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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.47 no.1 São Paulo jan./mar. 2013

 

ARTIGOS

 

Mira Schendel e psicanálise: sussurrar do invisível1

 

Mira Schendel and psychoanalysis: the whisper of the invisible

 

Mira Schendel y el psicoanálisis: susurro de lo invisible

 

 

Alessandra Affortunati Martins Parente

Psicanalista e doutoranda em Psicologia Social pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo IPUSP

Correspondência

 

 


RESUMO

O artigo tece aproximações entre o trabalho de Mira Schendel e a psicanálise lacaniana, principalmente em torno da noção de vazio. Esta se desdobra tanto nas obras de Schendel como na clínica psicanalítica lacaniana, e seus contornos ganham diferentes formas e corpos. Tal preocupação os conduz ao zen-budismo, interesse pouco explorado, mas presente em passagens da obra de Jacques Lacan. Um recorte de um caso clínico e a análise de algumas monotipias de Mira Schendel mostram os encontros entre clínica psicanalítica e artes visuais.

Palavras-chave: Mira Schendel; Lacan; psicanálise; vazio.


ABSTRACT

The paper presents similarities between Mira Schendel's work and Lacanian psychoanalysis, particularly concerning the notion of emptiness. This notion unfolds itself in Schendel's works, as well as in the Lacanian psychoanalytic practice, and its outlines gain different shapes and bodies. This concern leads to an interest in Zen Buddhism, little explored, but present in passages of Jacques Lacans work. A part of a clinical case and the analysis of some of Schendel's monotypes show a relation between psychoanalytic practice and visual arts.

Keywords: Mira Schendel; Lacan; psychoanalysis; emptiness.


RESUMEN

El artículo presenta las similitudes entre la obra de Mira Schendel y el psicoanálisis lacaniano, en particular alrededor de la noción de vacío. Esta se desdobla tanto en las obras de Schendel como en la clínica psicoanalítica lacaniana, y sus contornos adquieren diferentes formas y cuerpos. Esta preocupación les lleva al budismo zen, un interés poco explorado pero presente en algunos pasajes de la obra de Jacques Lacan. Un recorte de un caso clínico y la revisión de algunos monotipos de Mira Schendel muestran los encuentros entre la clínica psicoanalítica y las artes visuales.

Palabras clave: Mira Schendel; Lacan; psicoanálisis; vacío.


 

 

Ao mesmo tempo em que se expressa por meio de recursos somente pensáveis na atualidade, a arte de Mira Schendel conserva certo anacronismo. Se por um lado a artista acata procedimentos, técnicas e materiais pertinentes ao contexto artístico contemporâneo, por outro, o modo como trata o tempo, o espaço, bem como o conteúdo de seus trabalhos, parece ir na contracorrente do ethos recente. Isto não ocorre, no entanto, porque Mira Schendel ignore o momento histórico no qual está inserida. Ao contrário, em sua arte parece haver a intenção de devolver o devido peso a aspectos desprezados ou relegados ao esquecimento por nossa cultura. Schendel assopra em direção às miudezas que compõem a vida, conferindo a elas a dimensão que merecem.

Ao se debruçar sobre as origens da linguagem, a corporeidade de diferentes traços, palavras e letras, o vazio produtivo ou o silêncio ativo, a arte de Mira Schendel aponta para temas relevantes da clínica psicanalítica. A função da palavra na psicanálise e a posição do analista frente ao paciente são alguns pontos suscitados pela sua obra. Um estudo mais aprofundado de sua produção, contudo, revela existir nela uma preocupação com questões ontológicas, senão místicas ou religiosas. Não seria o caso de ignorar o que direciona as intenções de Mira Schendel para simplesmente adequá-las aos interesses deste trabalho, cujo foco é a psicanálise. Também não seria o caso de desprezar o sujeito do inconsciente - dividido - para cair numa ontologia que define o ser em sua essencialidade ou numa visão em que a fé se sobressai à razão. Respeitando, portanto, os caminhos trilhados pela artista, e retomando simultaneamente pontos da psicanálise, o objetivo aqui é mostrar como a imbricação de uma leitura das obras de Mira Schendel com uma visão da clínica psicanalítica pode ser fértil.

Para tanto, é necessário desconsiderar análises mais imediatas a respeito do pensamento lacaniano, segundo as quais este teria heranças do estruturalismo francês e da racionalidade lógica. Surge, então, um Lacan que, em sua vasta erudição, trata de aspectos religiosos orientais e do próprio cristianismo - assim como o faz Mira Schendel - e de uma ontologia que, de acordo com alguns estudiosos de sua obra, é precisamente negativa. Se tanto a psicanálise lacaniana como o trabalho de Schendel abordam aspectos que tocam temas transcendentais, estes, entretanto, não se sobrepõem ao corpo ou à matéria. Como se sabe, a primazia do corpo sobre algo que possa ser considerado espiritual é marca diferencial da psicanálise freudiana. Lacan segue o mestre nesse ponto ao declarar: "Quem não vê que a alma não é outra coisa senão a identidade suposta a esse corpo, com tudo que se pensa para explicá-lo? Em suma, a alma é o que se pensa a propósito do corpo - do lado do manche" (Lacan, 1975/1985, p. 150).

Acerca de sua produção de monotipias, Schendel (citada por Marques, 2001, p. 27) declara que seus desenhos deveriam "brotar da 'barriga'". Paulo Celso de Moura Silva - o frei Paulo de Tarso - esclarece a religiosidade de Mira Schendel ao dizer:

No fundo ela tinha uma preocupação com a mística. [...] Quando eu falei que Mira era mística, quero dizer que ela era uma pessoa enraizada no real, procurando uma justificativa desse real. Para mim, o místico é aquele que sai da matéria para chegar além da matéria. Se ele não assume a matéria, ele não é místico, é alienado. Mira brigava com a matéria. Ela nunca fez nenhuma concessão para fugir do real da matéria (citado por Souza Dias, 2009, pp. 126-127).

A respeito de questões ontológicas na psicanálise, Safatle (2006b) diz: "a ideia tradicional de que, no núcleo do projeto lacaniano, encontraríamos um simples movimento de leitura estru-turalista do inconsciente e da dinâmica de suas formações" deve ser substituída pela perspectiva de que o projeto lacaniano seria "dotar a metapsicologia de um estatuto ontológico" (p. 155).

Ao iniciar seu artigo "A teoria das pulsões como ontologia negativa" com a seguinte frase de Lacan: "Eu tenho uma ontologia - por que não? - como todo mundo tem uma, ingênua ou elaborada" (Lacan, 1973, p. 69, citado por Safatle, 2006b, p. 153), Safatle pretende indicar que tamanha desenvoltura e naturalidade em um pronunciamento como este não deixam de remeter a um paradoxo: uma ontologia seria compatível com uma práxis que tem em vista a singularidade de um sujeito, que além de tudo se mostra dividido - isto é, sem que se pense em um ser ou essência? A tese de Safatle é a de que Lacan tentou reorientar a clínica psicanalítica através da centralidade da pulsão de morte.

Ao contrário do que se via nas elaborações psicanalíticas anteriores, na visão de Lacan, o problema clínico não será o de limitar o impulso de destruição próprio da pulsão de morte, tendo em vista a viabilidade de processos que ampliem o movimento de ligação pulsional. Como a unidade almejada por Eros supostamente vincula-se à projeção e introje-ção de imagens do eu, estas devem ser precisamente rompidas, dado o seu caráter fundamentalmente narcísico e imaginário. Nesse sentido, na psicanálise lacaniana, a pulsão de morte é compreendida de forma mais abrangente, não se limitando à repetição compulsiva do instinto de destruição. O isso, como caldeirão do elemento pulsional, ganha destaque, diferentemente do que ocorria na perspectiva dos sucedâneos de Freud, que privilegiavam o eu. É possível, inclusive, afirmar que, para Lacan (Safatle, 2006a), o sujeito (je) está precisamente onde emerge o isso. As figuras do negativo ganham nova dimensão na clínica psicanalítica, e a pulsão de morte tem um estatuto inteiramente novo na psicanálise. Sendo ela um conceito ontológico, a própria negação assume o posto de acesso à essência. Tal negação se expressa na irredutibilidade própria à pulsão de morte, que se satisfaz pela potência negadora da linguagem quando esta se liberta de suas ilusões realistas. Para Safatle (2006b), a ontologia deixa de ser pensada "como o regime de discursividade positiva do ser enquanto ser" (p. 175, itálicos do autor). Convém, então, designar a ontologia própria à psicanálise como negativa, isto é, um pensamento que tem como base a realidade ontológica das experiências de negação. Diferentemente de uma ontologia positiva, que padroniza os campos da práxis ao estabelecer de antemão os modelos com os quais trabalha, uma ontologia negativa aponta para o que transborda de uma saturação do ser determinado positivamente.

Considerar a negatividade produtiva nas obras de Mira Schendel é uma constante em análises de críticos e teóricos da arte. Segundo diversos autores (Marques, 2001; Salzstein, 1998; Souza Dias, 2009), a ênfase dada ao vazio, ativo e encarnado, aparece no conjunto de suas obras. O vazio torna-se fecundo nas mãos da artista, que concede consistência ao "quase nada". Tal vazio, como negação, também está presente no seu interesse pela experiência zen, que aparece coincidentemente nas elaborações psicanalíticas de Lacan. O livro 1 de O Seminário começa assim:

O mestre interrompe o silêncio com qualquer coisa, um sarcasmo, um pontapé. É assim que procede, na procura do sentido, um mestre budista, segundo a técnica zen. Cabe aos alunos, eles mesmos, procurar a resposta às suas próprias questões. O mestre não ensina ex-cathedra uma ciência já pronta, dá a resposta quando os alunos estão a ponto de encontrá-la (Lacan, 1975/1986, p. 9).

O pontapé inicial do mestre zen é um gesto de ruptura que surpreende as expectativas do ouvinte. Por meio de ações desse tipo, o mestre zen rompe com as categorias de pensamento pressupostas na própria formulação de uma dúvida daquele que o interpela. A estratégia desconcertante visa a quebrar os padrões de pensamento já estabelecidos e reconhecidos pelo eu. O repertório de identidade do eu não é confirmado pelas respostas do mestre zen, mas, ao contrário, com um pontapé, o que se torna evidente são suas limitações. O abalo do eu mostra a inconsistência do convencional, que se torna vazio. O interesse de Lacan pela técnica zen se deve não à sua preocupação em recusar sistemas, mas principalmente, como expressa Camargo (2005), "trata-se de definir, no âmbito da clínica psicanalítica, a pertinência e o alcance da superação desse sistema, o eu" (p. 7).

Desembaraçar-se do eu é, assim, tema da psicanálise lacaniana. A alienação o habita, integrando uma unidade ilusória - mas necessária - na fase do espelho. Erguer tal imagem do próprio corpo só é possível após o corpo pulsional pré-especular sofrer uma série de incisões. Esses pedaços extirpados, que se tornam estrangeiros à imagem do eu, paradoxalmente exercem uma força de atração intensa para o sujeito do desejo. O enredo vivido nessa formação da imagem do eu, com partes excluídas do sujeito, é que será o motor de pensamentos não atrelados à imagem especular narcísica, ou seja, será aquilo que impulsiona o desejo e delineia o objeto que o causa - o objeto a. Este se localiza em um ponto de tensão entre o que está dentro e o que está fora do corpo, entre o que é mais próprio e o que é inteiramente estranho ao sujeito, entre o que é atraente - por de certa forma lhe pertencer - e o que é repulsivo - por não ser parte integrante da imagem constitutiva do eu.

Se o eu estremece na metapsicologia lacaniana, é evidente que a dupla analista-ana-lisante não se consolida tendo-o como base. A clínica psicanalítica (cf. Camargo, 2005) não está fundada em uma lógica identitária, capaz de sugerir a viabilidade de uma relação de complementaridade, que subverte o pensamento próprio à psicanálise freudiana. Sua lógica, inversamente, visa à antítese ou à diferença. Em relações identitárias, as figuras da negação são obstruídas por uma presença massiva, que alimenta um modo de funcionamento psíquico narcísico. A presença do vazio na escuta psicanalítica - esta concavidade, cuja imagem é traduzida como "tina" por Laplanche - é substituída, nas Ego Psychology ou, mesmo, por alguns psicanalistas ingleses, por uma posição fálica da qual o paciente se sente refém. O efeito é uma ilusão de que a condição humana de desamparo possa ser suturada.

Por isso, à imagem integrada do eu contrapõe-se a experiência do vazio, que foge do excesso de sentidos circunscritos a uma linguagem dominada. Ele está na contracorrente de um "blá-blá-blá 'infernal'" (Lacan, 1975/1985, p. 157) do qual o sujeito não consegue se livrar. O mondo - estratégia adotada por mestres zen - impõe-se como corte na cadeia polissêmica de significantes. Camargo (2005) explica que, assim como ocorre na psicanálise lacaniana, o eu do budismo "carece de essência ou substância" (p. 10). A linguagem não é retrato de uma consciência isenta de furos, mas está permeada por sua própria negação. Seu aspecto poroso, aliás, é o que lhe traz vida.

Nada mais coerente com a arte de Schendel do que essa ideia. Como já mencionado anteriormente, a artista enfatiza o vazio em suas obras. Marques afirma: "a noção do vazio [...] foi uma constante na obra de Mira" (2001, p. 19). Sua atração pelo vazio expande-se no conjunto de seus trabalhos. Ela mesma assinala o fato: "O espaço vazio me comove profundamente"; "o que importa na minha obra é o vazio, o vazio em atividade" (citada por Marques, 2001, p. 20 e 29). Assim, "o vazio que se apresenta em suas pinturas não é apenas ausência de objetos representados no plano: evoca a idéia de uma negatividade produtiva, próxima do pensamento oriental" (Marques, 2001, p. 20). Sua busca por uma "geometria de ausências", na expressão de Haroldo de Campos, mostra que ela concede corpo ao vazio. Dele emanam galáxias de letras, traços ou linhas. O vazio não é apenas um pano de fundo através do qual se exprimem esses gestos, mas sua tessitura própria é também cavoucada. A transparência de acrílicos ou o branco translúcido do papel-arroz japonês, o espaço ocupado pelo ar entre uma obra pendurada e sua sombra, planos brancos em madeira que sustentam os sarrafos são apenas indícios do vazio, uma forma de indicar sua existência.

No caso de Mira Schendel, o zen rompe com figuras seguras e harmônicas. Ao falar sobre suas Droguinhas, Mira Schendel declara: "De um ponto de vista oriental, bem, são relacionadas ao zen", estão "em franca oposição ao 'permanente e ao possuível'" (citada por Marques, 2001, p. 35). Na opinião de Mario Schenberg e Haroldo de Campos, Mira visava em seus trabalhos ao vazio sunyata da estética budista oriental (Souza Dias, 2009, p. 192). Assim como na filosofia oriental, as obras de Mira Schendel seguem uma dinâmica própria em constante mutação: remetem ao "vazio", já que não são entidades autônomas, mas estão em movimento contínuo. Os traços e gestos estão relacionados uns aos outros, e os fenômenos se interligam permanentemente, sem essência fixa ou imutável.

Vale salientar que, assim como Lacan não conseguia se dobrar aos ditames das instituições psicanalíticas, preservando sempre seu lugar extraterritorial, a preocupação de Mira Schendel com "uma recusa tanto à ordenação violenta da realidade quanto às significações impositivas" (Naves, 2010, p. 57) não é uma forma de seguir a filosofia oriental. Ao contrário, parece que sua condição de não adequação e de extraterritorialidade a conduziram ao pensamento zen. Não à toa Gromholt pôde afirmar: "Na verdade ela não era difícil. Ela era simplesmente Mira" (citado por Souza Dias, 2009, p. 240).

 

Vozes de letras, cores e palavras

Entre os anos de 1964 e 1966, Mira Schendel dedica-se à produção de cerca de 2 mil trabalhos baseados na técnica da monotipia. As gravações são feitas em tiras de papel-arroz japonês, cortadas e justapostas. Os papéis agem como filtros que absorvem os desenhos de uma placa de vidro cheia de tinta e talco. A distinção entre frente e verso é tênue; o olhar atravessa letras e formas delicadas e, ao mesmo tempo, extremamente impactantes. São movimentos singelos que penetram nesses suportes sensíveis: nas monotipias, a suavidade de um gesto destaca fragmentos sutis, quase inexistentes. A presença de linhas, letras, palavras, cores é possível graças ao fundo de ausência que se destaca nesses trabalhos.

Ao eleger o poroso papel-arroz para absorver seus traços, Mira Schendel põe o espaço em relevo. Segundo Souza Dias (2009), o Gesang der Jünglinge, que inspirou a artista nessa série de trabalhos, concede uma espacialização ao som, quando Stockhausen prescreve nas partituras "grupos de alto-falantes distribuídos em círculo ao redor dos ouvintes" (Souza Dias, 2009, p. 189). Como diz Merleau-Ponty a respeito da música: "A música [...] está muito aquém do mundo e do designável para figurar outra coisa senão épuras do Ser, seu fluxo e seu refluxo, seu crescimento, suas explosões, seus turbilhões" (Merleau-Ponty, 1964/2004, p. 15). Mira Schendel vislumbrava na transparência do papel justamente o efeito de um eco musical. O impacto do mundo reverbera de um espaço oco. Nele, o próprio silêncio ganha consistência e se torna eloquente. Somente por meio dessa extensão límpida se elevam elementos antes imperceptíveis. Uma voz inarticulada, ou um balbucio, se materializa ao erguer forças antes adormecidas. Essas obras tocam o abismo da percepção, suspendendo corpos que antes prescindiam de envergadura.

O papel deixa, assim, de ser um apoio para se tornar elemento fundamental na composição das obras dessa série. Por meio das monotipias, a artista trabalha a textura inerente a cada gesto transposto em seus traços; garimpa os grãos da linguagem, formas que reinscre-vem os rudimentos da escrita, da fala, da comunicação, do gesto. As letras, as palavras e os traços ganham espessura em meio à vastidão do papel e recuperam a estranheza existente na linguagem, perdida no seu uso automático e corriqueiro. As palavras desgastadas aparecem em sua plenitude pictórica; as letras, consideradas meras unidades de ligação na formação de palavras, têm sua potência distendida, cada traço mostra suas nervuras. Surpreendem pelo seu desenho, sua multiplicidade, sua sonoridade, sua corporeidade. As cores, por sua vez, reverberam em sua simplicidade.

Trata-se de subtrair todo e qualquer excesso para ampliar farelos quase esvoaçantes. Na ausência, a artista encontra a vibração de componentes essenciais. É como se ela abanasse levemente sobre a matéria que se acumula em torno de um gesto rudimentar para lhe dar a devida dimensão, antes não percebida. O que resta é uma visão microscópica, por meio da qual algumas estruturas - que sem as lentes permaneceriam inexistentes - se dilatam. Dito de outra forma: Mira Schendel trabalha como cientistas que descobrem, em seus laboratórios, detalhes dos movimentos de seres antes invisíveis. O que parecia inerte recupera vida. Daí sua condição de extemporaneidade: no interior desse mundo do excesso, do espetáculo, do acúmulo, Mira Schendel trabalha com o "quase nada" (Salzstein, 1998, p. 162).

A impressão é a de que, ao executar suas monotipias, o corpo de Mira Schendel ganha autonomia e exala uma espontaneidade que a devolve a si mesma de forma exultante. Encontramos em algumas obras frases como: "Ah come mi diverto!" ou "Che bellezza di disegno" ou simplesmente "Que beleza". O seu entusiasmo reflete um mundo que se inaugura por meio de suas mãos, e ela já não se contém. Não à toa, a quantidade de trabalho executado é prodigiosa - sua alegria de fundar uma nova língua não pode se permitir uma pausa.

Embora não seja possível negar a presença de todo um "alfabeto enfurecido"2 na obra de Mira Schendel, salta aos olhos a presença frequente da letra a em grande parte de suas monotipias. Em um de seus trabalhos (Sem título, 1960), há no papel arroz um círculo vermelho pintado com ecoline do qual saem várias letras aa manuscritas em nanquim e um único b. A aparição da letra a é recorrente em suas obras. Não há nada que explique esta preferência, mas dificilmente se trata de uma escolha aleatória. A obra mencionada, se observada como figura, pode remeter a uma boca escancarada, da qual se alastra o som da letra a com a única variação de uma letra b. Pronunciar o som da letra a não parece exigir esforço, ao contrário do que ocorre com as outras consoantes ou vogais. Se pronunciarmos os sons de b, d, ou p, por exemplo, a boca terá que se moldar a eles. No caso do a, basta abrir a boca e soltar a voz: o som reverberante é o do a. Não por acaso, é este o grito, com diferentes sonoridades, que soltamos diante da dor, da angústia, do susto, da surpresa. Antes de elaborar qualquer outra manifestação, é o a que se expressa quase como um reflexo. Do abismo da boca esparramam-se desenhos de aa.

É interessante a coincidência que ocorre aqui entre o pensamento lacaniano e a escolha feita por Mira Schendel em várias de suas obras. Lacan considera que sua contribuição inovadora para a psicanálise é o conceito de objeto a. Por que tal objeto é designado pelo psicanalista como a é uma boa questão. Talvez se deva ao fato de ser o a inicial do termo autre, que se diferencia do A usado como símbolo de Autre. Entretanto, isso não é tão evidente, na medida em que, na obra lacaniana, o objeto a tem muitas conotações não atreladas ao autre. A palavra agalma, utilizada por Lacan para esmiuçar os efeitos do objeto a sobre o sujeito do desejo, não se relaciona diretamente com o autre. O que é notável nesta coincidência, entretanto, ultrapassa a mera escolha da letra. No vocabulário de psicanálise organizado por Kaufmann (1996), temos um subtítulo sugestivo para a definição desse objeto, numa direção que novamente se encontra com o pensamento de Mira Schendel: "o objeto como vazio" (p. 378).

Lemos no verbete objeto, do Dicionário enciclopédico de psicanálise (Kaufmann, 1996), que não há propriamente a ideia do objeto a, a não ser em seus estilhaços. Estes não abarcam, contudo, o objeto a de forma plena. Trata-se do objeto primeiro do qual não se tem ideia, sendo um objeto vazio. Elaborar o objeto como vazio é conduzir-se num processo de esvaziamento do gozo - o processo analítico. Os estilhaços de tal objeto armam um jogo com as pulsões parciais. O objeto a opera como fundo, sendo sua elaboração afirmar o próprio vazio como objeto. Se a falta de objeto ocupava o centro da psicanálise lacaniana, com a noção de objeto a, o desejo se impõe porque existe algo que o causa. Desse modo, da falta pura e simples passamos a um objeto que a encarna.

 

 

Assim como as "imagens linguísticas" de Mira Schendel "ultrapassam todos os esquemas nos quais você está acostumado a pensar; elas os saltam, elas se cruzam e se unem, elas destroem e constroem" (Mahlon, citado por Souza Dias, 2009, p. 246), para Lacan, no processo de análise, os cacoetes de nossos sentidos ficam em suspenso e um vácuo se impõe, sem conceder alento à nossa falta, fazendo, ao contrário, questão de anunciá-la. O eu cristalizado, que se sustentava em formas de funcionamento obsoletas, não mais condizentes com o que se apresenta para o sujeito, estremece. O passado inerte sofre um abalo, e o sujeito é obrigado a improvisar, descobrindo-se em gestos inaugurais.

Em outro trabalho, feito com ecoline e nanquim sobre papel, a palavra sim recebe destaque. Logo abaixo dela, está pintado um quadrado vermelho com consistência de tecido. É notável como o vocábulo escrito e a cor ganham concre-tude: a densidade da escrita e o vermelho que a acompanha concedem certo otimismo a esse simples sinal afirmativo. Mira Schendel devolve o caráter de continuidade próprio ao termo sim. Se aceito ou afirmo alguma coisa, o sim justamente indica que tal coisa não se encerra. No siiiiiimmmmm, tanto a vogal i como a consoante m indicam prolongamento e infinitude da palavra. Na língua portuguesa, a sonoridade do não indica um encerramento de possibilidades pela própria expressão do vocábulo formado pelas letras a, o e pelo til, ao contrário do sim, que sugere uma extensão do pensamento ou da ação. O modo como pronunciamos esses termos e as letras com as quais foram formados combinam com o sentido que eles têm e é a isso que Mira Schendel parece estar atenta.

 

 

Nessa série, letras aglomeram-se ou se mostram em sua singularidade, como ocorre na obra em que há vários uu e a palavra rot em vermelho. Nela, as letras tornam-se imagens de semicírculos, ferraduras, pássaros de desenhos infantis, círculos etc.

Em outra obra, a expressão mar atlântico é escrita em letra cursiva numa espécie de texto. Ora a palavra mar aparece unida a atlântico, ora separada, ora sem que o termo atlântico apareça. O a que compõe a palavra mar se prolonga por meio de outros aa. Neste caso, a palavra mar se estende e já estamos imersos no oceano, recobertos por ondas mais fortes ou mais leves. Esse "ziguezaguear", como expressa Haroldo de Campos em seu poema sobre Mira, reimprime a vitalidade perdida na cacofonia amortecida do cotidiano. O que importa ressaltar, porém, é que, nesta obra, vemos como a forma se sobrepõe ao conteúdo, ainda que este não deixe de ser relevante. Recuperar esses aspectos elementares da palavra é como criar um mundo. E, nesta posição quase divina de criação do mundo, a impressão é a de que Mira, acima de tudo, se diverte.

 

O vazio na clínica psicanalítica

O vazio que integra as obras de Mira Schendel também compõe, de diferentes formas, as sessões de análise. Tal vazio não é uma suposição abstrata do psicanalista, mas incorpora o silêncio de um paciente ou uma fala repetitiva e sem furos deste, que, exatamente por isso, se mostra vazia. Ou ele se alastra no oco que o analista oferece para que os diferentes timbres de voz, ou palavras inauditas do paciente, ganhem saliência. O vazio não significa falta de trabalho. Ao invés disso, sugere que há algo novo prestes a emergir. Para pensar o trabalho de Mira Schendel, Theon Spanudis (1964) usou a metáfora do sismógrafo, também aplicável à prática do analista. Tanto Mira Schendel como o psicanalista trabalham como sismógrafos da linguagem. Pequenos abalos sísmicos são gritos abafados de rebeliões subterrâneas avassaladoras. Dar corpo às migalhas que atravessam o vazio não é simplesmente dar voz ao que está soterrado, mas também negar o que até então predominava e se abrir para uma existência inédita.

A análise do paciente A. foi acompanhada pelo vazio, muitas vezes expresso pelo silêncio. No primeiro período de sua análise, sua voz era quase inexistente. O silêncio se alastrava pela sala em sessões intermináveis de clima extremamente árido. Contudo, o silêncio não ocupava o lugar de algo que não podia ser enunciado - tinha corpo, era uma presença. Som mudo. Muitas vezes, os rumores que vinham de fora do consultório tornavam-se protagonistas nos atendimentos. Os sons difusos e distantes pareciam mais altos do que a voz de A., e o canto dos pássaros ou o vento que batia nas folhas de uma árvore invadiam a janela da sala, compondo o enredo das sessões. Um latido, uma voz na rua ou portas vizinhas que se fechavam tornavam-se sons estridentes e ocupavam o espaço de forma perturbadora. Eram sons que emudeciam a ambos: a mim, como analista que esperava ouvi-lo, e a A., perdido em seu drama inarticulado. Os barulhos que vinham de fora eram incômodos e conversavam conosco, sem que tivéssemos exigido, concedido permissão ou pedido sua presença. Eram intrusos. Ao mesmo tempo, indicavam caminhos e desenhavam associações.

Mais alguns meses de análise, e a fala de A. passa a reverberar pela sala de atendimento - ali é lugar de falar. As palavras começam a desbravar o espaço e a escavar territórios intocados: são dignas de habitar um lugar. Palavras ganham relevo e cavidade. O timbre da voz de A. passa a sofrer pequenas variações, conforme o conteúdo do que é pronunciado. Ainda assim, para ele, falar continua sendo tão difícil quanto escalar um terreno íngreme ou caminhar por áreas acidentadas. Um discurso sóbrio e sensato, acompanhado de poucos afetos.

Pouco a pouco as palavras se tornam mais intensas. O fundo exterior à sala, que penetra nas sessões, agora é vago, quase inexistente. A textura da voz ganha corpo e colorido. Os afetos ficam mais vibrantes - torno-me depósito deles. Antes estavam contidos, agora extravasam. Certas palavras explodem do peito e ganham tonalidades diversas.

Numa das sessões, um corpo se impõe diante de mim, após um pedido para se sentar ao invés de se deitar, como de costume, no divã. Gestos, olhar, a fala esbaforida, a urgência - o ato. A intensidade da transferência na voz, na postura, nos olhos. O discurso ganha inúmeros componentes corpóreos, volumes diversos, vibração intensa, enfim, os sons agora aparecem encarnados.

Esse breve recorte de uma análise, no qual o conteúdo do que era dito foi suprimido, indica formas tênues de expressão. É evidente que nenhum gesto, fala ou voz acontece sem um conteúdo que os anime. Porém, o foco de nossa escuta recai muitas vezes para o conteúdo de tais falas, sem que, evidentemente, o modo como o afeto está ligado a ela seja desconsiderado. No entanto, ao enfatizar apenas o modo como algumas manifestações quase imperceptíveis aparecem, tais expressões podem se tornar, elas mesmas, conteúdo, e não mais uma forma que acompanha o texto proferido por uma voz.

Sustentar o silêncio ou o vazio que se anuncia em uma análise é um dos meios de perfurar a densidade de fantasias consolidadas. Nesse processo, o analista segue rumo ao objeto, que abandonou sua integridade e se mostrou fictício. Seu gesto incide sobre a cadeia de palavras, no momento exato em que ela se mostra inarticulada, titubeante, claudicante. Dessa falha é que emerge o objeto, que, sendo falta, precisa ser cifrado. Assim, a análise visa a esgotar o fantasma aprisionante que alimenta o sintoma de múltiplos sentidos, até que o real, à espreita, se aventure por novos caminhos, sem que o horror da angústia seja sua moldura. Não se trata, portanto, de esmiuçar o que contém o quadro - o analista não deve simplesmente traduzir a fantasia inconsciente, colocando-a em outros termos. O que está dentro da moldura precisa justamente ser deslocado, e o foco da escuta recai para fora desse limite, extrapolando as arestas para visitar o vazio, que se apresenta externamente ao quadro. Só lá novas viagens serão trilhadas, e o analista acompanha seu paciente nesses passos inaugurais.

Assim como a obra de Mira Schendel concede corpo e existência ao quase nada, analistas ficam de sobreaviso para fisgar em fantasias, sonhos ou pequenos gestos que saem dos trilhos, ou seja, nesses conteúdos evanescentes, que facilmente se dissipam, passos inaugurais que percorrem o vazio, emprestando a este novas cores e traços.

 

Referências

Camargo, A. C. (2005). Lacan e a arte zen do psicanalista: uma leitura da abertura e o primeiro capítulo do Seminário I. Percurso, (34), 5-14.         [ Links ]

Kaufmann, P. (1996). Dicionário enciclopédico de psicanálise. (V. Ribeiro & M. L. X. A. Borges, Trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

Lacan, J. (1985). O Seminário, livro 20: mais, ainda. (M. D. Magno, Trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1975).         [ Links ]

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Correspondência:
Alessandra Affortunati Martins Parente
Rua Girassol, 139/75
05433-000 São Paulo, SP
Tel.: (11) 2373-7646
aamparente@gmail.com

Recebido em 8.5.2012
Aceito em 14.8.2012

 

 

1 Agradeço imensamente a Ada Schendel por ter lido meu texto com cuidado e generosidade e concedido as imagens de alguns trabalhos aqui analisados. Quanto à expressão "sussurrar do invisível", assinalo que não é minha, mas foi adotada por Mira Schendel quando se referia a seu trabalho Ondas paradas de probabilidade (1969 - cf. Souza Dias, 2009, p. 157).
2 Nome dado ao catálogo da exposição feita no MoMa em 2010.

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