que o objeto seja conhecido. No mesmo texto, Freud utiliza o termo Realangst ("angústia real", em português), que se opõe à angústia ante apulsão e que Laplanche e Pontalis, no seu vocabulário, propõem traduzir por "angústia ante um perigo real", isto é, externo e que constitui um perigo real para o sujeito, o que podemos aproximar do medo.

Se levássemos ao pé da letra a questão do medo nos contos, para além do medo do conto em si, poderíamos falar de uma função pedagógica do conto: por exemplo, "Chapeuzinho vermelho" ensina as crianças a ter medo do lobo e de outros predadores bípedes que possam vir a encontrar nos bosques. De fato, o estatuto metapsicológico do medo não é muito claro e Freud deixa de utilizá-lo depois de 1916. Se retomarmos o conto de Branca de Neve, o medo da madrasta pode ser interpretado como o temor da revanche da madrasta contra as fantasias sádicas e destrutivas da filha em relação à mãe. René Diatkine observa que, no conto de Grimm, Branca de Neve não tem tanto medo e as crianças que escutam esse conto na verdade ficam mais envolvidas com a alegria que sentem ante as desventuras da madrasta/bruxa - é uma solução para o destino de seu sadismo destrutivo.

A questão do local em que se encontra o perigo é resolvida nos contos por sua tópica particular: nem dentro, nem fora - alhures: "Era uma vez, num país distante...", e desde muito cedo uma criança sabe identificar esse lugar do conto, espaço particular, espaço intermediário, espaço transicio-nal, espaço do pré-consciente em que as palavras se encarregam da figurabilidade, espaço do sonho e dos mitos: o que é propício para iniciar no prazer do funcionamento mental e no prazer literário.

Há crianças, contudo, que nem sempre estão dispostas a escutar serenamente contos, em particular aquelas em que o dentro e o fora estão mal estabelecidos. São aquelas de quem Winnicott fala em seu artigo "Sobre 'O uso de um objeto'", cuja mãe não conseguiu "sobreviver" a seus ataques destrutivos, ou em quem a função alfa (Bion) falhou. Na Unité du Soir, na oficina de leitura, as crianças podiam escolher seu livro, permanecer à distância, ir e vir, se isso lhes fosse necessário, ou então se apoiar na presença e na proximidade corporal da leitora, na do livro e organizar, experimentar a boa distância psíquica.

O artigo a seguir, de grande riqueza, aborda exaustivamente todas as questões que um psicanalista pode se fazer em relação à leitura de contos para crianças.

 

"Tão negra quanto a madeira desta moldura..."

Bem no meio do inverno, uma rainha costura junto a uma janela com esquadrias de ébano negro. Ela espeta o dedo e três gotas de sangue caem na neve. "O vermelho sobre a neve branca ficou tão bonito" que a rainha faz este estranho pedido: "Oh, quisera ter uma criança tão branca como a neve, tão vermelha como o sangue e tão negra quanto a madeira desta moldura". O terceiro termo do pedido, na sua dimensão fúnebre, fica em segundo plano por alguns instantes. É a Branca de Neve de nossa infância que nasce pouco depois, e mais adiante será dito que seus cabelos são negros como o ébano. Mas a morte não se afasta e a rainha morre quando a criança nasce.

Breve interlúdio em que, numa única linha, se diz "que um ano mais tarde, o rei esposou outra mulher". É a única ação do pai contada no texto, ação essencial para o desenvolvimento da história - e a primeira das três referências paternas que servem de articulação para o conto.

A nova rainha é muito bonita, mas sua beleza não vem acompanhada de virtudes. É orgulhosa e altiva, diz o texto, o que faz pensar que a mãe de Branca de Neve era modesta e afável, precisamente porque nada se diz sobre isso. A nova rainha tem de ser a mais bela do reino. Aparentemente, ama apenas a si mesma. Seu único interlocutor é o espelho mágico, que reflete sua imagem e sempre diz a verdade. Ele só se enganará uma vez - e nesse erro revela-se um aspecto de seu poder mágico, ligando o narcisismo da madrasta a seus votos de morte. O drama explode quando a heroína chega aos sete anos de idade. O espelho a acha mais bonita que a rainha, mas nem por isso muda de dona.

Mil vezes mais bonita. O leitor sensível à beleza do texto dos irmãos Grimm, maravilhosamente traduzido ao francês por Marthe Robert, compreende imediatamente que, no terreno da rivalidade, nenhuma nuança é aceitável. Se a criança se tornou mais bela que sua madrasta, o terceiro termo do pedido da mãe deve realizar-se outra vez e uma das duas deve morrer. Duas novas cores aparecem, cores de cadáver: "A rainha se apavorou e ficou amarela e verde de inveja".

Seu ódio, "crescendo como uma erva daninha, não lhe dava sossego nem de dia, nem de noite". E vem a primeira tentativa de assassinato, a ordem dada ao caçador e a aventura na floresta. O leitor descobre então que a heroína tem o poder de desafiar a morte. O branco da neve impõe respeito ao fúnebre negro. "Por ser tão bonita", o caçador não a matou, mesmo supondo covardemente que os animais selvagens se encarregariam da tarefa. Mas estes se afastam à sua passagem e não lhe fazem mal algum, enquanto a madrasta acredita apropriar-se da força vital da criança fazendo uma refeição canibalística, em que devora os miúdos de um filhote de javali.

Chegada de Branca de Neve, ao cair da tarde, na casa dos sete anões, mais além das sete montanhas. No texto dos irmãos Grimm, nada os individualiza, mas é apenas na sétima cama que a heroína encontra descanso e consegue adormecer. Chegada dos sete anões: "Deus do céu, que menina tão linda!". "E a alegria deles foi tamanha que não a acordaram". Se o desejo da mãe é ambíguo, se a beleza do segundo avatar da imagem materna é mortal, a de Branca de Neve é como o anúncio da boa nova, da vitória da luz sobre as trevas, da vida sobre a morte.

De manhã, nossa heroína se explica e a ambivalência volta a vigorar. "Ela contou a eles que a madrasta quis matá-la", pequena frase que completa o diálogo - mais que reduzido no texto - com o caçador. Se, graças a seu espelho mágico, a madrasta sabe que a criança constitui um perigo mortal para ela, a criança sabe o que sua madrasta sabe e não se espanta com esse conflito mortal. Fica claro, então, que ela é o sujeito dos desejos de morte dirigidos à imagem materna, embora o relato faça dela uma inocente vítima.

Seguem-se três episódios de incrível beleza dramática. Os três começam da mesma forma, com o mesmo diálogo entre a rainha e o espelho. O desenvolvimento deles está construído do mesmo modo. Mas a cada vez o tom se torna mais dramático, o objeto mais mágico e extraído do mais profundo da maldade materna. Primeiro o laço, depois o pente envenenado. Da terceira vez, "ela foi até um quarto secreto e isolado onde ninguém nunca entrava" para fabricar a maçã envenenada branca e vermelha. A evocação dessas duas cores prenuncia o fim trágico do conto, seu primeiro fim.

Cada tentação da madrasta desperta um desejo na heroína - e esse desejo vem acompanhado de ignorância, procedimento com o qual a arte do século xviii nos familiarizou. Embora os sete anões a tenham imediatamente advertido do perigo, embora a rainha não tenha variado tanto assim seus disfarces e tenha se apresentado três vezes com mais ou menos o mesmo discurso, a heroína nunca a reconhece. Essa aparente inverossimilhança dá ao texto sua veracidade. Quem não se convenceu várias vezes de que a oportunidade presente de realizar um desejo é radicalmente diferente das experiências decepcionantes ou cruéis que se repetiram na sua vida?

Se a força maravilhosa de sobrevivência e a perseverança dos sete anões são, por duas vezes, mais fortes que a morte, na terceira vez a heroína parece bem morta. A tensão dramática é intensa. Até o espelho que sempre diz a verdade anuncia à rainha que ela já não tem rival. Os sete anões choram três dias. Mas eis que a força misteriosa da branca heroína se manifesta novamente: ela permanece tão fresca quanto uma pessoa viva. "Ela continuava tendo suas lindas faces rosadas" e os sete anões não conseguem pô-la na terra negra. É a história do caixão de vidro, no qual ela continuava "branca como a neve, vermelha como sangue e de cabelos negros como madeira de ébano". Com a referência aos sinais de santidade da cristandade, é sempre ao combate entre a vida e a morte que remete à simbologia das cores, tendo os sete anões se recusado a realizar o terceiro termo do desejo da mãe. E eis que Branca de Neve tem novamente um pai. Sob seu nome, está escrito que ela é filha de rei. Três pássaros vêm pranteá-la, pássaros mágicos familiares aos contos de Grimm, uma coruja, um corvo e, finalmente, uma pequena pomba.

E vem o episódio final, o amor do príncipe que a ressuscita após ter lido a inscrição e a reconstituição da família em outro lugar e sob uma nova forma. "Eu a amo mais que tudo no mundo, venha comigo até o castelo de meu pai, você será minha mulher". Já não há outra rainha além da heroína e à madrasta só resta morrer em sua dança final, com os sapatinhos de ferro em brasa nos pés.

É uma história antiga de múltiplas versões e que retoma um tema tratado com inúmeras variantes. A versão dos irmãos Grimm é uma das mais recentes, tal como foi recolhida no começo do século XIX. Sob essa forma, é um conto que as crianças não se cansam de pedir para contar, crianças totalmente diferentes umas das outras, inclusive os pequenos parisienses, seja qual for sua cultura de origem e sua relação com a língua escrita. Os adultos não são insensíveis à poesia do texto. Convidado para uma discussão sobre os contos por um grupo de fonoaudiólogos da região parisiense e de bibliotecários que trabalham com crianças, ouço, no começo da reunião, uma contadora narrar, com grande talento, esse texto que todos tínhamos relido e acreditávamos conhecer bem. A interpretação foi tão bonita que todo o público descobriu o texto como se descobre uma música muitas vezes escutada quando ela é tocada por um grande intérprete. Como entender o interesse das crianças, a emoção dos adultos? Ambos garantem a perenidade do texto. Se conseguirmos avançar no estudo dessas duas questões, provavelmente esclareceremos um aspecto não pouco importante das relações da criança com o escrito.

"Branca de Neve" é um conto típico. Depois que Vladimir Propp descreveu a morfolo-gia dos contos de fada a partir das funções dos personagens, a interpretação psicanalítica dessas funções tornou-se mais tentadora ainda. Mas a psicanálise aplicada não é algo evidente. Se uma obra de arte parece cheia de sentido para um psicanalista, o que ele pode analisar é sua própria relação com ela, sem por isso descobrir uma verdade oculta de que ela seria o vetor e sem ter um conhecimento direto do que levou à sua criação. Pode ser que as interpretações do psicanalista - em sua autoanálise diante da obra de arte - se articulem com o conjunto de seu trabalho diário e possam ter um alcance mais geral. É o que tentaremos fazer aqui, pois não perdemos de vista nossa intenção de entender o interesse do leitor por uma história tão manifestamente antiquada e aparentemente sem relação com sua vida cotidiana.

Para o psicanalista que sou, é importante lembrar em primeiro lugar que Propp, embora contemporâneo de Freud, certamente não foi influenciado por sua obra. Isso dá um valor seguro ao sentimento de familiaridade que a enumeração das funções introduzidas pelo célebre folclorista russo inspira: afastamento de um membro da família, proibição, transgressão da proibição, ação do agressor - com todos os desenvolvimentos que isso comporta -, perda de um objeto, dom de um objeto mágico, de um talismã etc. Essas funções são objetos de conhecimento a partir da análise de um texto que trata de animais, fadas, bruxas, reis, rainhas ou pobres camponeses. Mediante modos de expressão tão estranhos quanto os modos de figuração do sonho, elas se relacionam com o destino do herói do conto, na sua humanidade mais direta. A análise de Propp é essencialmente formalista e, para se manterem rigorosos, os muitos pesquisadores que hoje utilizam seu método evitam a todo custo interpretar. Mas as funções do conto fazem o leitor psicanalista associar e, então, a temática das fantasias inconscientes é imediatamente evocada. Conto típico, dissemos, como quando Freud fala de sonhos típicos na Interpretação dos sonhos. Se analisássemos um conto como um sonho, as funções descritas por Propp estariam situadas na articulação entre o conteúdo latente e o conteúdo manifesto.

"Branca de Neve" é composto com o rigor de uma obra musical clássica. Começa com a exposição da situação inicial, embora, desde o princípio, a arte do implícito deixe dados essenciais ficarem ao sabor da imaginação ou da angústia do leitor.

Essa primeira parte compreende três temas: concepção e nascimento da heroína, morte da mãe e novo casamento do pai, ódio e desejo de morte da madrasta em relação à heroína. Essas três sequências de introdução estão ligadas pela unidade de lugar, a moradia familiar, o que é frequente nos contos de fada.

A segunda parte desenrola-se na floresta, lugar inquietante por natureza, antítese da casa. É o episódio do caçador e dos animais selvagens.

A terceira parte se passa na casa da fantasia, que condensa uma casa de bonecas a um porto seguro familiar. É a habitação desses auxiliares imaginários que são os sete anões. É também o lugar dos três ataques da madrasta.

A quarta parte tem por tema a morte, os funerais e o renascimento da heroína.

Por último, o final contém a retomada do tema inicial: a heroína reencontra uma família reconstituída numa casa intacta.

Essa ordem rigorosa do conto é indissociável do efeito que produz nas crianças. As mais desprovidas de transmissão cultural familiar são tão sensíveis a ele quanto as crianças mais favorecidas: é o mesmo gosto que o público tem pelo coro final das óperas de Mozart, sem aquela irritação das pessoas cultas, cansadas dessas alegrias infantis e que preferem a música que não se repete e fica em suspenso.

O final feliz é essencial para a estrutura do conto. Compreende o retorno ao estado inicial, apesar das transformações manifestas que isso comporta. Quando o príncipe leva Branca de Neve para o castelo paterno, a função "pai" é facilmente recuperada, tanto mais que há tempos não se falava mais disso: filha de rei, ela é levada ao castelo do rei. A função é, aqui, mais importante que a identidade.

Os maus são punidos. A figuração dos pais bons e maus apresenta variações que vão de sua reunião discreta - as três partes do pedido da mãe de Branca de Neve - ao isolamento da figura da madrasta, que é somente má. O derradeiro castigo reconstitui a unidade, com o amor sendo mais forte que o ódio. O final feliz, por sua mera existência a posteriori, permite ao leitor brincar com os derivados psíquicos da desintrincação pulsional. Nenhuma leitura provoca por si só uma elaboração decisiva, mas a prática repetida do texto vem junto com uma transformação não negligenciável dos equilíbrios intrapsíquicos.

Em "Branca de Neve", a conclusão é breve e categórica. Em outros contos, ela se desenvolve de forma mais ampla. O conto do "Junípero"1 começa como "Branca de Neve", mas o herói é um menino e a árvore desempenha o papel maravilhoso que todos conhecem. O final ocupa mais da metade do texto, e a ressurreição derradeira está indicada desde o início, primeiro pela alegria inesperada que emana da árvore, depois pelo canto repetido do pássaro a cada etapa que precede seu retorno.

A fada boa está geralmente ausente das produções espontâneas das crianças, histórias imaginadas durante sessões de psicanálise ou em jogos propostos em grupo. A ação triste ou angustiante é sempre aberta, as lutas são perpetuamente prolongadas pela chegada de novos combatentes, os ladrões fogem da prisão etc. Um término, numa história não escrita, seria o verdadeiro fim, a frustração fundamental, o desejo definitivamente insatisfeito, a morte. As crianças que brincam de luta preferem dar vantagem a seus adversários a ganhar e que a brincadeira cesse. Apesar disso, a criança não gosta que uma história contada por outro fique inacabada. O fim do texto possibilita seu perpétuo recomeço. Escrito imutável, objeto indestrutível, ele pode ser lido de novo, escutado de novo e a garantia da integridade final permite brincar com as representações angustiantes, desde que nenhuma variação venha a mudar sua ordem.

Brincar repetidas vezes o jogo proposto pelo texto é seguir por um momento as diferentes vozes que o compõem, tanto a voz do narrador como a dos personagens. Eles são indicados por sua função, que está associada a uma qualidade. Nenhum é uma pessoa completa, e é essencial que assim seja, como na ópera de antigamente. Cada traço pertinente remete a um aspecto das imagos da criança (e, por que não, do adulto), e é nessa relação que adquirem sua verdade. A voz do narrador garante que o que está sendo contado é a história dos outros. Imaginem que relato terrível seria "Branca de Neve" ou "Cinderela" contado em primeira pessoa. O ritmo do texto, os refrãos, as repetições contribuem para esse duplo movimento de ressonância interna e de controle na exteriorização.

Várias indicações são simbólicas e abstratas. As três cores contraditórias, a beleza maravilhosa que distribui alegria e é mais forte que a morte são notações absolutas. O jovem leitor pode ao mesmo tempo encontrar uma representação da realização alucinató-ria de seus desejos e dela extrair reservas infinitas de denegação. O dom de sobrevivência faz eco à indispensável recusa da morte, que permite que o narcisismo da criança se preserve. Como conciliar a resolução do complexo de Édipo com a recusa da própria morte, recusa essencial, cuja única garantia é a imortalidade dos pais? Personagem do conto e imago do leitor se encontram, sem jamais se confundir, nas três tonalidades indicadas na exposição inicial.

A mãe de Branca de Neve é uma rainha, tal como as menininhas costumam representar suas mães em seus desenhos. Ela está instalada numa atividade familiar às mães: está costurando. Pouco importa para as crianças de hoje que as senhoras de respeito de antigamente fossem exímias costureiras. A primeira imagem de mãe é amor e humildade, e destacamos acima a maneira indireta como essas virtudes eram sugeridas pelo texto. Para além desse primeiro plano, contudo, outros aspectos são expressos de modo simbólico. A concepção de Branca de Neve é representada tanto pela expressão do desejo de ter um filho quanto pela picada - entrada forçada que representa o coito - e as três gotas de sangue: o número três reaparece várias vezes no texto. Se remete à tríade edipiana, isso apenas torna ainda mais evidente a ausência de representação direta do pai no coito inicial. Mas as três gotas de sangue provocam o triplo desejo, em que aparecem reunidas as três Moiras da antiguidade. O terceiro termo destina a criança ao negro fúnebre do ébano. Ele se volta contra aquela que o pronunciou e a mãe morta é substituída pela mãe odiosa e assassina.

Talvez haja quem pense, nesse ponto, que a leitura de um conto por um psicanalista não é coisa séria e que é um pouco fácil demais ver numa picada de agulha a representação simbólica do coito. Contudo, no mesmo instante, a oposição entre o dentro e o fora da casa se perde, como no relato de um sonho. É só no espaço do sonho que as três gotas de sangue, vertidas por uma senhora no interior da casa, podem cair na neve, e é também no coito que se perdem, por algum tempo, as noções de dentro e de fora do corpo.

A segunda imagem de mãe já não é ambivalente. Ela é puro orgulho, ódio, ela deseja a morte de sua rival. Mas sua beleza não parece destinada a agradar um homem - o rei nunca mais é mencionado. Não se manifesta nenhuma objetalidade edipiana. À autofecundação do primeiro episódio corresponde o diálogo narcisista com o espelho mágico. A morte da mãe está sempre presente, seja no nascimento da criança, seja quando esta se torna a mais linda aos sete anos.

A figura paterna é espantosamente discreta, afora o breve interlúdio citado acima. No entanto, o pai tem um papel de destaque, indicado por essa própria discrição. Marthe Robert sublinha a frequência desse procedimento nos contos de Grimm:

O "reino" do conto nada mais é que o universo familiar bem fechado e bem delimitado em que é representado o drama primeiro do homem. O rei desse reino, não cabe dúvida, é um esposo e um pai, nada mais, ao menos tal como nos é apresentado.

E ela acrescenta:

O conto se limita a introduzi-lo pela fórmula tradicional "Era uma vez um rei...", para acrescentar logo em seguida "que tinha um filho..", esquece dele imediatamente e se volta para as aventuras do filho, até o fim, quando ele apenas é lembrado para a reconciliação final. O mesmo ocorre, aliás, quando o rei é substituído por um homem qualquer.

A ausência do pai em "Branca de Neve" é mais impressionante ainda. Ao contrário dos relatos em que acompanhamos as aventuras do herói pelo mundo, aqui uma parte importante da ação se passa em casa. Em outros contos mais realistas, a madrasta aproveita da ausência momentânea do pai para realizar seus negros desígnios. O pai de Cinderela não a defende, mas, na versão dos irmãos Grimm, é ele que lhe traz o ramo de oliveira, cuja função é essencial no conto. Não há nada disso em "Branca de Neve". A primeira e a segunda figuras de mãe estão, no texto manifesto, igualmente sós em casa. No entanto, o retorno lancinante do número três sugere algo bem diferente. O pai está reduzido a três referências explícitas. A primeira é direta. Um ano após a morte da mãe de Branca de Neve, ele volta a se casar - e Marthe Robert nota que, nesses contos, esta é sua principal função: o pai (o rei) não poderia ficar sem mulher. O novo casamento remete a uma representação de coisa. As duas outras referências são puras representações de palavra: uma inscrição sobre o caixão, que lembra que a heroína é filha de rei, e o pedido de casamento - "vem comigo até o castelo de meu pai, você será minha mulher".

Branca de Neve realiza o desejo inconsciente mais angustiante da infância, angústia que persiste durante a vida toda. Sua mãe é eliminada - sob suas duas formas. A heroína se torna esposa e entra, única mulher, na casa do rei. Jamais é dito que o pai seja objeto de desejo - somente os homens têm aqui desejos ativos no registro objetal genital. Uma vez mais, a discrição do texto pode ser considerada, em si mesma, um signo. O fato de a existência de um personagem com um papel central ser mencionada sem que nada seja dito sobre ele faz necessariamente trabalhar o psiquismo do leitor em direções que escapam, a rigor, do texto. O silêncio total não pode ser senão aparente. Apesar da evolução dos costumes, no sistema semântico da língua não se concebe a palavra "mãe" sem a palavra "pai", "concepção" sem "casal", "rainha" sem "rei", "filho" sem "pai e mãe" etc. Durante um tratamento psicanalí-tico, se um dos termos é silenciado, pode-se pensar numa reticência, numa colocação passageira em latência ou num recalcamento mais organizado, a menos que seja o efeito tardio de uma forclusão. Os silêncios e as elipses do texto nunca coincidem com as lacunas produzidas pela censura do leitor. As brechas e as discordâncias podem tornar a leitura desagradável ou impossível nos piores casos. Nos melhores casos, desenvolve-se um trabalho psíquico, cuja natureza aleatória é tão necessária para o prazer da criança quanto para todos aqueles que gostam dos livros, da música ou da pintura.

É fácil imaginar alguns dos vários casos de figura possíveis. Muitas crianças constituem um "bom público" e esquecem o pai, seguindo, assim, a sugestão do texto. Não pensam no objeto de amor comum da filha e da mãe, absortas nos devaneios pré-genitais da parte central e pela alegria sádica que lhes proporcionam as aventuras e desventuras da madrasta. As contradições de seu complexo de Édipo permanecem latentes, assim como é posto em latência o pai da heroína no conto. As produções conscientes de suas fantasias sádicas se deixam transformar sem angústia pelas proposições do texto, o que é facilitado pelas possibilidades de volta atrás e de repetição que o uso do escrito oferece.

Outros percursos associativos podem ser induzidos pelos silêncios do texto. Algumas crianças talvez esperem com impaciência ao longo de toda a história a chegada de um pai salvador. Não se deixam enganar pela entrada em cena dos sete anões anônimos, e recebem com alegria e sem malícia a chegada do príncipe, sem que a clivagem manifesta entre mãe boa e mãe má seja posta em questão novamente. As variações imaginárias são infinitas e não são excludentes entre si, como no sonho. É de se esperar, portanto, que nenhum adulto faça perguntas para verificar se o texto foi bem compreendido, que nenhum encenador ponha um excesso de imagens para preencher o implícito.

Espaço do sonho, espaço da realização alucinatória do desejo - as referências ao tempo e ao espaço são elípticas ou simbólicas. Mencionamos de passagem o apagamento das coordenadas espaciais na cena da janela e o sentido induzido pela impossibilidade de representar racionalmente o que está dentro e o que está fora. A utilização das referências temporais e dos números também é eloquente. Entre concepção e nascimento, o tempo transcorrido é indicado pelas palavras "pouco depois". Essa indicação vaga também pode fazer pensar que a senhora estava no final da gravidez no início do relato - coisa sobre a qual o texto nada diz2 - e que a picada de agulha era somente uma picada de agulha, o que dá livre curso a todas as teorias sexuais infantis - mais ou menos sugeridas pela expressão simbólica do coito fecundante.

O drama final explode quando Branca de Neve tem sete anos, idade da razão em muitas tradições. Para o leitor contemporâneo, aos sete anos ainda se é criança; as histórias em quadrinhos nos familiarizaram com heróis cuja idade é indefinida - meio criança, meio adulto - e que não envelhecem, e também poderiamos encontrar um charme perverso nessa beleza muito jovem. Pode-se ainda evocar a precocidade dos casamentos reais de outrora. No entanto, tudo faz com que o leitor seja levado em outra direção. O número sete retorna com insistência. Não é um ornamento, é um tema central: sete anos, sete montanhas, sete anões e é na sétima cama que Branca de Neve adormece. Essa referência ao repouso do criador dá a sensação de que o final dos tempos chegou e que a realização do desejo é iminente, impressão reforçada pela alegria dos anões ante a beleza da heroína. Os acontecimentos se sucedem ininterruptamente até o episódio da maçã, e passados três dias, o tempo fica suspenso até a iluminação final. O trabalho subterrâneo dos anões, a cada dia da semana, o trabalho doméstico que eles propõem à heroína evocam, ao contrário, o tempo que não termina de escoar ao longo da interminável infância. Velhinhos sem genealogia nem posteridade, que talvez não se espantem de "terem nascido centenários". A eternidade hebdomadária deles opõe-se à morte que marca o destino de nossa heroína.

Vários trabalhos contemporâneos destacam as diferenças estruturais entre língua falada e língua escrita, tema a que fizemos referência muitas vezes neste número3. Não só as respectivas estruturas sintáticas não são superponíveis, como a necessidade de prescindir do apoio do contexto - o escrito deve ser compreensível em qualquer situação -, da mímica e do gesto exige a conhecida precisão. A organização espacial que possibilita ao leitor perceber uma sequência do texto e ao mesmo tempo voltar para trás permite suprimir redundâncias, mas também obriga a evitar um método que proceda por aproximações sucessivas. Objeto com o qual o leitor é confrontado, o texto escrito tem uma forma imposta por seu uso, e o conto que acabamos de estudar demonstra suas especificidades.

Dizer que o escrito e o oral são duas línguas diferentes vai na contramão das tendências pedagógicas que reduzem o escrito a uma mera codificação do oral. As facilidades propiciadas pelo uso do gravador às vezes fazem esquecer a especificidade da língua escrita, com a mensagem oral gravada podendo ser transmitida diretamente a seu destinatário. Quando os educadores se inspiram nas notáveis pesquisas de Freinet para mostrar às crianças que, em todos os casos, trata-se de preciosos meios de comunicação postos à sua disposição, abrem uma importante via por não fixar o aluno num papel passivo. Efetivamente, diante da pedagogia tradicional, havia três atitudes possíveis para a criança: apossar-se ativamente do que lhe era indicado e avançar mais rápido que o professor, seguir passivamente e agradar os adultos ou mergulhar numa inércia funesta. Mas devolver a palavra à criança sem fazê-la encontrar nada além de uma possibilidade de falar de seu dia a dia não é uma propriedade específica do escrito na nossa civilização do livro - que é a de dar acesso à literatura no sentido mais amplo do termo. Além da continuidade, de uma geração para outra, dos prazeres estéticos do grupo, a obra literária, por seu conteúdo e por sua forma, articula-se com a atividade fantasmática do leitor, apoia sua elaboração. Os dois aspectos que surgiram a propósito de uma leitura de Grimm são complementares. A representação da realização de desejo só é suportável pelas particularidades da forma (estrutura global do texto, equilíbrio entre dito e não dito, pluralidade das vozes, enumeração que não é exaustiva). Para justificar essa afirmação, tenho de relembrar as funções das linguagens, do ponto de vista do desenvolvimento mental.

Apropriar-se da linguagem dos adultos é uma grande vitória para a criança. Em termos estritos, ninguém lhe ensina a falar, e, assim, a criança se apossa violentamente de uma parcela do poder dos pais. Enquanto a linguagem que serve para se comunicar se organiza, por vezes muito rapidamente, em seus sistemas de oposição sintática e semântica, a criança desenvolve outra atividade de linguagem, um cantarolar lúdico, iterativo e vago, em que o sentido é perdido e recuperado. Criação da criança, retomada ecolálica de fragmentos de discursos dos outros? É uma pergunta que não cabe fazer. Alguns adultos ficam irritados com esse barulho, essas iterações, esse maltrato da língua; outros ficam encantados com essa prova de vitalidade e de bom humor, embora nem sempre seja fácil suportar que uma criança precise de uma presença distante para indicar que não precisa de ninguém. Como quer que seja, as crianças que não dispõem da possibilidade material ou mental de utilizar esse dispositivo - herdeiro da lalação do primeiro ano - têm mais dificuldade de adquirir a língua materna e, por conseguinte, a língua escrita. Para as outras, a conjunção dos dois registros leva a essa outra forma de linguagem inútil (no curto prazo) que é o relato - quer se refira a um evento acontecido em outro momento e talvez em outro lugar, quer ao imaginário. Para ser inteligível, exige certo grau de formalização, o que o aproxima do escrito. Para ser instituído, exige uma transformação da atividade lúdica de linguagem e sua retomada na transformação da realização alucinatória do desejo através da modulação do sistema de ligação proporcionado pela língua materna.

A contribuição dos outros adota várias formas. As cantigas infantis, retomada cultural das iterações primitivas, são um primeiro passo rumo à música e à poesia. Os refrãos de "Branca de Neve", o canto do pássaro do "Junípero" são suas derivações numa forma mais elaborada.

Em alguns momentos privilegiados, na hora de dormir, quando se atualiza a angústia de separação, os pais por vezes contam uma história. A criança sabe que ela é mais imaginária ainda que aquela que ela mesma cria. No começo, ela talvez não esteja estruturada como um conto típico, mas se a criança quiser, pode-se - ou melhor, deve-se - repeti-la com as mesmas palavras. Assim, a criança não precisa tomar para si a história bem conhecida. A história se situa, então, nesse espaço intermediário em que as relações com os limites do eu se perdem. Não cabe indagar se ela é do pai, do contador, do narrador ou do sujeito. Como muitas notações contidas neste estudo, essa metáfora espacial foi tomada de Winnicott - o conceito de objeto transicional utilizado em sua obra para designar essa primeira posse da criança, para quem, no entanto, a questão de saber se ela é interna ou externa só tem sentido por oposição ao par contrastante objeto interno/objeto externo. Essa distinção confere ao objeto transicional sua capacidade imediata de representar simbolicamente objetos internos ou externos.

Quando essa oposição não existe, quando a distinção entre dentro e fora não é pertinente, a criança pequena manipula apenas objetos autísticos, que se bastam a si próprios, sem se transformar e sem representar nada.

A criança gosta que repitam várias vezes as mesmas histórias. Claro que também gosta de descobrir outras novas, e há uma relação quantitativa variável entre essas duas atividades, que não existem indissociadas. É preciso haver certa confiança no outro e uma considerável dose de coragem pessoal para enfrentar situações imaginárias novas, sem falar do delicioso prazer de sentir um pouco de medo e dominá-lo graças ao distanciamento do texto. As relações indecisas entre a criança e o narrador, mencionadas acima, escapam ao controle consciente. Na prática do escrito, a criança também encontra os personagens, heróis das histórias e dos contos. Maravilhosos brinquedos imateriais, inquebráveis ou reconstituídos cada vez que se abre o livro, é particularmente a respeito deles que não cabe formular a questão do pertencimento.

Como todos os heróis de contos de fada, a personagem Branca de Neve é simultaneamente uma figuração possível do eu da criança e uma imagem abstrata, não situável no tempo e no espaço, com a qual ninguém pode se identificar; por essa contradição, a personagem torna-se o suporte das representações propícias para estimular a elaboração mental. Quando pais contam uma história para adormecer uma criança muito pequena, eles às vezes introduzem alguns traços que permitem que ela se reconheça - e geralmente as alusões são bem recebidas. À medida que aumenta a tensão do complexo de Édipo, essa apóstrofe direta já não é aceita e a transposição para o mundo dos contos de fada, com sua organização elíptica, é então bem-vinda.

A oposição entre eu e não eu se perde, a implicação do sujeito na ação (jogo identificatório com as personagens) ou na invenção (identificação com o narrador) são móveis e não devem ser definidas. A história contada no texto difere, nesse aspecto, do devaneio alucinado, do qual o sujeito é muito mais o autor. Possibilita um olhar diferente sobre uma temática conflituosa que a criança não precisa reconhecer como sua.

Se nem todas as crianças têm condições de criar um texto, se nem todas as crianças têm o desejo ou a possibilidade de transmitir a outros suas histórias, suas impressões e seus pensamentos, nem todas, tampouco, estão dispostas, a qualquer momento, a se interessar pelas histórias contadas por outra pessoa. Tudo depende da relação de forças entre as defesas que preenchem as brechas conflituosas e o investimento refratado das produções lúdicas, relação não tão estável como indicam certas situações de fracasso. A parte de jogo tem de ser grande para que as proposições imaginárias de um adulto não constituam uma intolerável intrusão ou, ao menos, uma tentativa de sedução. A presença física do contador é necessária num primeiro momento. Depois, a criança descobre o narrador. Só consegue ler sozinha identificando-se com ele, o que não é simples, pois se trata, ao mesmo tempo, de renunciar ao outro. É nesse contexto que as sublimações próprias da fase de latência substituem as formações reativas e que podem desenvolver-se livremente o conhecimento e o uso das linguagens científicas. Nem por um instante penso que se possa curar as crianças pré-psicóticas lhes fazendo leituras que muitas gostariam de não escutar, mas acredito firmemente que agravamos o destino de muitas crianças cujo futuro é incerto privando-as de uma prática literária, com o único pretexto de que não conseguem ler sozinhas. Em torno do contador, em torno do leitor nas bibliotecas, há crianças, umas grudadas, outras mais à distância. Será que escutam? Algumas, sem dúvida nenhuma. Outras, provavelmente. Não saberíamos dizer o que elas constroem a partir do que ouvem, mas, se formos pacientes, muitas vezes nos surpreenderemos com o trabalho que se desenrolou em silêncio, quando a criança está segura de que perguntas incompreensíveis não virão desorganizá-la. O que não impede que, em outros lugares, outras atitudes pedagógicas sejam necessárias com esses mesmos alunos. Quanto às crianças privadas de cultura, as crianças da periferia, as crianças de trabalhadores imigrantes de origens diversas, o fato de que todas elas possam se apaixonar por Branca de Neve e por Babayaga faz pensar seriamente.

 

Referências

Bettelheim, B. (2002). A psicanálise dos contos de fadas. (16. ed.) Rio de Janeiro: Paz e Terra.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Claude Avram
2 rue de Paradis
75010 Paris, França

Recebido em 3.3.2013
Aceito em 13.3.2013

 

 

Extraído de: L'enfant et l'écrit - Textes du Centre Alfred Binet, 3,1983,165-176.
1 Nota do Editor: o conto do "Junípero" é um conto popular alemão que se encontra dentre aqueles coletados pelos Irmãos Grimm: uma mulher morre depois de dar à luz um filho desejado. Seu marido, então, casa-se com outra mulher, com quem ele tem uma filha. Sua nova esposa, atormentada pelo ciúme, mata o menino. Do Junípero sob o qual estão enterrados os restos do menino, nasce um pássaro que começa a cantar uma linda melodia: "Minha mãe me assassinou;/ Meu pai me comeu;/ Minha irmãzinha/ juntou meus pedaços sob a mesa/ Em seu lenço de seda me guardou/ Sob o Junípero me plantou./ E belo pássaro nasci". É um conto incrível e de grande crueldade, mas fala do amor de um pai por seu filho e de uma irmã por seu irmão.
2 No conto do "Junípero", ao contrário, os nove meses da gestação são descritos um por um.
3 Nota do Editor: o autor se refere ao periódico em que o artigo foi publicado originalmente.

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