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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.47 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2013

 

ARTIGOS

 

A teoria das transformações e os fenômenos não integrados: diluição e queda. Transformações não integradas: novas perspectivas

 

The theory of transformations and the non-integrated phenomena: dilution and fall. Non-integrated transformations: new perspectives

 

La teoría de las transformaciones y los fenómenos no integrados: dilución y caída. Transformaciones no integradas: nuevas perspectivas

 

 

Celia Fix Korbivcher

Membro efetivo, Analista de crianças e Analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP

Correspondência

 

 


RESUMO

A autora examina a relação entre o referencial de Bion e manifestações da mente primordial, dedicando especial atenção para as manifestações de estados de não integração. Utiliza esse conceito segundo as ideias de Winnicott, Bick, Tustin, Meltzer. Define os estados de não integração como manifestações de terror ocasionadas pela ameaça de queda num espaço sem fim, num buraco negro, de ameaça de diluição - em última análise: ameaça de perda da própria existência. Discrimina os fenômenos não integrados dos fenômenos autísticos, já estudados por ela. Enfoca a relação desses fenômenos com as manifestações da mente primordial, descritas por Bion em seus últimos escritos (Bion os denominou de "estados inacessíveis da mente"), e menciona, em particular, as manifestações de terror subtalâmico. Utiliza a teoria de Transformações (Bion, 1965/1983) como uma teoria de observação dos fenômenos mentais na sessão analítica, com o intuito de obter instrumentos para situar os fenômenos não integrados numa teoria consagrada sobre o funcionamento da mente. Indaga quanto à possibilidade de os fenômenos não integrados fazerem parte dessa teoria e sugere, como hipótese, que além das transformações propostas por Bion e das transformações autísticas, os fenômenos não integrados venham a constituir outro grupo de transformações: transformações não integradas. Apresenta material clínico com o intuito de ilustrar as ideias expostas. Discute as implicações e paradoxos que a proposta acarreta.

Palavras-chave: desmentalização; desmantelamento; desamparo; terror; terror sem nome.


ABSTRACT

The author examines the relationship between Bions referential and manifestations of the primordial mind; in particular, manifestations of states of non-integration. She uses this concept according to the ideas of Winnicott, Bick, Tustin, Meltzer. She defines the states of non-integration as manifestations of terror caused by the threat of falling into an endless space, of falling into a black hole, of the threat of dilution; ultimately, the threat of loss of existence itself. She discriminates non-integrated phenomena from autistic phenomena already studied previously by her. She studies the relationship between these phenomena and manifestations of the primordial mind, described by Bion in his last writings, which he called "inaccessible states of the mind", and mentions the manifestations of sub-thalamic terror in particular. She uses the theory of Transformations (Bion, 1965/1983) as a theory of observation of mental phenomena in the analytic session with the objective to develop instruments to situate non-integrated phenomena in a recognized theory about the functioning of the mind. Additionally, she inquires about the possibility that the non-integrated phenomena could be part of this theory and suggests as a hypothesis that, in addition to the transformations proposed by Bion and the autistic transformations, non-integrated phenomena would constitute another group of transformations: non-integrated transformations. She presents clinical material in order to illustrate the ideas exposed and discusses the implications and paradoxes that this proposal entails.

Keywords: dementalization; dismantlement; abandonment; terror; nameless terror.


RESUMEN

La autora examina la relación existente entre el referencial de Bion y las manifestaciones de la mente primordial, especialmente las manifestaciones de estados de no integración. La misma utiliza este concepto de acuerdo con las ideas de Winnicott, Bick, Tustin y Meltzer. Ella define los estados de no integración como las manifestaciones de terror provocadas por la amenaza de caer en un espacio que no tiene fin, en un agujero negro o como la amenaza de disolución, o sea que se trata de la amenaza de perder la noción de existencia. La autora diferencia a los fenómenos no integrados de los fenómenos autísticos, que ha estudiado anteriormente. También investiga la relación entre estos fenómenos y las manifestaciones de la mente primordial, que fueron descritas por Bion en sus últimos trabajos. Bion las denominó como "estados inaccesibles de la mente"y menciona las manifestaciones de terror subtalámico. La autora utiliza la teoría de Transformaciones (Bion, 1965/1983) como una teoría de observación de los fenómenos mentales en la sesión analítica con el objetivo de tener instrumentos para situar los fenómenos de no integración en una teoría reconocida sobre el funcionamento de la mente. Indaga sobre cuáles serían las posibilidades de que los fenómenos no integrados pudieran formar parte de esta teoría y sugiere, en calidad de hipótesis que, además de las transformaciones que han sido propuestas por Bion y de las transformaciones autísticas, los fenómenos no integrados constituirían otro grupo de transformaciones: las transformaciones no integradas. Presenta materiales clínicos con la finalidad de ilustrar las ideas expuestas. Discute las implicaciones y paradojas que provoca esta propuesta.

Palabras clave: desmentalización; desmantelamiento; terror; terror sin nombre.


 

 

Uma teoria será boa se satisfizer duas exigências: ela deve descrever com exatidão uma grande classe de observações com base em um modelo que contenha, somente, poucos elementos arbitrários e deve fazer previsões bem definidas de observações futuras. Qualquer teoria física é sempre provisória, no sentido de ser apenas uma hipótese; nunca há como prová-la (Stephen Hawking, 2005, pp. 23-24).

Eu posso imaginar que existem ideias que não têm força de expressão por estarem enterradas num futuro que ainda não aconteceu, ou num passado remoto que dificilmente podemos dizer que pertencem ao que chamamos pensamento (Wilfred Bion, 1977, p. 125).

 

I. Introdução

Em seu trabalho clínico, o psicanalista se movimenta dentro de determinado paradigma regido por leis que deveriam, supostamente, abarcar o universo de fenômenos compartilhados com o seu paciente ao longo da sessão analítica. É comum, entretanto, o psicanalista vivenciar situações na sua clínica em que os fenômenos prevalentes não fazem parte de tal universo. Isso faz com que ele não disponha de instrumentos capazes de identificá-los e, pois, de conferir-lhes algum significado. Assim, quando da constatação de que o paradigma por ele adotado não é mais suficiente, instala-se um impasse na mente daquele profissional.

Manifestações da mente primordial, os estados autísticos e, em particular, estados de não integração, provocam um impasse dessa ordem. Em trabalhos anteriores, exploro a área dos estados autísticos presentes em pacientes neuróticos e os relaciono ao referencial de Bion (teoria das transformações, em particular). Como hipótese, proponho nesses trabalhos a introdução, na teoria das transformações, das transformações autísticas (Korbivcher, 1999, 2001, 2004, 2007, 2008).

No trabalho atual, prossigo numa linha de investigação semelhante - o foco, porém, agora recai sobre os estados não integrados, encontrados também em pacientes nos quais predominam a parte não psicótica da personalidade.

As manifestações em níveis não integrados são predominantemente não verbais e expressas por acentuadas vivências corporais sem representação na mente, o que faz com que o psicanalista, muitas vezes, não possa reconhecer e nomear aquilo que ele está presenciando. Ele se vê pressionado a criar novos instrumentos de trabalho, que lhe permitam alcançar a comunicação do seu paciente, o que significa romper ou ampliar o paradigma existente.

Thomas Khun diz:

Quando um paradigma se torna insuficiente para explicar certos fenômenos que se apresentam como cabais e inevitáveis para que compreendamos a natureza da realidade, há, então, indício claro da falência deste paradigma. Cria-se uma revolução científica que culminará na adoção de um novo paradigma. Esta nova visão de mundo deverá ser capaz de apresentar respostas claras e coerentes acerca dos pontos que, na concepção antiga, apresentavam-se problemáticos e paradoxais (1987, p. 95).

Bick, Winnicott, Meltzer, Tustin, Grotstein, Mitrani, entre outros, se dedicaram ao estudo de áreas mentais primordiais, uma área anterior à posição esquizoparanoide. Esses autores se viram pressionados a criar novos instrumentos para tentar alcançar tais níveis de desenvolvimento mental: uma área fora do paradigma existente.

Os estados não integrados se manifestam em todo ser humano, desde o início da vida. Será a partir da interação com um objeto capaz de atender o bebê em suas necessidades sensoriais iniciais, que esses estados poderão se modificar e caminhar na direção de alguma integração, de modo a constituir os rudimentos da noção do self. Caso essa interação não ocorra de maneira favorável, o bebê poderá experimentar vivências de extrema vulnerabilidade, de profundo desamparo - um estado caótico de forte ameaça. Predominam vivências de terror, pela ameaça de queda num "buraco negro" (Grotstein, 1996); de queda em um espaço sem fim, terror pela ameaça de se dissolver, de se diluir (Bick, 1968/1991, 1986).

Diante de tais estados, é comum o indivíduo criar manobras poderosas de tipo autís-ticas, por meio das quais ele se protege, recolhendo-se no interior de uma concha, onde permanece absorto com atividades autossensuais (Tustin, 1986, 1990, 1992).

Bion, mais no final da sua vida (1977, 1980, 1976/1987, 1977/1987, 1979/1987), se interessa pela mente primordial, ou aquilo que ele denomina de "estados inacessíveis da mente" (Bion, 1997, p. 50).

A minha intenção no presente trabalho é propor uma nova ampliação na teoria das transformações de Bion (1965/1983), de modo a incluir entre as áreas mentais primordiais (já sugeridas em Korbivcher, 2001) a área dos fenômenos não integrados.

Em Transformações, Bion introduz um método de observação dos fenômenos mentais na sessão analítica que busca facultar ao psicanalista a identificação de fenômenos em curso. Proponho, como hipótese, que os fenômenos não integrados possam fazer parte do campo de fenômenos abarcados na teoria das transformações, de modo que - além das transformações propostas por Bion, pertencentes às áreas neuróticas e psicóticas e das transformações autísticas (Korbivcher, 2001) - esses fenômenos venham a constituir outro grupo de transformações: as transformações não integradas. Apresento material clínico de três pacientes que ilustram manifestações de fenômenos não integrados e discuto, a seguir, as implicações e paradoxos que a proposta acarreta.

 

II.

Winnicott (1962) foi o autor que inicialmente destacou os estados de não integração, diferenciando-os de desintegração e de fragmentação. Menciona ele que, na falta de uma mãe suficientemente boa, a criança fica sujeita a uma consciência crônica de descontinuidade, o que irá lhe provocar ansiedades impensáveis, relacionadas à não integração. Winnicott salienta que, diante dessas vivências, o bebê é tomado pelo terror de se despedaçar, de cair num espaço sem fim, de perder a relação com o corpo e a orientação no espaço.

Bick (1968/1991,1986), nessa mesma direção, a partir de sua experiência de observação de bebês, afirma que desde o início da vida o bebê experimenta estados de não integração -estados nos quais os conteúdos internos não se diferenciam dos conteúdos corporais. O bebê não dispõe da noção de um limite capaz de manter seus conteúdos emocionais reunidos. Será a partir da introjeção de um objeto externo - um objeto que é fruto de experiências de interação contínua entre uma mãe, física e emocionalmente continente e a superfície do corpo do bebê como um órgão sensorial - que irá se constituir a noção de pele psíquica (Mitrani, 1996).

A pele psíquica é a projeção ou o correspondente da pele corporal, e sua função seria juntar as experiências ou partes de um self rudimentar na direção de alguma integração e coesão, dando início às primeiras fantasias de espaço interno e externo. Se por alguma razão houver distúrbios na formação da pele psíquica, o bebê irá desenvolver uma "segunda pele", por meio da qual ele substituirá o estado de dependência do objeto por uma pseudoindepen-dência, protegendo-se, assim, de estados intoleráveis de não integração. Ansiedades catastróficas de aniquilamento - cair aos pedaços, ameaça de queda num espaço sem fim - são algumas manifestações desses estados.

Como se mencionou, ante essas vivências aterrorizadoras, certos pacientes desenvolvem manobras autísticas. Eles permanecem aderidos a superfícies em contiguidade, superfícies que se tocam. As relações de objeto nesse âmbito ocorrem por meio de identificação adesiva (Meltzer, 1975a; Bick, 1986) e não por identificação projetiva, como se dá na parte neurótica e psicótica da personalidade. Evita-se, desse modo, o surgimento de qualquer espaço, com o intuito de impedir o surgimento da dor diante da intolerável consciência de separação corporal do objeto. Há, ainda, a possibilidade de ocorrer um estado de desmantelamento do self1 (Meltzer, 1975b), o que leva o aparelho mental a cair, passivamente, aos pedaços.

Em seu artigo "A queda", Tustin descreve com muita precisão vivências próprias desses estados de não integração.

Determinados pacientes sentem-se ameaçados de cair infinitamente, de serem derrubados, de se derramarem ou se dissolverem. Essas vivências decorrem do fato de eles não terem tido uma consciência amortecida da separação física da mãe. O medo é de perderem a continuidade física com alguém que lhes garanta a existência. As rupturas de continuidade física com o analista não são experimentadas como rejeição, como nos pacientes neuróticos, mas como rupturas físicas concretas de algo que sentem que os sustentam. O chão parece abrir sob seus pés e eles se sentem à beira de um abismo que aparece diante de seus olhos. Metáforas como buracos negros e inferno lhes permitem falar de suas experiências pré-verbais. Esses pacientes, nas suas experiências iniciais, sentiam-se caindo em um vazio, sem nada a que se agarrar ou que impedisse a queda [...] Para eles, a ferida primária da separação física da mãe, não cicatrizada, reaparece nas outras situações de separação (1986, p. 157).

Para Winnicott, Tustin e Bick, estados de não integração ocorrem habitualmente num estágio que antecede a transformação das experiências sensoriais iniciais do bebê em sentimentos e pensamentos. Esse estado, como diz Mitrani:

[...] só é experimentado pelo bebê como uma vivência de desintegração perigosa, se o continente materno não estiver acessível no período que antecede o desenvolvimento de uma pele psíquica estável (1996, pp. 12-13).

Para Bick, afirma ainda a autora, a não integração está relacionada às ansiedades arcaicas catastróficas - enquanto a desintegração se relaciona às ansiedades persecutórias e depressivas posteriores.

Nos estados não integrados, como se observa, vivências de desmantelamento, de ameaça de queda sem fim, de diluição, de liquefação, de desaparecimento num buraco negro são predominantes - em última análise, predomina a ameaça de perda da noção da própria existência.

É importante mencionar que para Tustin (1990) a perda da noção de existir talvez seja a maior ameaça que o ser humano pode experimentar. Afirma ela que a ameaça da perda da noção de existir é pior do que a morte. Diante da morte, o ser humano deixa seu corpo - ao passo que, quando a ameaça é à própria existência, não fica nada2.

 

III.

Em seus últimos trabalhos (1977, 1980, 1976/1987, 1977/1987, 1979/1987), Bion demonstra forte interesse quanto ao funcionamento da vida mental pré-natal e de manifestações de fenômenos primordiais.

Em "Cæsura", ele indaga:

É possível para nós como psicanalistas pensarmos que pode ainda haver vestígios no ser humano que sugeririam a sobrevivência na sua mente, análoga à do corpo humano, de indícios no campo da ótica, de que uma vez existiram fossas óticas, ou no campo da audição, de que existiram fossas auditivas? Há alguma parte da mente humana que ainda traz sinais de uma intuição embriológica, quer visual, quer auditiva? (1977, p. 44).

Bion considera que os equivalentes mentais dos restos embrionários apareceriam mesmo quando o indivíduo exerce a função desenvolvida da fala, e que uma das descobertas fundamentais da psicanálise seria o contato com esses estados mentais arcaicos, o contato com ideias e pensamentos arcaicos, padrões primitivos de comportamento, manifestações essas todas detectáveis mesmo em pessoas as mais civilizadas e cultas (Rezze, 2006).

Bion (1997) nos esclarece que, além dos estados conscientes e inconscientes da mente, pode haver outro estado da mente:

[...] o mais próximo a que eu posso chegar a dar um título provisório é o de estados inacessíveis de mente. Seja uma percepção de seus batimentos cardíacos ou uma percepção de sentimentos de terror, de som ou de visão - o tipo de visão experimentada através da pressão nas cavidades óticas pelas mudanças de pressão no líquido intrauterino - tudo que nunca possa ter sido o que chamamos consciente ou inconsciente. É difícil contemplar, porque quando estamos contemplando isto, estamos num estado consciente de mente - como acordar e dizer que tivemos um sonho. É uma elaboração em um estado de mente apropriado para ser aquilo que chamamos "acordado" (1977, p. 50).

Nos últimos trabalhos citados e na Memória do futuro (1991), Bion menciona também a existência de estados de terror subtalâmico: um tipo de medo que não é controlado pela mente e que, portanto, não adquire significado. Nesses estados, encontram-se manifestações de vestígios de partes pré-natais, que são ativadas em determinados momentos. As manifestações de terrores subtalâmicos, segundo Bion, estão relacionadas a reações físicas ligadas às glândulas suprarrenais e à secreção de adrenalina, levando o indivíduo a ações não pensadas de ataque e fuga.

Estaria Bion, assim como os demais autores citados, falando de uma mesma área de fenômenos ou de áreas próximas: a área de fenômenos não integrados? Se a resposta for afirmativa, indago como situá-los numa teoria de observação dos fenômenos mentais, que abarque o funcionamento da mente, como é o caso da teoria de Transformações.

 

IV.

Bion cria, ao longo de sua obra, diferentes modelos da mente, como parte de seus desenvolvimentos clínicos e teóricos. Em 1957, ele propõe a ideia da presença de partes psicóticas e não psicóticas da personalidade, ponto de partida para que outras partes da personalidade pudessem também ser destacadas - caso da parte autística, proposta por Tustin (1986). Em 1962, ele sugere que o campo de trabalho do analista na sessão é o do aprender com a experiência emocional. Em Transformações (1965/1983), ele desenvolve uma teoria de observação dos fenômenos mentais compartilhados pela dupla analítica dentro desse campo. Destaca diferentes tipos de transformações: tranformações em movimento rígido; transformações projetivas; transformações em alucinose; em K, -K; e em O. Com a noção de O, Bion expande o campo analítico do conhecer a realidade; K, para "ser" a realidade. As transformações em K são vistas como um passo intermediário para O, sendo este, para ele, o principal interesse da psicanálise (Braga, J. C., 2009, comunicação pessoal).

Em 2001, desenvolvo ideias sobre a tentativa de aproximação entre o referencial de Bion e os fenômenos autísticos e, como foi mencionado, proponho introduzir na teoria das transformações as transformações autísticas (Korbivcher, 2001). As transformações autísticas, conforme as concebo, se desenvolvem num meio autístico, o que implica a ausência da noção de objeto. As relações entre eu e não eu são dominadas por sensações que não adquirem representação na mente e ocorrem por meio de "objetos sensação" (objetos autísticos e formas autísticas). Algumas das suas invariantes se relacionam à ausência da noção de objeto interno e externo, às experiências de ausência de vida afetiva e de vazio afetivo, e à presença de atividades autossensuais.

Ao introduzir as transformações em alucinose, Bion amplia consideravelmente o campo de observação psicanalítico. Com o acréscimo do fenômeno da alucinose no campo de trabalho do analista, ele ilumina fenômenos com qualidades diversas daquelas consideradas até então (caso dos fenômenos de identificação projetiva).

A abordagem de Bion de uma mente multidimensional nos oferece uma base para o desenvolvimento da ideia de outros tipos de transformações. Assim, as transformações autísticas poderiam, eventualmente, se situar ao lado das transformações da área neurótica (movimento rígido) e das transformações da área psicótica (projetivas e em alucinose) (Braga, J. C. 2009, comunicação pessoal). Com a introdução das transformações autísticas, o campo dos fenômenos a serem observados na sessão analítica se amplia ainda mais, passando a fazer parte desse campo os fenômenos autísticos, fenômenos não mentalizados nos quais predominam sensações.

Se adotarmos a teoria de Transformações como uma teoria de observação dos fenômenos na sessão analítica, e se concordamos que outros tipos de transformações podem ser nela incorporados, indago sobre a possibilidade de se introduzir - ao lado das transformações da área neurótica (movimento rígido), das transformações da área psicótica (projetivas e em alucinose) e das transformações autísticas - as transformações de uma área em que predominam fenômenos não integrados, de modo a se criar, ainda, um novo tipo de transformações: transformações não integradas.

As transformações não integradas ocorrem em um meio não integrado, meio este caracterizado por intensas manifestações corporais não mentalizadas. Uma das suas invariantes seria a presença de um estado permanente de terror, decorrente da ameaça da perda da noção da própria existência. Tal ameaça é expressa por vivências de extrema vulnerabilidade, decorrente do terror de queda num espaço sem fim, do terror de diluição, de liquefação.

No período final de sua obra, Bion não menciona mais partes psicóticas e não psicóticas da personalidade, substituindo esse modelo por personagens pré-natais e pós-natais (Bianchedi et al., 1999, p. 54). Pergunto, entretanto, se não poderiamos manter a ideia sobre a existência de partes psicóticas e não psicóticas da personalidade acrescida da parte autística da personalidade (Tustin, 1990) e introduzir também uma parte não integrada da personalidade, na qual predominariam fenômenos não integrados?

Entendo que, ao destacar diferentes tipos de transformações, a preocupação de Bion seria facultar ao analista a discriminação, na clínica, de diferentes níveis de comunicação propostos pelo paciente. A partir da experiência emocional compartilhada entre paciente e analista na sessão, torna-se possível ao analista identificar a natureza do fenômeno em curso e, assim, situar-se ante o tipo de transformação em que ele se encontra (Korbivcher, 2001).

Penso que esse novo grupo de transformações - as transformações não integradas -poderá possibilitar que a observação do analista se expanda para áreas primordiais da mente, áreas ainda não integradas, não mentalizadas, nas quais não se desenvolveu a noção de um limite capaz de manter reunidos os conteúdos emocionais.

É importante destacar que os fenômenos não integrados - ou, melhor dizendo, elementos não integrados - não são equivalentes aos elementos beta. Levanto a hipótese de que os elementos não integrados surgiriam a partir de tropismos3 que buscam um objeto capaz de modificá-los. Caso esse objeto seja alcançado, os elementos psíquicos decorrentes seriam, a meu ver, elementos ainda não integrados4. A partir da introjeção de um objeto interagindo continuadamente com a superfície do corpo do bebê é que esses elementos se movimentariam na direção de alguma integração, passando a fazer parte do campo dos elementos beta. Se houver, entretanto, uma falha na introjeção desse objeto, os elementos não integrados se tornariam elementos autísticos (Korbivcher, 2007, 2008).

As relações entre eu e não eu nessa área não se estabelecem por identificação projetiva, como na área da neurose e psicose, nem por equação adesiva, como na área autística, ou seja, não se constitui qualquer adesão ou identificação com o objeto - há, sim, um estado de desmantelamento, de constante ameaça de queda, de dissolução, de ameaça da perda da noção de existir.

É necessário esclarecer também que esses fenômenos, segundo o meu ponto de vista, não pertencem à área de -K. Em -K existe a noção de um objeto separado, isto porque a sua principal característica é a presença de mecanismos de inveja, que impedem a formação do conhecimento.

Quanto à localização dos elementos não integrados na grade, proponho que esses se situem na linha A0, a mesma linha em que os tropismos e os elementos autísticos se encontram; a linha anterior aos elementos beta (linha A), proposta em trabalho anterior (Korbivcher, 2008).

 

V. Material clínico

Mariela

É uma jovem que se encontra em análise, numa frequência de três sessões por semana. Certo dia, que seria um intervalo entre suas sessões, me telefona pedindo uma sessão extra para aquele próprio dia. Não sendo possível atender seu pedido, proponho vê-la na sua sessão no dia seguinte. Fico duplamente preocupada: penso no que a teria movido a me pedir a sessão extra e com o fato de ela não ter sido atendida.

Ao entrarmos na sala de análise, noto-a muito angustiada, com uma expressão meio aterrorizada. Ela não utiliza o divã naquele dia, o que não é de seu hábito. Está com o nariz bastante congestionado, com muita dificuldade para respirar. Menciona que tivera uma crise de asma, que passara muito mal, mas agora está melhor. Diz que se sente muito nervosa, e que percebe que estoura em cima dos filhos.

Acompanho a sua fala - e o que chama a minha atenção é seu estado aterrorizado. Penso que tal estado talvez tivesse relação com o seu telefonema da véspera e com o fato de eu não tê-la atendido. Comento a esse respeito, ao que ela responde prontamente, dizendo não ter havido qualquer problema quanto a isso. Faço a conjectura de que ela não teria usado o divã como um modo de evitar maior contato com a sua dor.

Conversamos ainda sobre o seu estado de sofrimento e desconforto. Parecendo sentir-se um pouco mais aliviada, decide dirigir-se ao divã. Permanece ali deitada, por um longo período em silêncio, inquieta, coçando o nariz o tempo todo, se contorcendo, com muita dificuldade para respirar.

Vejo-me apreensiva diante dessa situação, sem saber o que estaria ocorrendo. Decido aguardar. Mais adiante, envolta nesse clima meio aterrorizado, ela comenta:

Olhei para esse quadro (um quadro que fica na parede, em frente ao divã) e vi um buraco, um buraco negro, parece um túnel. É muito preto! Eu não gosto disso! Parece queda livre, é como saltar sem paraquedas. É um poço. Não tem parede, é muito escuro. O medo fica grande, principalmente à noite.

Fala que se sente sem referências, sente-se como se caísse, rolasse por uma escada, sem corrimão para se segurar. Vejo que ela é capaz de traduzir em palavras seu estado de terror e de ameaça. Essa sua comunicação me provoca forte impacto, desorientação decorrente da natureza primordial daquilo que ela está vivendo.

Mário

Tem três anos, foi trazido para análise pelos pais por apresentar crises de terror. Segundo eles, Mário muitas vezes encontra-se aparentemente calmo, quando, subitamente, começa a berrar desesperadamente, aparentando estar completamente aterrorizado. Ele se queixa de que algo o incomoda na palma das mãos, e diz que sua mão está áspera.

Determinada sessão, num momento em que Mário parecia bastante envolvido comigo, propôs que brincássemos com água. Ele estava muito interessado em brincar com a água que saía pela torneira - até que um pouco dessa água escorreu pelo seu braço, para dentro da manga de sua blusa. Ele pôs-se, daí, a gritar em desespero.

Fiquei impactada com a situação, sem conseguir contê-lo. Ocorreu-me que talvez algo houvesse lhe machucado, em algum lugar de seu corpo. Fomos em direção à sala de espera, onde a mãe se encontrava. Mário continuava a berrar. A mãe também parecia assustada com a intensidade do seu estado. Verificamos - o que não se confirmou - se poderia haver algo de errado no corpo de Mário.

Aos poucos, pude resgatar minha condição de pensamento. Fiz, em seguida, a conjectura de haver uma relação entre seu estado e a água que escorrera para dentro de sua blusa. Disse-lhe que ele parecia muito assustado, que algo havia se passado entre nós, que não sabíamos bem o que podia ser. Aquela água a escorrer pelo seu braço. Seu consequente susto, como se ele sentisse que todo seu corpo fosse escorrer junto com a água. Fomos conversando e Mário, aos poucos, foi se acalmando. Parou de chorar, recobrou um estado mais integrado - o que lhe permitiu, em seguida, continuar a brincar.

Vera

Jovem, bem-sucedida em seu trabalho, ocupa um posto de grande responsabilidade. É muito vistosa e sua aparência é bastante bem cuidada. Numa sessão, ao chegar - embora demonstrando certo contentamento por estar ali -, num tom angustiado, diz que não está nada bem: "Parece que estou involuindo, acho que tem algo de errado comigo".

Menciona ter pesadelos à noite, e que não sabe o que está acontecendo.

Fico um tanto desorientada com a situação, pelo fato de perceber a discrepância entre seu contentamento e sua narrativa. Observo-lhe que diz estar assustada, angustiada, mas ao mesmo tempo noto que vir falar comigo das suas preocupações, ser escutada por mim atende a uma forte necessidade sua, que a deixa aliviada, contente.

Ela concorda: "Aqui parece ser meu ponto de equilíbrio. Eu encontro o equilíbrio de tudo isso, só aqui".

Enquanto fala, ela se vira de costas para mim, ficando com a cabeça de frente para a parede, de bruços. Parece estar grudada no divã. Penso que essa sua movimentação se liga à busca através do corpo de um estado de conforto, de aconchego. Digo-lhe que ao chegar estava muito angustiada, mas que agora parece ter encontrado um estado bem mais confortável.

Num tom mais tranquilo, ela diz: "Olhei para a parede e pensei: ah, minha parede! Você sabe, eu sempre olho para os pontinhos da parede, e pensei que se eu pudesse arrancaria a parede daqui e a levaria comigo, mas sei que eu não posso!".

Reflete, em seguida: "É só aqui que eu vivo assim, este é o problema! Venho para cá e me agarro neste divã... Não sei por que vir aqui é tão importante pra mim".

Menciona que vir aqui de fato a atende, mas esse não é o problema - e, sim, quando a sessão termina, ao ter que ir embora. "Eu abro aquela porta e caio direto lá fora. É horrível, é como se caísse num enorme fosso. Depois disso, eu passo um tempão dentro do meu carro, tremendo de frio, antes de poder me acalmar e dirigir pra ir embora".

A atmosfera da sessão é bastante intensa: percebo que temo perder os limites da situação. Porém, ao me dar conta desse estado, recupero a minha posição e converso com ela sobre a sua necessidade de permanecer grudada em mim e sobre a vivência de terror ao se ver separada, como ocorre nos finais das sessões quanto ao seu medo de cair num fosso, cair num buraco lá fora. Digo-lhe que talvez essas vivências a fazem se sentir involuindo, como havia dito no início.

Ao término da sessão, ela se levanta vagarosamente, meio cambaleante - como se fosse perder o equilíbrio e cair -, e sai da sala.

 

Comentários

Em Mariela e Vera, predominam manifestações de fenômenos não integrados. Ambas expressam sentimentos de ameaça de queda num espaço sem fim e utilizam metáforas - cair num poço, num buraco negro - para falar de suas vivências. Mário, por sua vez, também manifesta vivências não integradas, mas seus estados de terror decorrem principalmente pela ameaça de liquefazer-se, de diluir-se.

Mariela ao chegar, como vimos, encontrava-se num estado de grande perturbação, parecendo estar envolta num estado terror, de ameaça. Suas manifestações são predominantemente corporais. Ela menciona uma crise de asma e acrescenta: "Estou muito nervosa, e tenho medo de descarregar nos filhos"

A analista relaciona seu sofrimento ao desamparo vivido por ela, por não ter sido atendida na véspera. Mariela, entretanto, nega que essa experiência tivesse qualquer significado para ela. O que surge no lugar seria uma crise de asma e a decorrente dificuldade para respirar. Essas seriam manifestações corporais não mentalizadas, sem representação. Há, sim, a presença de um estado de terror devido à ameaça de aniquilamento.

Estamos, reflito, diante de uma área de fenômenos não integrados, na qual predominam transformações não integradas. Na sequência, Mariela deita-se no divã e, ainda aterrorizada, observa o quadro pendurado na parede em sua frente. Ela nomeia a sua vivência de terror pela ameaça de queda. Como ela diz: "é como se rolasse escada abaixo, sem um corrimão para se segurar...".

Penso que Mariela, a partir da experiência de ter se sentido contida pela analista, adquire um estado mais coeso, tornando-se capaz de traduzir em palavras sua vivência de vulnerabilidade, o terror de cair num buraco negro, de despencar. Levanto a hipótese de que estaríamos diante das transformações não integradas →K.

Mário, na sessão descrita, encontra-se envolvido numa vivência de continuidade com a analista - até que surge um fato inesperado, que escapa de seu controle: a água que escorre ao longo de seu braço, por dentro da manga da blusa. Esse estado de continuidade se rompe e, sem que ele pudesse conter na mente as sensações desencadeadas, manifesta terror por perder o limite do seu corpo e se liquefazer - e, com isso, perder partes do próprio self.

Sugiro, como hipótese, que nessa sequência a analista se encontra diante de transformações não integradas. Tal fato desencadeia um estado caótico na sala de análise, provocando momentaneamente na analista a perda da capacidade, que é sucedida por uma série de ações. Nessa passagem, penso que as transformações da analista poderiam ser consideradas transformações em -K → não integradas.

É importante salientar que não podemos confundir aquele movimento do paciente com fenômenos de identificação projetiva, pelo fato de não encontrarmos em Mário a noção de um objeto separado, no qual projetar seus conteúdos indesejáveis. Há, sim, uma vivência não integrada, sem um contorno, uma pele psíquica que o contenha. A analista ao formular-lhe que "talvez aquela água escorrendo pelo braço o tenha assustado, como se sentisse que todo o corpo fosse escorrer junto com a água", opera com transformações em K. Mário, em seguida, se acalma e continua a brincar. Penso que, aqui, ele também opera com transformações em K.

Vera é uma paciente na qual predomina a parte neurótica da personalidade e que apresenta intensas manifestações de estados não integrados. Ela oscila entre vivências de uma parte integrada e vivências de uma parte não integrada da sua personalidade. Ao chegar para a sessão, a analista nota certo contentamento da parte de Vera por estar ali, embora ela informe que "está mal e que tem medo de estar involuindo". A analista menciona que percebe o seu contentamento, ao que Vera responde: "É só aqui que eu vivo assim, este é o problema!"

Vera inicia uma movimentação com o corpo, parecendo procurar um estado de maior conforto - até que situa o seu pontinho na parede, ao qual se agarra, do mesmo modo que se agarra ao divã/analista. Obtém um estado mais coeso, proporcionado pela vivência de continuidade corporal que mantém com a analista, evitando experiências de desamparo extremo, como a de estar involuindo.

Nessa sequência, penso que Vera opera com transformações autísticas. A seguir, ela diz:

O problema é quando a sessão termina. Eu abro aquela porta e caio direto lá fora. É horrível, é como se caísse num enorme fosso. Depois disso, eu passo um tempão dentro do meu carro, tremendo de frio, antes de poder me acalmar e dirigir pra ir embora.

Nessa nova sequência, Vera é capaz de nomear os seus estados de terror. Penso que predominam transformações não integradas →K. A intensidade da situação primordial engolfa a analista. Como ela própria menciona: "a minha vivência... é de perder os limites da situação, os limites entre a paciente e eu mesma". A analista, nessa cadeia de movimentos, opera com transformações não integradas. É interessante observar que Vera, desde o início, se queixa de estar involuindo, o que indica a sua percepção de vivências de estados primordiais de adesividade na relação com a analista. Percebe, também, que a perda desses estados resulta num terror de cair num espaço sem fim, de cair num fosso e perder a própria existência. Penso que esses movimentos também indicam transformações não integradas →K.

 

VI. Discussão

Proponho levantar alguns pontos para discussão.

1. Nos materiais clínicos apresentados, observamos manifestações de estados de não integração com diferentes características. Há aquelas manifestações vividas no momento exato do encontro, que são inacessíveis ao paciente (ver Mário e o episódio da água, e Mariela, no início da sessão, e sua dificuldade para respirar), e aquelas que podem ser nomeadas por meio de metáforas.

Mariela, por exemplo, é capaz de nomear os seus estados de terror quando se refere ao buraco negro. Vera menciona o medo de cair no fosso ao sair da sessão e ficar tremendo de frio no seu carro. Penso que esses estados, embora sejam traduzidos em palavras, mantêm as características próprias dos fenômenos não integrados. Sugiro como hipótese, como mencionei nos comentários das sessões, que talvez eles pudessem ser considerados como transformações não integradas →K. A ideia de incluir K se refere à possibilidade de ser a paciente capaz de nomear tais estados e não apenas vivenciá-los.

2. A área dos estados não integrados é uma área ainda não mentalizada, mas que apresenta forte potencial para se tornar mentalizada, dependendo da relação estabelecida com o objeto. Essa área equivaleria ao que Bion denomina de protomente, na qual mente e corpo não se diferenciam, e elementos beta predominam - ou se estaríamos numa área ainda anterior, uma área primordial?

Chuster (1996), em relação a essa área de fenômenos, oferece contribuição interessante ao mencionar que as manifestações primordiais da mente seriam o que ele denomina de imaginação radical (raízes das imagens auditivas, olfativas, sinestésica, dérmicas). Chuster diz que a imaginação radical não está de fato integrada, mas caminha "em direção à...", podendo permanecer num infinito vazio sem forma. Indago se essa ideia se aproximaria da noção de tropismos, que se movimentam na busca de um objeto que irá transformá-los em elementos psíquicos, mas que num primeiro momento estariam ainda não integrados.

3. A proposta de transformações não integradas poderia suscitar a seguinte indagação: a ideia de transformação se aplica à área não integrada - ou seja, para haver transformação é necessário haver alguma integração? Os estados não integrados, como se mencionou, se expressam por meio de intensas manifestações corporais, que ocupam o lugar de vivências de terror diante da ameaça da perda da própria existência. Ameaça de queda num espaço sem fim, de terror de diluição, são expressões dessas vivências.

Entendo que tais vivências, apesar de serem ainda não integradas, são transformações de estados inacessíveis da mente (Bion, 1997). Como sabemos, nós não temos acesso à situação em si mesma, mas apenas às suas transformações. Sugiro, desse modo, que os fenômenos não integrados poderiam também pertencer ao campo de fenômenos contidos pela teoria das transformações.

4. Como sabemos, na área da neurose forma-se uma barreira de contato que separa consciente e inconsciente. Na área da psicose, em que deveria haver uma barreira de contato, o que ocorre é a sua destruição e forma-se a tela beta - tela esta constituída por um acúmulo de elementos beta. Na área autística, há a formação de uma barreira protetora autística constituída por elementos autísticos. Na área dos fenômenos não integrados não encontramos nenhum tipo de barreira - pelo contrário, há a ausência de uma barreira, uma falta de delimitação de área, em que não há um interior e um exterior, apenas superfícies que se misturam, sem existir a noção de um espaço interno ou externo. É uma área na qual há um esparrama-mento do self, sem qualquer delimitação: mesmo a barreira autística não chega a se formar.

5. Poderíamos nos indagar, ainda, se aquilo que Bion denomina por "terror sem nome", equivale aos estados de terror encontrados nos fenômenos de não integração e estados de terror subtalâmicos. Bion diz que quando a capacidade de rêverie da mãe falha, o bebê reintrojeta aquilo que projetou e vive o que denomina de "terror sem nome", formando-se a tela beta - tela esta que se situa numa área que corresponde à parte psicótica da personalidade.

A área dos fenômenos não integrados e de terror subtalâmico é uma área ainda não integrada, na qual os mecanismos de identificação, de projeção e de introjeção não se formam - portanto, anterior às experiências de identificação projetiva. É uma área em que há um pré-psiquismo reagindo a situações de pressão e/ou desconforto com o continente físico (Chuster, 2009, comunicação pessoal). Entendo, assim, que a noção de rêverie não se aplica a essa área primordial da mente porque não se trata de sonhar ou devanear aquelas manifestações e transformá-las, mas de reuni-las, juntá-las, criar um contorno, uma "pele psíquica", que delimite o interior e o exterior, que crie um espaço - e a partir daí, sim, sonhar, devanear o que está ali contido.

As ideias desenvolvidas neste trabalho têm o propósito de prosseguir com a investigação do funcionamento da mente primordial - mais especificamente, das "áreas inacessíveis da mente", áreas não integradas. Estou ciente, entretanto, que uma das principais características dessas áreas é a dificuldade de acesso a elas e, portanto, à decorrente imprecisão concei-tual a que ficam sujeitas. Apesar disso, estou convicta da importância de ousar adentrá-las e tentar arranhar, talvez, algum conhecimento a seu respeito, uma vez que "tais manifestações são detectáveis na maioria das pessoas civilizadas e cultas" (Bion, 1977).

Para finalizar, menciono Bion:

A teoria, independentemente da formulação feita, ou das características decorrentes da sua natureza como uma transformação, nunca é certa ou errada, ela é plena de significado. Há muita confusão entre os cientistas ao acreditarem que as teorias são certas ou erradas e que devem, consequentemente, serem validadas por testes empíricos (1977, p. 15).

 

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Correspondência:
Celia Fix Korbivcher
Rua João Moura, 647/34
05412-911 São Paulo, SP
Tel.: (11) 3088-2051
celiafix@uol.com.br

Recebido em 10.10.2011
Aceito em 26.10.2012

 

 

1 O desmantelamento do self é um estado não integrado no qual ocorre a suspensão da atenção, fazendo com que os sentidos vaguem na direção do objeto mais atraente do momento (Meltzer, 1975b, p. 26).
2 Deve-se destacar que as angústias de aniquilamento presentes nas áreas não integradas são de qualidade diferente das presentes na posição depressiva de Melanie Klein (1946). Estas pressupõem a existência de um ego incipiente - ego este não encontrado nos estados de não integração.
3 Bion diz: "tropismos são a matriz a partir da qual brota toda a vida mental. Para a sua maturação ser possível, eles precisam ser resgatados do vazio e comunicados. Assim como a criança precisa de um seio, ou equivalente, para sustentar a sua vida, é preciso que haja uma contrapartida mental, para que a vida mental seja mantida. O veículo de comunicação, que é o choro da criança, as sensações táteis e visuais, não está envolvido apenas na comunicação, mas também no controle do tropismo. Se tudo corre bem, a comunicação por identificação projetiva leva a depositar no seio tropismos que a criança não pode controlar nem modificar ou desenvolver, mas que podem ser controlados e desenvolvidos depois de terem sido modificados pelo objeto. Se isso entra em colapso, o veículo de comunicação, o contato com a realidade, os vínculos [...] passam a ser partículas comunicativas, que acompanham os tropismos involucrados, e são rejeitados tanto pela psique quanto pelo objeto [...] o tropismo fica involucrado no próprio veículo de comunicação, seja ele o som, a visão ou o tato" (1992/2000, p. 47).
4 Nesse sentido, reformulo a ideia apresentada em trabalho anterior (Korbivcher, 2007, 2008), no qual menciono que para Bion os tropismos (Bion, 1992/2000) são matriz da mente: se o indivíduo encontrar um objeto capaz de modificar os tropismos em elementos psíquicos, eles poderiam se tornar elementos beta - caso não encontre tal objeto, eles permaneceriam elementos encapsulados, tornando-se elementos autísticos.

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