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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.47 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2013

 

ARTIGOS

 

Contratransferência e transferência em seminário clínico

 

Countertransference and transference in a clinical seminar

 

Contra-transferencia y transferencia en seminario clínico

 

 

Marion MinerboI; Abigail BetbedéII

IMembro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP
IIMembro filiado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP

Correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho ilustra, por meio de um caso apresentado em seminário clínico, como o analista disponibiliza sua matéria psíquica viva para dar forma e vida ao objeto primário que um paciente melancólico convocou na/pela transferência. Dessa perspectiva, contratransferência não é apenas a reação emocional do analista, mas principalmente a posição identificatória a partir da qual "alguém" nele se dirige a um aspecto da criança-no-paciente. Sendo inconsciente, esta posição será captada pela escuta analítica nas brechas do relato do caso. Uma exclamação espontânea da analista, altamente carregada do ponto-de-vista emocional, foi o ponto de partida para entrarmos em contato com seu sofrimento narcísico e ambivalência com relação ao paciente. Com a ajuda de uma articulação teórico-clínica em torno da noção da "mãe morta", pudemos reconstruir as vicissitudes não simbolizadas da relação da criança-no-paciente com seu objeto primário. Esse percurso nos levou, por fim, a propor um caminho possível para esta análise.

Palavras-chave: transferência e contratransferência; seminário clínico; articulação teórico-clínica; melancolia; mãe morta.


ABSTRACT

This paper describes, through a case presented in a clinical seminar, how the analyst makes available his "living psychic material" to give shape and life to the primary object that a melancholic patient summoned in /by transference. From this point of view, countertransference is not only the analyst's emotional reaction but, mainly, the identificatory position from which "someone" in him addresses an aspect of the-child-in-the-patient. Unconscious as such, this position will be captured by analytical listening in the gaps in the narration of the case. A spontaneous exclamation by the analyst, highly charged from an emotional point of view, has been the starting point to get in touch with her narcissistic suffering and ambivalent feelings towards her patient. With the aid of a theoretical-clinical articulation of the notion of the "dead mother", we were able to reconstruct non-symbolized vicissitudes of the relationship between the child-in-the-patient and his primary object. Finally, this trajectory allowed us to propose a way to conduct this analysis.

Keywords: transference and countertransference; clinical seminar; theoretical-clinical articulation; melancholia; dead mother.


RESUMEN

Este trabajo ilustra, a través de un caso presentado en un seminario clínico, como el analista pone a disposición su materia psíquica viva para darle forma y vida al objeto primario que un paciente melancólico convocó en/por la transferencia. Desde esta perspectiva, la contra transferencia no es apenas la reacción emocional del analista, y sí principalmente, la posición identificadora a partir de la cual "alguien" en él se dirige a un aspecto del niño-en-el-paciente. Siendo inconsciente, esta posición será captada por la escucha analítica en las brechas del relato del caso. Una exclamación espontánea de la analista, altamente cargada desde el punto de vista emocional, fue el punto de partida para que pudiésemos entrar en contacto con su sufrimiento narcisista y su ambivalencia con relación al paciente. Auxiliados por una articulación teórico-clínica en torno de la noción de "madre muerta" pudimos reconstruir las vicisitudes no simbolizadas de la relación del niño-en-el-paciente con su objeto primario. Este trayecto nos llevó, finalmente, a proponer un camino posible para este análisis.

Palabras clave: transferencia y contratransferencia; seminario clínico; articulación teórico-clínica; melancolía; madre muerta.


 

 

Introdução

O seminário clínico é uma atividade importante na formação psicanalítica. Na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo são obrigatórios oitenta seminários. Em seu formato padrão, um colega em formação apresenta material clínico para ser trabalhado durante uma hora e meia por um grupo coordenado por um analista didata.

Até onde temos notícias, a função e os objetivos dessa atividade são pouco discutidos em nossa Instituição. Talvez porque seu formato seja suficientemente aberto para ser explorado de maneiras muito diferentes, todas produtivas. Ou porque cada analista tem seu estilo, assim como cada grupo tem sua própria dinâmica. O objetivo deste artigo é apresentar e discutir, por meio de uma vinheta, uma maneira possível de se trabalhar.

A intenção não é fazer um relato "objetivo" de tudo o que aconteceu no seminário clínico - tarefa que, além de impossível, não faria sentido -, mas tentar recuperar um pouco da experiência que foi vivida na ocasião (segundo semestre de 2010). Depois, em um segundo momento, durante o processo de escrita deste texto, as autoras desenvolveram e aprofundaram algumas das ideias que nortearam a discussão.

Quando um analista relata um caso em seminário clínico, há vários níveis possíveis de escuta e intervenção. Pode-se falar do paciente, do analista, da relação entre ambos, mas também do analista com/dentro do grupo, ou mesmo do que está acontecendo no grupo. Daí a riqueza dessa atividade, que se realiza em um microambiente singular - a reunião destes, e não de outros integrantes, cada um com sua história de vida, sua experiência clínica e suas referências teórico-institucionais.

Ogden (2006) acredita que o inconsciente grupal - que é diferente e mais amplo do que a soma do inconsciente de cada participante - pode, em função de seu repertório psíquico diversificado, ajudar o analista a sonhar aspectos de sua experiência com o paciente que, até então, ele não havia podido sonhar sozinho. De fato, uma prerrogativa desse tipo de seminário é poder captar essas situações porque, como diria Caper (2002), todo mundo no grupo parece ter uma ideia mais clara do que está sendo projetado no analista do que ele próprio.

Embora ninguém esteja em melhor situação para entender um paciente do que o analista que está no consultório com ele (o que é óbvio), não é menos verdade (embora talvez menos óbvio, e bastante paradoxal) que ninguém está, também, em pior situação (p. 10).

Do nosso ponto de vista, as principais funções de um seminário clínico são: a) expandir coletivamente o pensamento clínico; b) articular o universal/abstrato da teoria ao sin-gular/concreto daquele caso; c) formar e desenvolver a escuta da criança-no-paciente e seu objeto primário; e d) formular uma interpretação sobre o funcionamento da dupla, de modo a poder sugerir caminhos para a interrupção da repetição sintomática.

Cabe aqui um esclarecimento sobre o que entendemos por "dupla". Embora a situação analítica esteja constituída por duas pessoas, o que se transfere é a própria neurose (Freud, 1914/2010), isto é, uma forma de ser e de sofrer ligada às identificações que se constituíram nas relações com os objetos significativos. Ferenczi (1909/1991) percebeu que a "possibilidade de ser hipnotizado depende [...] da capacidade do médium de adotar em relação ao hipnotizador uma posição sexual infantil, ainda que inconsciente" (p. 95). Em 1921, quando Freud (1921/1982) retoma o tema hipnose/transferência, ele reconhece que a idealização do objeto na paixão amorosa em relação ao líder das massas e ao hipnotizador resulta da projeção do ideal do eu - uma instância formada por identificações - sobre um suporte atual. Assim, sob esse vértice, a dupla analítica não é, propriamente, a "pessoa" do paciente e a "pessoa" do analista, mas identificações da criança-no-paciente que convocam, transferen-cialmente, identificações complementares no analista.

Eliana Pereira Leite (2005) ajuda a esclarecer essa ideia com uma analogia entre o trabalho psíquico realizado pelo ator e pelo analista. Tal analogia surge, diz a autora, quando Freud (1905/1982) amplia o entendimento da transferência como deslocamento, para entendê-la também em sua dimensão de script (no caso Dora). Nesse sentido, transferência é a atribuição de um papel ao analista, que o desempenha mesmo sem saber qual é. A interpretação agora deve abarcar a cena da qual ele faz parte, além da decifração/tradução de conteúdos inconscientes do paciente. Em outros termos, ao lado do modelo do sonho, a sessão também pode ser vista como uma "cena".

Nesse modelo, tanto o ator como o analista se esvaziam de sua "pessoa real" (juízos de valor, opiniões pessoais, desejos, necessidades e até mesmo de suas preocupações cotidianas) e disponibilizam a matéria viva de seu psiquismo para dar vida a um personagem. A diferença é que o personagem encarnado pelo ator é dado pelo roteiro da peça, enquanto no caso do analista,

[...] é a fala do analisando que, inadvertidamente, toca e desperta a memória, a imaginação, os pensamentos inconscientes, as sensações e manifestações corporais do analista, e estas não se destinam a fundamentar uma ação física, mas à reconstituição da dimensão inconsciente presente nas palavras vindas do divã (Pereira-Leite, 2005, pp. 46-47).

Nesse sentido, a contratransferência tem um nível consciente e também um inconsciente, que tem a ver com o papel que o analista desempenha na cena sem saber. Esse papel - que é uma posição identificatória contratransferencial - é "convocado" e "dirigido" pela transferência, entendida como colocação em ato de uma identificação da criança-no-paciente.

Formular uma interpretação sobre o funcionamento da dupla significa tentar reconhecer "quem" o analista está sendo na cena relatada, em complemento a "quem" no paciente. Escuta analítica e imaginação metapsicológica são condições para isso.

 

Escuta analítica em seminário clínico

No seminário clínico, o coordenador e o grupo não estão diretamente implicados na cena relatada pelo analista, o que torna mais simples a tarefa de escutar analiticamente não apenas o paciente, mas a situação total do relato da análise (Klein, 1952/1991). Pois, ao relatar o caso, o colega comunicará elementos verbais e não verbais preciosos: os afetos que aparecem em seu tom de voz; as palavras e expressões que usa para falar do caso; o clima emocional que seu relato vai produzindo; elementos contidos na própria estrutura de suas interpretações; e todos os efeitos variados que o relato produz nas pessoas do seminário - amplificando-se, como em uma caixa de ressonância. Todos esses elementos comunicam "quem" o analista está sendo, o que nos permite reconhecer "quem" no paciente está convocando transferencialmente aquele objeto.

O seminário clínico é um espaço/tempo onde pode acontecer uma experiência psicanalítica "aqui e agora", na qual o grupo pode fazer uma articulação teórico-clínica "ao vivo", o que deixará a marca da experiência emocional vivenciada ali, e não apenas a lembrança (que também pode ser muito útil) de ter "falado sobre" algum assunto.

Na situação que descreveremos abaixo, a analista apresenta o caso de um paciente melancólico, difícil e pesado. Por vezes, sente-se cansada de tentar manter viva esta análise. Conta para as pessoas do grupo, com quem já tem certa intimidade em função do percurso institucional comum, que em alguns momentos se anima e pensa consigo mesma: "ufa, agora vai!" Mas esse sopro de vida logo se esgota. Neste seminário foi possível usar nossa "imaginação metapsicológica" para tentar reconhecer "quem" - que aspecto do objeto primário - falou pela boca da analista, dirigindo-se a "quem" - que aspecto da criança-no-paciente.

A analista conta que Joel é um homem de meia idade, divorciado, um filho. Está em análise há mais ou menos cinco anos, com frequência de uma sessão por semana. Formado pela USP, foi sócio de uma importante empresa à qual dedicou sua vida por décadas. Gozava de excelente posição financeira. Inesperadamente, por ocasião de uma crise do mercado, vários sócios foram dispensados e Joel também. Recebeu uma quantia de dinheiro considerável por sua parte. Mas continuou a viver como se nada tivesse acontecido até todo o dinheiro acabar. Não conseguiu se reerguer. Ao perceber sua situação, seus irmãos o acolheram e procuraram ajuda especializada. Até hoje mora com uma irmã aposentada, da qual passou a depender, mergulhando em um quadro melancólico.

Nas sessões, permanece em silêncio longo tempo; as coisas demoram a engrenar. Quando fala é para se queixar de que nada dá certo, que ele não vale nada, que está sem ação. Não há contato com uma vida interior, emoções, fantasias. Quando a analista intervém, ele escuta e responde em um nível concreto. Seu discurso é tangencial e descritivo, por vezes prolixo. A analista sente como tendo que "tirar leite de pedra" para aproveitar algo do material.

Ao longo desses cinco anos, a analista conta que foi colhendo outros dados significativos. Quando o paciente se apresentou, logo de cara disse ser "temporão". Para ele, isso era uma característica essencial. Investigando um pouco mais, a analista descobre que o sentido que ele atribuía a esse fato era "ter vindo ao mundo para atrapalhar a vida de sua mãe". Esta era uma esforçada dona de casa e boa cozinheira; tinha muito trabalho e filhos para cuidar; ele atrapalhava.

Na época de seu nascimento, seu pai faliu e afundou no álcool. Passou a viajar e ausentar-se da casa para fazer bicos e mandar algum dinheiro. Quando presente, "dava show de bebedeira" Passaram necessidades de todo tipo. O casamento acabou. Sua mãe, uma mulher submissa e desamparada, continuou a fazer o mesmo de sempre: cuidar da casa. Porém, fazia isso mecanicamente, pois estava tomada pelo luto. Havia perdido tudo de uma vez - marido e estabilidade financeira. Além disso, viveu essa perda como humilhação. As filhas mais velhas - ainda adolescentes - passaram a sustentar o lar.

Outra lembrança significativa, uma das poucas recordações de sua infância, é quando o pai, diante das notas baixas que tirara na escola, afirmou: "ele é retardado, não vai conseguir nada".

A analista escolhe trazer uma sessão por escrito. Diz que é uma sessão atípica porque há um clima de angústia em vez de apatia. Um fragmento:

Trabalhei muito na semana passada. Fechei um negócio. Foi muito cansativo. O cliente não ajudou; cobrou muitos detalhes. Já concluí o trabalho, porém ele nem me pagou porque era pouco dinheiro. Tem aquele outro projeto do qual falei na semana passada, mas é pouca coisa, não dá para contar com isso. O cliente nem vai querer investir. Continua tudo igual.

Diante disto, a analista tenta abordar o clima emocional apontando algo de novo em meio ao mesmo, mas em vão. Joel continua em um tom desesperançado: "nem a tv funciona para me distrair" etc. Em certo momento, ele volta a falar de quando saiu da empresa: "Fiquei sem rumo, foi como se tivessem cortado minhas pernas".

Vemos aqui uma representação da perda irreparável do objeto de amor (a empresa), o que provoca um colapso narcísico. Não há separação sujeito-objeto, e por isso, perdê-lo é "como se tivessem cortado suas pernas". A empresa funcionava como eixo de sua identidade, condição para autoestima, autonomia e potência vital. Não ser mais sócio da empresa é vivido por ele como ser remetido ao nada. Os elementos melancólicos se tornaram evidentes para o grupo, que fez associações em torno dessa referência.

 

Articulando o universal da teoria...

Lembrando que em Luto e melancolia (1917/1982) Freud afirma que o ódio ao objeto e as autoacusações do melancólico andam juntos, os participantes do seminário perguntaram: ele não sente ódio do ex-sócio? Para surpresa de todos, a analista respondeu que não. Percebemos então a diferença entre uma teoria geral, que orienta nossa escuta, e uma teoria "sob medida" a ser construída para cada paciente, tendo a teoria geral como pano de fundo.

Durante a elaboração deste texto, pudemos argumentar que a depressão é apenas um sintoma que pode ocorrer em função de estruturas e dinâmicas psíquicas muito diferentes. Nessa linha, a contribuição de Bleichmar (1997) é preciosa. Ele não coloca todas as depressões no mesmo saco. Defende que, para a psicanálise, diferentemente da psiquiatria, o sintoma não é suficiente para o entendimento do quadro depressivo: precisamos da metapsicologia. Freud (1917/1982) afirma que na melancolia há uma perda, real ou imaginada, de um objeto investido narcisicamente. Mas, como observa Bleichmar, não é a ausência em si mesma do objeto que produz esse afeto penoso, mas o significado que se atribui a essa perda.

Para ele, o núcleo comum a todas elas é o sentimento doloroso de desesperança com relação à possibilidade de realização do desejo. Mas isso não basta: é preciso também que o sujeito se sinta impotente para alterar esse estado de coisas, tanto no presente quanto no futuro.

O mesmo autor distingue diferentes caminhos de entrada na depressão. Um deles é o ódio que o superego sádico alimenta em relação ao ego. O sadismo pode ser exercido impondo ao ego ideais inatingíveis e/ou atacando e destruindo sua autoestima. Nos dois casos estamos diante de depressões narcísicas, em que o sujeito se desvaloriza, sente vergonha por ser como é e se sente indigno do amor do objeto.

Ele reconhece aqui o papel central da identificação: o sujeito pode se identificar com figuras parentais depressivas, mas pode se identificar com a imagem desvalorizada que essas figuras têm dele. Além disso, reconhece a importância de experiências traumáticas, especialmente as perdas precoces. Perdas recentes podem entrar em ressonância com elas, reativando ou potencializando um estado depressivo.

Voltando ao material clínico. O paciente sente que chegou ao mundo para atrapalhar sua mãe, que estava desamparada e deprimida. Podemos supor uma mãe que, nesse momento, estava psiquicamente morta para sua criança (Green, 1988). Ela cumpriu suas obrigações, porém mentalmente ausente. Um objeto primário morto. Além disso, os fragmentos sugerem uma relação indiferenciada e de dependência mútua com o objeto primário - no relato, representado pela irmã.

Segundo Green, há vários tipos/graus de "complexo da mãe morta" (1988, p. 247). O quadro clínico depende do momento em que se produz a depressão/desinvestimento por parte da figura materna. No caso de Joel, a analista imagina que ele já não fosse bebê, pois bem ou mal teve uma vida amorosa, cuidou de um filho que nasceu com malformação congênita, e estava estabilizado profissionalmente. Citamos agora Green:

Esses sujeitos têm uma vida profissional mais ou menos satisfatória, casam-se, têm filhos. Por um tempo, tudo parece em ordem. Mas logo a repetição dos conflitos faz com que os dois setores essenciais da vida, amar e trabalhar, se revelem como fracassos: a vida profissional, mesmo quando profundamente investida, torna-se decepcionante, e as relações conjugais conduzem a perturbações profundas do amor, da sexualidade, da comunicação afetiva (1988, p. 255).

No grupo, fizemos a hipótese de que a figura paterna pode ter lido as dificuldades da criança como evidência de seu próprio fracasso, e se defendeu atacando o narcisismo da criança: "você é retardado, não vai conseguir nada" injunção à qual o paciente se identificou.

 

... ao singular deste caso

A partir disso, podemos supor que, no caso de Joel, há vários caminhos de entrada na depressão, que se potencializam mutuamente.

De um lado, pensando no papel das identificações, há uma identificação narcísica primária com a mãe morta, isto é, com o buraco deixado pelo desinvestimento do objeto primário. É uma identificação em negativo. Essa identificação primária será a base sobre a qual irão se constituir as identificações narcísicas secundárias que, no caso de Joel, não são menos desalentadoras. Temos notícias da imagem desvalorizada que a figura do pai lhe transmitiu ("você é um retardado").

Ao funcionar como um retardado, vai colecionando fracassos que confirmam essa auto-representação. Joel disse: "Eu não conseguia me lembrar da legislação, fiz o escritório perder dinheiro" Por outro lado, na vertente do trauma, podemos considerar a perda precoce da mãe como traumática e inferir que o sujeito - preso na compulsão à repetição em suas relações de objeto posteriores - repetirá a antiga defesa diante da mãe morta: o desinvestimento do objeto. Esse trauma inicial será reativado pela rejeição do sócio, a quem ele admirava e considerava "um pai". O único vínculo amoroso que sobreviverá é aquele estabelecido com sua irmã/figura materna.

Temos ainda a perda da representação valorizada de si ("não sou mais sócio da empresa") e também a perda de seu referencial de pertencimento (a empresa era sua família, o sócio era "seu pai bom"). Vemos também a tirania do superego sádico, que ataca o ego quando Joel diz que "mereceu ser mandado embora", pois funcionava como um retardado.

A análise parece estar correndo o mesmo risco de desinvestimento. Durante o seminário isto ficou evidente. Ao apresentar o caso, a analista se percebeu cansada, por momentos, de atender esse paciente. Ela também se reconheceu ativa demais nas sessões, intervindo mais do que com outros pacientes. A natureza de suas intervenções mostra suas tentativas de resgatá-lo do pântano melancólico ("Veja, há algo novo no que você está dizendo hoje..."). A resposta do paciente, sua adesão à representação fracassada de si ("nem a TV funciona..."), mostra a inutilidade desses esforços. A analista contou que precisa fazer um intenso trabalho psíquico para preservar sua função analítica e manter-se viva. Daí seu cansaço.

A pergunta do seminário ("onde está o ódio ao sócio que o mandou embora") nos levou à identificação desvalorizada de si ("sou um retardado, eu mereci"). Essa identificação representa o vínculo inconsciente ao objeto, bem como a forma pela qual interpretou sua rejeição: se ela (a figura materna) não se interessou por mim, é porque eu não merecia mesmo sua atenção. A criança se sacrifica para manter vivo e idealizado o objeto que, apesar de ser fonte de dor, é amado e necessário.

Em associação a tudo isso, ainda durante o seminário, a analista se lembra de algo que o paciente disse sobre o sócio em outra sessão. "É um excelente profissional, não sei como me aguentou por tanto tempo". Vemos aqui as identificações complementares: a idealização do objeto amado, que se mantém à custa do autodenegrimento.

Nesse ponto a analista resgata outra lembrança. O paciente dissera: "O pior foi o jeito com que me mandou embora. Me fez acreditar que eu não servia mais para nada". Aqui o objeto se isenta de toda e qualquer responsabilidade no fracasso dessa relação: se não deu certo é porque Joel não servia para nada. Por outro lado, este aceita a oferta identificatória que o sócio lhe faz, passando a se ver como alguém que "não servia mais para nada". Pode ser que não se sentisse suficientemente potente para recusá-la, mas pode ser que a tenha aceitado por amor ao sócio.

 

"Ufa, agora vai!"

Embora a construção teórica acima esboçada seja indispensável, não é suficiente. É necessário reconhecer também o que está sendo repetido na situação analítica. Quando o paciente "age" (atua, coloca em jogo, repete) uma identificação, convoca no analista a resposta conhecida, aquela que é seu complemento - e que corresponde à posição identificatória do objeto primário. Assim, nosso ponto de partida é tentar reconhecer qual é a posição identificatória inconsciente que a analista ocupa na cena transferencial. Temos os elementos conscientes: ela está cansada. Mas para ter acesso aos elementos inconscientes será preciso escutar seu relato com escuta analítica. Os elementos que nos interessam surgirão nas brechas.

Foi assim que aconteceu nesse seminário. Em certo momento alguém comentou: "mas, cinco anos assim...". E, em um clima de espontaneidade geral, em que todos estavam se manifestando de forma livre e respeitosa, a analista foi contando que, ao longo desses cinco anos, o paciente começou vários projetos. Eram momentos em que ela se animava, pensando: "ufa, agora vai!". Mas que não deram em nada.

Perguntando sobre os tais projetos, descobrimos que eram um tanto fantasiosos, oriundos - nas palavras da analista - de um falso self. Tais projetos representavam, talvez, as tentativas do paciente de oferecer algo de bom a sua analista para que ela o aguentasse um pouco mais. É como se Joel "soubesse" que é uma decepção, e que ela, apesar de sua preocupação, está ficando frustrada e irritada com ele. A situação corre o risco de chegar a um impasse.

 

Usando a "imaginação metapsicológica"

Dentro do referencial teórico exposto na Introdução, e atentos ao que entendemos ser a função de um seminário clínico, usamos a "imaginação metapsicológica" para tentar reconhecer "quem", na analista, exclama "Ufa, agora vai!". A exclamação, de alta carga emocional, provém de "alguém-nela" que vê, finalmente, alguma luz no fim do túnel. É a voz de um objeto que vislumbra, com alívio, o fim de alguma dor surda, contínua, porém obscura. Essa dor, até então pouco reconhecida, precisa ser acolhida e nomeada, inicialmente pelas pessoas do seminário, e em seguida por ela mesma.

Com esses elementos podemos imaginar que a analista dá forma e vida a um objeto primário que experimenta um sofrimento narcísico crônico, intensificado por sua ambivalência com relação à criança-no-paciente - cujo sofrimento, em função de seus próprios fracassos, também a toca. Enfim, é preciso imaginar que esta fala emerge da matéria psíquica viva da analista tocada pela transferência; que emerge dos aspectos primitivos de sua mente, em sintonia fina com os conflitos inconscientes do objeto primário de Joel.

Uma construção (Freud, 1937/1982) pode nos ajudar a desenhar o objeto primário que se atualiza na situaçao analítica. Podemos imaginar uma relação precoce marcada pela tristeza da mãe por sua própria situação, e também por sua dificuldade em se conectar com a criança temporã - que chegou na hora do infortúnio familiar. Uma mãe já sem forças que, apesar de si mesma, vê o filho como mais um peso a carregar. Depois de tentar em vão reparar essa mãe absorta em seu luto, Joel recorre ao desinvestimento do objeto materno e à identificação inconsciente com uma "mãe morta". Daí sua desvitalização.

O problema não é a decepção ou a raiva do objeto primário, e sim que ele pode ter defendido seu narcisismo atacando o da criança, acusando-a de ser insuficiente ou insatisfatória ("o pior foi que meu sócio me fez acreditar que eu não valia nada"). A mensagem "Se você fosse boa eu te amaria" não chega a ser simbolizada pela figura parental, nem poderá sê-lo pela criança. O objeto não conseguiu conter em si a angústia ligada ao sofrimento nar-císico, evacuando-a como elementos-beta. A criança se identifica como sendo "aquela que não é suficientemente boa para ser amada". A psique em formação se organiza/desorganiza para alojar em si os elementos-beta evacuados pela figura parental (Minerbo, 2010). A identificação primária constituída em um vínculo com essas características será algo na linha de "sou insuficiente e insatisfatório". Temos notícias disso por meio da observação de Joel: "não sei como ele (o sócio que o mandou embora) me aguentou tanto tempo".

Ao contrário da figura materna, a analista tenta tolerar em si a ambivalência, e adota ativamente a postura de manter-se viva e receptiva para a criança-no-paciente. O que não quer dizer que ela não tenha o receio de chegar ao ponto de agir a partir dessa identificação, "expulsando" o paciente de dentro de si (como o sócio e a ex-mulher), e de ser transformada na mãe morta.

Por isso esse "Ufa, agora vai!" foi tão tocante. As pessoas do seminário se identificaram com ela e foi possível falar abertamente do sofrimento narcísico, frustração e raiva que ela vinha sentindo com relação ao paciente. Pudemos dar legitimidade a afetos difíceis de serem reconhecidos e aceitos para, oportunamente, serem transformados em uma interpretação.

 

Um caminho possível

Esboçamos uma estratégia terapêutica a partir desse "diagnóstico" da situação trans-ferencial, feito durante o seminário: ir construindo junto com o paciente uma narrativa simbolizante sobre as vicissitudes e a complexidade dessa história emocional; como Ogden nos sugere ao longo de sua obra, ajudando o paciente a sonhar os sonhos que nunca foram sonhados. A narrativa poderia ir entrelaçando, em três níveis distintos, a dinâmica que tomou corpo na situação analítica:

◆ O ponto de partida poderia ser a história atual com o sócio, a quem ele decepcionou. É o nível que está mais vivo e próximo de sua consciência, já que ele ainda vive a história como se tivesse acontecido ontem. A história infantil do "temporão" que se via como um peso para a mãe. Nesse nível o paciente poderá eventualmente reconhecer qual foi a leitura que ele fez dos fatos, levando à identificação com o "retardado".

◆ E a história da análise, nível no qual a frustração e decepção da analista - parcialmente identificada com o objeto primário de Joel - foram elaboradas e integradas. É a partir dessa nova posição, já desidentificada do objeto primário, que suas intervenções poderão ser operativas.

Além disso, depois do seminário, a analista percebeu quanto seria importante mudar a dinâmica semanal das sessões, que lembravam uma missa semanal, um culto a um morto - à mãe morta. Segundo Green,

[...] toda a estrutura do sujeito visa uma fantasia fundamental: nutrir a mãe morta, para mantê-la num perpétuo embalsamento. É o que o analisando faz com o analista: nutre-o com a análise, não para viver melhor fora dela, mas para prolongá-la num processo interminável (1988, p. 261).

Finalizamos este relato destacando a importância do clima emocional que permeia cada seminário, como elemento facilitador ou inibidor do surgimento de manifestações grupais e individuais - que, neste caso, propiciou tanto a irrupção do "Ufa, agora vai!" como a aceitação da "interpretação supervisiva" que se seguiu.

 

Referências

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Pereira-Leite, E. B. (2005). A escuta e o corpo do analista. Tese de doutorado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Marion Minerbo
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Tel.: (11) 3898-0074
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Abigail Betbedé
Al. Joaquim Eugênio de Lima, 881, cj 612
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Recebido em 25.4.2012
Aceito em 14.9.2012

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