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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.47 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2013

 

INTERCÂMBIO

 

As transferências na psicanálise com crianças e adolescentes: narcisista, edípica, fraterna e a amizade de transferência

 

Transferences in the psychoanalysis of children and teenagers: narcissistic, Oedipal, fraternal and transferential friendship

 

Las transferencias en el psicoanálisis con niños y adolescentes: narcisista, edípica, fraterna y la amistad de transferencia

 

 

Luis KancyperI; Tradução Claudia Berliner

IMédico psicanalista, Membro titular com função didática, Professor do Instituto, Analista de crianças e adolescentes da Associação Psicanalítica Argentina APA, Autor de vários livros, dentre eles, Adolescencia: el fin de la ingenuidade (2007)

Correspondência

 

 


RESUMO

As transferências e contratransferências narcisista, edípica, fraterna e a amizade de transferência-contratransferência não são opostas nem excludentes. Possuem diferentes lógicas e, esclarecidas suas respectivas fronteiras e detectadas suas articulações, permitem obter um entendimento mais abrangente e, ao mesmo tempo, mais aguçado da multifacetária situação analítica com crianças e adolescentes.

Palavras-chave: narcisismo; complexo de Édipo; complexo fraterno; amizade; transferência.


ABSTRACT

The narcissistic, Oedipal and fraternal transferences and countertransferences, and transferential - countertransferential friendship are not opposites nor mutually excludent. They possess different kinds of logic and, when their respective frontiers are delineated and their articulations detected, they allow for a wider and more accurate understanding of the multifaceted situation of the analysis of children and teenagers.

Keywords: narcissism; Oedipus complex; fraternal complex; friendship; transference.


RESUMEN

Las transferencias y contratransferencias narcisista, edípica, fraterna y la amistad de transferencia - contratransferencia no son opuestas ni excluyentes. Presentan diferentes lógicas y, esclarecidas sus respectivas fronteras y detectadas sus articulaciones, permiten obtener una comprensión más abarcadora y a la vez más nítida de la multifacética situación analítica con niños y adolescentes.

Palabras clave: narcisismo; complejo de Edipo; complejo fraterno; amistad; transferencia.


 

 

Introdução

A análise de crianças e adolescentes se sustenta nos preceitos fundamentais que constituem o método psicanalítico e possui, ademais, uma particularidade no âmbito da configuração da situação analítica entre o analisante e o analista em virtude da intervenção dos pais. Essa particularidade é inerente à condição de dependência emocional, econômica e social estabelecida entre o filho e os progenitores, e não pode ser reduzida estruturalmente à situação analítica da psicanálise de adultos.

Os pais exercem uma presença contínua no horizonte do campo analítico e compõem, com o analisante e o analista, uma estrutura singular, que promove funções e efeitos próprios no analisante e, por sua vez, no analista. Mediante o trabalho analítico, o analista ressignifica sua própria criança ou adolescente em relação aos pais de sua história pessoal, assim como a relação vincular no par analítico (filho-analisante com o analista) ressignifica as situações narcisistas, edípicas e fraternas não resolvidas da história individual de cada um dos progenitores e do casal conjugal, exercendo neles constantes reestruturações que, por sua vez, incidem nas vicissitudes do processo analítico do filho.

Neste trabalho, parto da seguinte hipótese: assim como em toda neurose aparecem fenômenos narcisistas - o que não equivale a dizer que Narciso destituiu Édipo, e sim que é necessário concebê-los juntos, numa interação complexa -, também devemos incluir os complexos fraternos, com suas próprias dinâmicas e articulações com as estruturas narcisista e edípica, tanto "na simplicidade aparente do normal como nas distorções e exageros do patológico" (Freud, 1914a/1980, p. 79).

A inclusão dos psicodinamismos referentes às relações entre irmãos na estruturação da vida psíquica não tenta encerrar nenhum dos temas concernentes à importância nodal de Narciso e Édipo. Ao contrário, tem um valor heurístico. Uma de suas finalidades centrais é, precisamente, suplementar e não suprimir: trata-se de aguçar a escuta analítica, ampliar as fronteiras do campo psicanalítico e estabelecer novas pontes entre a teoria e a clínica com crianças e adolescentes.

Partindo do complexo fraterno para o complexo de Édipo e para o narcisismo, e vice-versa, capta-se melhor a complexidade da alma humana e torna-se possível a superação dos obstáculos que se erguem nos processos analíticos sob uma luz mais reveladora e não acessível até então.

 

Complexo de Édipo e complexo fraterno

Os ensinamentos conjuntos da clínica psicanalítica, da literatura e da mitologia mostram que cada ser humano é portador de uma irrepetível combinatória de múltiplas identificações, resultantes, em grande medida, da singular interação que se trama entre o narcisismo, o complexo de Édipo e o complexo fraterno. Entre esses dois complexos, estende-se uma via de mão dupla, com algumas zonas em que ambos se enlaçam, se superpõem ou se reforçam.

Em geral, tende-se a pensar que o complexo fraterno é um mero deslocamento do edípico, como uma via linear, apenas de ida, de um desenvolvimento programado dos investimentos objetais, que partem das figuras parentais e são substituídas por outras: irmãos, primos e amigos, que favorecem progressivamente o acesso à exogamia.

Embora o irmão possa operar como um aliado para afrouxar as dependências edípicas, ele pode também, em certas circunstâncias, chegar a reforçá-las, num movimento reverso, fixando o sujeito em seus progenitores. Em outros casos, o complexo fraterno pode recobrir, parcial ou totalmente, a estrutura edípica, gerando confusão e superposição de papéis e perturbando gravemente o processo da identidade.

O complexo fraterno tem uma especificidade irredutível. Por vezes, seus próprios efeitos alcançam tal intensidade que chegam a decidir o destino da vida do sujeito e de seus descendentes. Este complexo não se opõe à afirmação freudiana de que o complexo de Édipo representa o complexo nuclear das neuroses, mas sua inquestionável presença evidencia a insuficiência do apotegma simplex sigillum veri: a simplicidade é o sinal da verdade.

O complexo fraterno excede em muito a importância de um simples conjunto fantasmático: tem sua própria envergadura estrutural, relacionada fundamentalmente com a dinâmica narcisista e paradoxal do duplo em suas várias formas - imortal, ideal, bissexual e especular. Esses tipos de duplo, que mudam de sinal e flutuam entre o maravilhoso e o sinistro, podem se manifestar no campo da clínica com crianças e adolescentes através das comparações normais e patogênicas com os pares (Kancyper, 2009). No âmbito social, costuma se fazer ouvir de modo atormentado e tumultuado na dinâmica do narcisismo das pequenas diferenças.

Na clínica, é tentador passar por alto o complexo fraterno e, provocando um curto-circuito, dirigir-se imediatamente aos aspectos determinantes dos conflitos edípicos e pré-edípicos, cujas interpretações costumam ser, em certo sentido, insuficientes ou, às vezes, errôneas.

Tenho alguns senões quanto ao termo "vínculo fraterno" (Bank & Kahn, 1988) e me parece mais apropriado empregar "complexo fraterno". O termo complexo é definido como o "conjunto organizado de representações e lembranças dotadas de intenso valor afetivo, parcial ou totalmente inconscientes" (Laplanche & Pontalis, 1994, p. 55), com a ressalva de que a noção de complexo tende a se confundir com a de um núcleo puramente patogênico que convém eliminar e, desse modo, perde-se de vista a função estruturante que os complexos possuem em determinados momentos do desenvolvimento humano.

No artigo sobre "Alguns mecanismos neuróticos no ciúme, na paranoia e no homos-sexualismo" (1921/1980), Freud emprega o termo complexo dos irmãos, e não vínculo fraterno, e o diferencia do complexo de Édipo:

Embora possamos chamá-lo de normal, esse ciúme não é, em absoluto, completamente racional, isto é, derivado de relações atuais, proporcional às circunstâncias afetivas e sob o controle completo do Eu consciente; com efeito, está profundamente arraigado no inconsciente, retoma as mais precoces moções de afetividade infantil e brota do complexo de Édipo ou do complexo dos irmãos do primeiro período sexual (p. 217).

Em 1923, Freud emprega explicitamente o termo complexo fraterno num escrito breve dedicado ao doutor Sándor Ferenczi em seu 50º aniversário:

Ferenczi, filho do meio de uma numerosa série de irmãos, teve de lutar em seu interior com um forte complexo fraterno; sob a influência da análise, transformou-se num irmão mais velho irrepreensível, um benévolo educador e promotor de jovens talentos (1923/1980, p. 288).

Freud admitiu, sobretudo no final de sua obra, a importância do complexo fraterno, mas não o estudou de modo sistemático como fez com o complexo de Édipo.

A forma completa do complexo de Édipo resulta da combinação, encontrada em diferentes graus, da chamada forma positiva, tal como se apresenta na história do Édipo Rei (desejo da morte do rival, que é o personagem do mesmo sexo, e desejo sexual pelo personagem do sexo oposto) e de sua forma negativa (amor pelo progenitor do mesmo sexo e ódio e ciúmes do progenitor do sexo oposto).

Cada sujeito apresenta, segundo a coexistência de ambas as formas na relação dialética, um caso misto particular de um complexo de Édipo. Este se articula com as fantasias de imortalidade, perfeição, bissexualidade e especularidade inerentes à dinâmica da estrutura narcisista.

O complexo fraterno possui, por sua vez, suas próprias fantasias: do gêmeo imaginário, do siamês imaginário, dos vasos comunicantes, além de fantasias fratricidas e de pilhagem, de complementaridade e confraternidade. A posição central que essas fantasias ocupam como organizadores da experiência interna e externa revela-se em diferentes graus e em particulares combinatórias em cada criança e adolescente.

Considero que as fantasias inerentes ao complexo fraterno exigem, por um lado, ser diferenciadas e separadas daquelas provenientes do complexo de Édipo e do narcisismo. Porém, destaco a importância de que, por outro lado, também sejam integradas para poder, assim, substituir o pensamento disjuntivo e redutor por um pensamento complexo no sentido original do termo complexus: o que está tecido de forma cerrada.

O pensamento complexo permite obter um esclarecimento dinâmico e amplo sobre a interação que se estabelece entre as distintas fantasias edípicas, narcisistas e fraternas, e permite, portanto, aperfeiçoar nosso conhecimento da vida anímica.

Os complexos fraternos não resolvidos estão sobredeterminados; dependem das condições psicológicas particulares inerentes a cada um dos irmãos, como também costumam ser promovidos e mantidos pelos próprios pais, com a finalidade de continuar exercendo uma relação de dominação sobre cada filho e entre eles, gerando conivências inconscientes e conscientes, múltiplas e combinadas. Esses pais, ao interceptar o estabelecimento de vínculos solidários e de confraternidade entre os filhos, fabricam relações conflituosas entre os irmãos, sustentadas na crença sinistra de que, na verdade, a aliança fraterna representa uma ameaça que atenta contra o narcisismo e o poder de um ou de ambos os progenitores, enfrentando-os separadamente e opondo-os uns aos outros, à semelhança do Rei Lear, que tratou de dividir para reinar sobre suas filhas Goneril, Regan e Cordélia.

 

Os vasos comunicantes e as culpas edípica, fraterna e narcisista

Segundo uma conhecida concepção, o parricídio é o crime principal
e primordial tanto da humanidade quanto do indivíduo. Em todo caso,
é a principal fonte do sentimento de culpa, não sabemos se a única, pois as
indagações ainda não puderam estabelecer com certeza a origem anímica da
culpa e da necessidade de expiação. Mas não é preciso que seja a única.
A situação psicológica é complicada e requer elucidação

(Freud, 1927/1980, pp. 181-182).

Brusset (1987) assinala:

A relação de objeto fraterna se distingue das relações de objeto parentais pela operativização da projeção (sobretudo na forma da identificação projetiva) na proximidade de uma relação simétrica, próxima, inevitável, confrontando o sujeito diretamente com a alteridade de um objeto que é simultaneamente um duplo de si e um estranho. Na lógica das relações fraternas, querer compreender o irmão é tentar compreender a si mesmo, definir-se em negativo, mas, como estar certo de não ser ele? É conhecida a piada de Mark Twain (Twin): "Eu tinha um irmão gêmeo. Parecíamo-nos tanto que, tendo um de nós morrido ao nascer, nunca pude saber se foi ele ou eu" (p. 328).

O desdobramento narcisista está diretamente figurado pelos gêmeos, e a indiferenciação parcial, pelos "siameses". O "gêmeo imaginário", descrito por Bion (1972/1988) a partir de numerosos casos, representava as partes dissociadas da personalidade, personificadas dessa forma. Esse duplo pode ser buscado diretamente no analista.

Do mesmo modo, o "siamês imaginário" e a fantasia que descrevi dos "vasos comunicantes" representam as partes mais indiscriminadas da personalidade. Essas duas fantasias são encenadas nos sujeitos que apresentam um funcionamento mental simbiótico nas relações de casal e de família. Na fantasia dos "vasos comunicantes", intervêm diferentes formas de sentimentos de culpa que não se reduzem somente à culpa edípica, mas que também se enlaçam a ela: a culpa fraterna e narcisista. Ela se baseia no modelo físico de um sistema hidrostático composto de dois ou mais recipientes comunicados por sua parte inferior. Nos vasos comunicantes, pode-se verificar experimentalmente o fato de que, em cada um dos tubos de formato diferente, a água ou o líquido vertido chega ao mesmo nível em todos os vasos, já que na verdade os vasos e o tubo de comunicação formam um só recipiente cheio de líquido.

A aplicação desse funcionamento à fantasia fisiológica da consanguinidade configura a representação dos irmãos como se fossem tubos comunicantes, relacionados entre si por laços de sangue e unidos ao tubo de comunicação parental, que opera como uma fonte inesgotável que nutre e, ao mesmo tempo, distribui a todos os integrantes do sistema de modo unitário, para que finalmente tudo se mantenha em um perfeito equilíbrio. Esse sistema premia o nivelamento e condena a diferença.

Nivelamento não é solidariedade. É a negação da alteridade e da mesmidade, eclipsando o direito ao dissenso e à abertura para imprevisíveis possibilidades e realizações que possam surgir a partir da confrontação geracional e fraterna.

Contudo, toda confrontação exige, como condição primária, a admissão do desnível do arco de tensões que marca a diferença de gerações entre pais e filhos e entre cada um dos irmãos. O princípio de nivelamento dessa fantasia hidrostática bipessoal ou multipessoal dos vasos comunicantes, baseado no intercâmbio "arterial e venoso" e no empréstimo mútuo de "órgãos" entre os componentes do sistema, costuma desencadear intensos sentimentos de culpa e necessidade de castigo quando sua homeostase se quebra. Isso ocorre precisamente por parte daquele que, por suas próprias condições, se desnivela dos demais, podendo se situar - caso intervenha uma elaboração masoquista - na posição culposa da "privilegiada vítima" que permanece na expectativa ameaçadora da revanche do outro ou outros ressentidos que, como vítimas privilegiadas, poderiam conspirativamente vingar-se dele, estabelecendo-se um pêndulo retaliativo de acusações e ocultamentos, de queixas e remorsos.

Esses vínculos conflituosos entre irmãos costumam se deslocar para a relação com os amigos e com o cônjuge e se apresentar, ademais, dentro do próprio sujeito, flutuando de modo repetitivo entre ambas as posições masoquistas: de vítima privilegiada a privilegiada vítima, com pensamentos e atos de contrição (Kancyper, 1995).

Os remorsos e ressentimentos "normais" que surgem na dinâmica dos vínculos entre os irmãos costumam se intensificar ainda mais quando, ao complexo fraterno, agregam-se as situações traumáticas pela presença de irmãos perturbados ou de irmãos mortos. Nesses casos, o irmão "saudável" e o irmão "sobrevivente" extraem uma subidentidade específica: ser o guardião e mediador que regula o equilíbrio do narcisismo familiar, tendo para isso que transitar por um caminho delicado, entre as ansiedades dos pais necessitados de apoio e do irmão ou irmã carentes.

Essa missão do filho extremadamente generoso e normal nutre seu próprio eu ideal com a exigência heroica de cumprir com um dever ambivalente: por um lado, exige ser compulsivamente competente e brilhante para compensar a sombra de seu duplo enfermo ou perdido, curando assim as feridas do narcisismo parental; por outro, tem de renunciar aos aspectos agressivos vitais de si mesmo, suprimindo-os.

Ser agressivo com um irmão perturbado ou morto adquire o sentido de desafiar os pais vulneráveis e ser um filho desleal e culposo. Portanto, deve manter em segredo seus ressentimentos, que, ao se voltarem contra ele mesmo, costumam se manifestar por meio de afecções psicossomáticas que operam como máscaras e exteriorizações dos remorsos amordaçados.

A criança e/ou o adolescente saudável e a criança sobrevivente se convertem, na verdade, em crianças ou adolescentes paternais, demandados por permanentes exigências fracassadas de reparação obsessiva ou maníaca, cujas manifestações na clínica se expressam pela assunção irrefreável de excessivas responsabilidades, que acabam deteriorando sua saúde mental e física. Em outros casos, se exteriorizam pela assistência compulsiva aos irmãos e pais e, no extremo, pode chegar a fundir e confundir sua própria vida com a do outro, perturbado ou morto, configurando uma folie à deux para assim realizar um desejo de indiscri-minação entre ambos.

Esse desejo de uniformização dos membros da família, que subjaz por trás da fantasia dos vasos comunicantes, teria sua origem no escamoteamento da tensão narcisista e das rivalidades edípica e fraterna.

Em alguns casos, o filho sobrevivente também pode chegar a se transformar em um irmão "sobremorrente". Isso ocorre quando o irmão morto permanece fantasmaticamente habitando como um "morto-vivo", e se erige no eixo central e regulador da vida psíquica dos integrantes do meio familiar para inicialmente raptá-los e, em seguida, conduzi-los às profundezas de seu sinistro reino.

Com efeito, o irmão sobremorrente constrói sua visão de mundo a partir dos alicerces defensivos dos mecanismos de fuga, controle e ataque para se preservar da castração-morte. Preocupa-se em evitar a presença ameaçadora de um perigo potencial e, ao tentar pairar acima da morte e triunfar sobre a perseguição alada de Tânatos, acaba se tornando um "sobremorrente" nas realidades psíquica e externa.

Denomino-o "sobremorrente" e não "sobrevivente". Schmucler (2007) aponta que, normalmente, denominam-se sobreviventes "os indivíduos cujo destino tinha marcado, espontaneamente, o final antecipado de seus dias e alcançou inexoravelmente a maioria dos que estavam na mesma situação. Assim, sobrevive-se a um cataclismo, a certa idade, a alguma doença raramente curável" (p. 4).

Em contraposição, o "sobremorrente", à semelhança do mítico Caim, está condenado a permanecer num estado de nomadismo incessante para fugir de uma perseguição espectral. Vive, portanto, em um frágil estado de precariedade, porque adoece em seu mundo interior de uma falta de sentimentos de pertencimento e de enraizamento, devido à permanência nele de certas marcas traumáticas de um passado que o inunda, em sua memória do pavor, de sentimentos cindidos e compulsivos de culpa, de vergonha e de terror que fogem ao seu domínio (Bewältigungstrieb1).

O "sobremorrente" tem uma relação singular com a temporalidade. Todo projeto se sustenta na dimensão temporal do porvir e para ela aponta. No "sobremorrente", porém, o porvir está invadido pelo por-vir de uma ameaçadora fatalidade de um passado que não permanece no passado. Esse tempo pretérito ocupa as três dimensões temporais; tanto o presente quanto o futuro estão subsumidos em um passado traumático particular, acompanhado de sentimentos de pânico, de terror, de desamparo e de inquietude, decorrentes da permanência desse duplo sinistro que perturba a estruturação do processo da identidade no irmão "sobremorrente" (Kancyper, 2005).

Na prática psicanalítica com crianças e adolescentes, enfrentamos uma intrincada problemática teórico-técnica com aqueles analisantes "sobremorrentes" que foram concebidos para substituir a perda de um filho morto. De fato, os "irmãos de reposição" costumam conformar um particular sistema de crenças inconscientes (Britton, 1994), tingido por um poder sinistro extraordinariamente grande relativo à própria e ubíqua culpa. Vivem se desculpando por incriminações proferidas por autoridades internas e externas que costumam se superpor e confundir, e tentam reparar de modo compulsivo antigas dívidas de outros que, na verdade, não lhes concernem, tomando a si mesmos como a causa de todo mal. Na satisfação desse padecimento masoquista, intervêm uma ubíqua culpa narcisista e uma irrefreável necessidade de autossacrifício, que se manifestam pela assunção compulsiva do papel da vítima expiatória e/ou ritual (Rosolato, 1981).

A culpa ubíqua (do latim ubiqué, em toda parte) aplica-se àquele que está ao mesmo tempo em todos os lugares, em particular a Deus. Seu sinônimo: onipresente. Designa hiperbolicamente a pessoa em contínuo movimento, que acode com muitas atenções ou em muitos lugares, querendo se inteirar de tudo e presenciar tudo. A ubiquidade dessa culpa -"manifestação da extraordinária sobre-estimação dos atos psíquicos, como fenômeno parcial da organização narcisista primitiva infantil" (Freud, 1914a/1980, p. 87) - costuma sustentar-se, a partir da dinâmica da intersubjetividade, num sobreinvestimento mágico-onipotente outorgado por um outro que, desde uma posição de impotência, investe e confirma a criança na categoria de um objeto indispensável, como regulador da homeostase desse outro e de outros (Kancyper, 1998). No entanto, quando a reparação do sistema narcisista intersubjetivo fracassa, renasce intrassubjetivamente a ubíqua culpa narcisista devido ao não cumprimento das inalcançáveis missões e expectativas depositadas pelos outros (culpa edípica e fraterna), e assumidas pelas instâncias ideais da personalidade do filho (culpa narcisista). Essas três culpas costumam exercer suas singulares influências devastadoras sobre o sujeito, acrescentando nele suas necessidades de autopunição e heteropunição, ao mesmo tempo que costumam ressexualizar os aspectos agressivos de sua instância superegoica.

Landolfi (1998) afirma que o introjeto fraterno promove um "sobredesenvolvimento" do supereu, sobredetermina-o ao mesmo tempo em que aumenta sua ação culpógena e cruel. O irmão de reposição é um privilegiado culposo e oprimido. Sua agressão fantasiada e recalcada contra o irmão retorna sobre o eu, depois, por culpa e identificação, como destrutividade, empreendendo uma atormentada reparação de seu irmão em desgraça.

Essa ação reparadora compulsiva é, na verdade, uma insistente expiação interminável e costuma se manifestar pelo fracasso diante do triunfo, devido à presença não só da culpa edípica, mas também pelos efeitos tanáticos decorrentes do acionamento conjunto das culpas narcisista e fraterna. Estas, em geral, comandam de modo consciente e inconsciente o surgimento de batalhas recorrentes não só na psicologia individual, mas também na psicologia das massas, onde se presentificam, por exemplo, pela passagem ao ato de certas comparações fraternas hostis e patogênicas, que costumam engendrar ondas incontíveis de ressentimentos e vinganças entre os povos e entre as religiões.

Heráclito de Éfeso já nos advertira sobre a escalada tanática engendrada no caldeirão do ressentimento (Kancyper, 2010), a partir da qual se atiçam o fanatismo e a destrutividade na dimensão intersubjetiva:

Há que se mostrar mais rapidez em acalmar um ressentimento que em apagar um incêndio, porque as consequências do primeiro são infinitamente mais perigosas que os resultados do último; o incêndio termina abrasando, no máximo, algumas casas, ao passo que o ressentimento pode causar guerras cruéis com a ruína e destruição total dos povos (Mondolfo, 2000, p. 35, citado por Kancyper, 2010, p. 14).

 

A amizade

Um irmão pode não ser um amigo, mas um amigo será sempre um irmão (Demétrio de Falero).

O tema da amizade foi escassamente aprofundado na teoria e clínica psicanalíticas, apesar de exercer uma função primordial em todas as etapas da vida, mas fundamentalmente durante a adolescência e a senescência, porque possibilita o desapego do abuso do poder vertical e das relações de domínio exercidos por pais e filhos. Na amizade, prevalecem, sobretudo, os vínculos de ternura, que criam laços particularmente fixos entre os seres humanos.

Freud indica a contribuição da fonte erótica nos vínculos de ternura que se tramam "entre pais e filhos, nos sentimentos de amizade e nos laços afetivos no matrimônio" (1922/1980, p. 253). Ele diz também:

Depois de atingir a escolha de objeto heterossexual, as aspirações homossexuais não são - como se poderia pensar - postas de lado ou deixadas em suspenso, são simplesmente forçadas a se desviar de sua meta sexual e conduzidas a novas aplicações. Combinam-se, então, com setores das pulsões do eu para constituir com elas, como componentes firmes, as pulsões sociais, gestando assim a contribuição do erotismo para a amizade, a camaradagem, o esprit de corps e o amor à humanidade em geral. Nos vínculos sociais normais entre os seres humanos dificilmente se poderá deduzir a verdadeira magnitude dessas contribuições de fonte erótica com inibição da meta sexual (Freud, 1911/1980, p. 41).

Para Mujica (2000), a amizade representa uma das formas do amor, a forma que a intimidade adota quando inclui a distância. Ele a equipara a um nó desatado e a um pacto de gratuidade que implica um se deixar escolher, uma entrega, mas "sem passar a ser seu"; inclui os outros, mas sem fusão física ou espacial:

A palavra "amigo" nasce de uma raiz grega da qual também derivam amor e amigável. Não surpreende: sentimos que a amizade é uma das formas do amor, a forma que adota quando a intimidade inclui a distância. Dessa mesma raiz também sai ama, no sentido de mãe, de mamãe. Tampouco isso deveria surpreender se pensarmos que a amizade, como todo amor, tem a capacidade de fecundar: gera singularidade. Mais ainda, poderiamos dizer que a amizade é precisamente o dom da singularidade: alguém me escolhe, me tira do tumulto de outras relações humanas, sem me fazer "seu". Nesse sentido, a amizade é como um nó desatado, um pacto de gratuidade, é um acontecimento não só do amor, como também da liberdade, mas liberdade comprometida na história do outro, do outro amigo: do singular.

Esse "sem me fazer seu" diferencia a amizade do amor de casal, inclui os outros, embora sem fusão, nem física nem espacial. A amizade é, constitutivamente, desinteresse: não tira nem guarda nada dessa relação, salvo, claro, a gratificação afetiva: o sentimento e o crescimento de se comprometer no humano pelo humano. Falei deliberadamente de ser escolhido e não de escolher. A amizade, como dissemos, pertence à lógica do dom: não é um ato de minha vontade; não decido ser amigo deste ou daquele, acontece. Algo que se dá, se dá em mim. Depois posso procurar razões, explicar, mas sobre algo já acontecido, já sentido; a origem da amizade, como de toda forma de amor, se impõe, ou, pelo menos, se propõe à minha resposta, à minha sensibilidade. Por isso a amizade também é um se deixar escolher. Uma disponibilidade: a de me dar, de me entregar, de me arriscar numa relação. Abrir-me e deixar entrar. Como dom, a amizade é uma graça: a graça de poder ser graça para outros, dar amizade a quem me procura como amigo. Chegar a ser mais que eu mesmo (p. 14).

A amizade é o contrário da não consideração pelo outro, de lhe negar a existência, de sua anulação, da omissão de sua presença.

Para Agamben (2005), por outro lado, a amizade inscreve-se numa categoria particular. Possui um aspecto ontológico, porque o que está em questão na amizade concerne à própria experiência - à própria sensação de ser. A sensação de ser é, de fato, re-partida e com-partida, e a amizade nomeia esse compartir. O amigo é, por isso, outro si mesmo, um alter ego que dá o com-sentimento de se sentir existir e viver. Mas, então, também, pelo amigo será preciso com-sentir que ele existe, e isso implica conviver e ter em comum ações e pensamentos.

Scavino (1999) destaca a função social que pode ser exercida pela amizade para enfrentar o poder "pan-óptico" dos amos, que tentam negar e suprimir a solidariedade e a cooperação estreitas entre os membros de uma sociedade.

A amizade e o amor foram muitas vezes comparados como paixões complementares e, outras vezes, a maioria delas, como paixões opostas. Para os antigos, a amizade era considerada superior ao amor. Aristóteles (1983) assinalava a presença de três tipos de amizade: por interesse ou utilidade, por prazer e por virtude. Esta é a "amizade perfeita, a dos homens de bem e semelhantes em virtude, porque estes se desejam igualmente o bem" (p. 37). Os dois primeiros tipos de amizade são acidentais e estão destinados a durar pouco; o terceiro é duradouro e é um dos bens mais elevados a que pode aspirar o homem. Plutarco, Cicero e outros seguiram Aristóteles em seu elogio da amizade.

Em minha opinião, a amizade é uma relação de irmandade escolhida, não imposta por laços consanguineos, na qual são desativados os desejos edipicos e fraternos postos em movimento pela aspiração fálica de chegar a ser o herdeiro único e o filho preferido de um pai-mãe-Deus. Na amizade, estabelecem-se relações de objeto exogâmicas, embora elas possam, com facilidade, voltar a ser infiltradas pelos conflitos narcisistas e parentais. Nela, os laços consanguineos são substituidos por laços sublimatórios (Kancyper, 2001).

É na amizade que se desativam, em grande medida, as relações de poder. Estas impedem seu surgimento e sua preservação.

Nietzsche pergunta: "És um escravo? Então não podes ser amigo. És um tirano? Então não podes ter amigos" (2009, p. 48). Nessa mesma linha, S. Weil afirma: "Quando alguém deseja submeter um ser humano ou submeter-se a ele, não há traço de amizade" (2007, p. 23).

Só há amizade quando se respeita o direito à recíproca autonomia do distinto em si mesmo e no outro e quando essa distância entre os sujeitos é admitida e conservada. Precisamente, uma inaptidão para o estabelecimento da amizade poderia traduzir tanto uma resistência do narcisismo, quanto uma defesa contra a moção da libido homossexual.

Brun (2003) descreve a magnitude da paixão das amizades infantis e sublinha a importância da continuidade do cotidiano nas crianças, traduzida no contato diário com os colegas de escola, equivalente à continuidade interior. Diz que o importante não é apenas a continuidade ou estabilidade do meio familiar, como se costuma afirmar:

[...] esses vínculos criados na infância deixam marcas duradouras, costumam guiar certas escolhas posteriores, e os modos como são interrompidos voltam a ser encontrados em outras rupturas. A perda dos colegas equivale a uma perda psíquica que reaparece em sonhos posteriores e os jogos de poder na amizade costumam ser deslocados mais adiante para substitutos ou para o psicanalista (p. 1089).

Com efeito, em "Sobre a psicologia do colegial" (1914b/1980), Freud ressalta a importância exercida não só pelos pais, na infância, na escolha dos objetos ao longo de toda a vida, mas inclui, além disso, a influência exercida pelos irmãos e o papel da fixação tanto edípica quanto fraterna na dinâmica da relação com as amizades e nos vínculos de amor.

A psicanálise nos ensinou, com efeito, que as atitudes afetivas ante outras pessoas, tão relevantes para a posterior conduta dos indivíduos, foram estabelecidas numa época incrivelmente precoce. Já nos primeiros seis anos da infância o pequeno ser humano consolidou a índole e o tom afetivo de seus vínculos com pessoas do mesmo sexo e do sexo oposto; a partir de então, poderá desenvolvê-los e transformá-los segundo determinadas orientações, mas já não poderá abandoná-los. As pessoas em quem se fixa dessa maneira são seus pais e seus irmãos. Todas aquelas que venha a conhecer depois serão, para ele, substitutos desses primeiros objetos afetivos. [...] toda escolha posterior de amizades e de relações amorosas se dá com base nas marcas mnêmicas que aqueles primeiros arquétipos deixaram (pp. 248-249).

Desejo sublinhar que assim como o sonho é a via régia para o estudo do inconsciente, a amizade representa outra via régia para a elucidação e superação das estruturas edípica, fraterna e narcisista na psicanálise com crianças e adolescentes.

 

Amizade de transferência

As categorias que habitualmente usamos para diferenciar na situação analítica as formas de transferência - transferência positiva, transferência negativa e transferência erótica - são na verdade descritivas e se baseiam nos matizes do amor e do ódio.

A categorização que proponho baseia-se nas estruturas envolvidas, distinguindo a transferência e contratransferência narcisista da edípica, e esta da fraterna. Dentro desta última, diferencio ademais a amizade de transferência-contratransferência.

A amizade de transferência - em contraponto simétrico à noção de amor de transferência (Freud, 1915/1980) - é uma transferência positiva sublimada que favorece a aliança terapêutica. Manifesta-se na dinâmica do campo analítico por uma atmosfera (Stimmung) afetiva confortável, terna, relaxada e, simultaneamente, intensa. Com efeito, na amizade de transferência, tanto o analista como o analisante mergulham numa entrega franca e profunda, preservando ao mesmo tempo a assimetria funcional do processo analítico.

Em contrapartida, o vínculo afetivo que comanda o amor de transferência tem a natureza de um apaixonamento compulsivo, tenso e desafiante, com aspectos plenamente sensuais e hostis inconciliáveis com a tarefa da análise, e não vacila em levá-la a um dilema sem saída. No amor de transferência, o analisante reproduz de maneira palpável, como algo presente, o vínculo inconsciente de sua história íntima, em vez de recordá-lo.

O amor do paciente não se conforma com obedecer; torna-se exigente, pede satisfações ternas e sensuais; reclama exclusividades, desenvolve ciúmes e mostra de maneira cada vez mais íntima sua outra face, a prontidão para a hostilidade e a vingança quando não pode alcançar seus propósitos. Ao mesmo tempo, como em todo apaixonamento, deixa para trás os demais conteúdos anímicos, extingue o interesse pelo tratamento e pelo restabelecimento; em suma: não podemos duvidar de que substituiu a neurose e o resultado de nosso trabalho foi trocar uma forma de doença por outra (Freud, 1926/1980, p. 211).

Se, em geral, o analisante vivenciou o arquétipo do amor de transferência em sua infância no vínculo com um de seus progenitores, na amizade de transferência encena-se (aufführen) novamente uma antiga peça, correspondente ao vínculo exogâmico com os amigos e colegas da infância e adolescência, em suas conotações tanto positivas quanto negativas, abrindo-se assim caminho para a historicização dos fundamentos infantis e adolescentes relacionados com os afetos e representações ligados à temática da amizade.

A busca e a necessidade de um amigo investidas na figura do analista na dinâmica transferencial baseiam-se no encontro com um outro exogâmico, com um "estrangeiro" confiável e complementar, numa relação marcada pela presença de uma entrega recíproca; o amigo assume o lugar de um duplo aliado, que opera em flagrante oposição à lógica trágica de um duplo sinistro que subjaz à dinâmica da luta narcisista, fraterna e edípica, na qual o outro é investido e identificado no lugar de um inimigo ou rival, dando ocasião aos reincidentes fratricídios, filicídios e parricídios relatados desde a aurora da história da humanidade.

O amigo, em contraste com o irmão com quem subjaz uma tensão suscitada pelas rivalidades infantis, não busca homogeneizar o outro na imagem própria, mas alojá-lo com confiança como estrangeiro. A presença do amigo revela, em última instância, a irredutibi-lidade de apoderamento da alteridade do outro e, parafraseando Freud, poderíamos dizer que na amizade trata-se de triunfar ali onde o paranoico fracassa.

Também poderíamos assinalar que, na situação analítica, o analista investido da figura do amigo irá se convertendo, nas sucessivas fases do processo, numa presença confiável e leal, capaz de sobreviver ao exercício de destruição imaginária a que a submetem o amor-ódio e a pulsão de domínio na dinâmica transferencial-contratransferencial do campo analítico.

Por tudo isso, considero importante não descuidar o valor heurístico da instrumentação do conceito de amizade de transferência no processo analítico com crianças e adolescentes, que se caracteriza "pelo trabalho ativo que o analisando realiza em cooperação com o analista: um esforço de se abrir na medida do possível; de escutar o analista e dizer-lhe tanto 'sim' quanto 'não', deixar-se regredir e progredir" (Baranger, Baranger & Mom, 1978, p. 1103).

De fato, a amizade de transferência é um momento transferencial-contratransferen-cial diferente do edípico, narcisista e fraterno. Opera como um indicador clínico particular, que se manifesta quando se produz um clima de intimidade, confiança e franqueza profundas no seio do campo dinâmico entre analisante e analista, e que, em consequência, permite que se tornem conscientes certos desejos recalcados e cindidos que, por dor, culpa ou vergonha, tinham sido silenciados secretamente, porque infligiam ao analisante uma intolerável vexação psicológica.

A dinâmica flutuante da amizade de transferência costuma marcar, nas diversas fases de um processo analítico, a abertura de um acesso: a aventura de imersão nas raízes mais íntimas de novos aspectos da verdade histórica do sujeito. Trata-se de um momento pontual, no qual costuma se manifestar com coragem e franqueza a parrésia.

Foucault (2010) rastreou na literatura e na filosofia greco-romanas uma função, a "parrésia", e uma posição do sujeito, o "parresiastés" caracterizadas por "uma relação específica com a verdade por meio da franqueza" (p. 109), cujo efeito é a crítica e autocrítica, e cujo preço é o risco individual. Este termo vem do grego, pan rhema, e significa literalmente "dizer tudo"; por extensão, "falar livremente", "falar atrevidamente com franqueza", sem medir o perigo. Foucault resume o conceito de parrésia da seguinte forma:

De maneira mais precisa, a parrésia é uma atividade verbal, na qual um falante expressa sua relação pessoal com a verdade e corre perigo, porque reconhece que dizer a verdade é um dever para melhorar ou ajudar outras pessoas (tanto quanto a si mesmo). Em parrésia, o falante usa sua liberdade e escolhe a franqueza em vez da persuasão, a verdade em vez da falsidade ou do silêncio, o risco de morte em vez da vida e da segurança, a crítica em vez da adulação e o dever moral em vez do autointeresse e da apatia moral (p. 76).

Foucault cita um texto de Plutarco, Como distinguir um adulador de um amigo, para colocar o acento na necessidade de contar com um outro, com a lealdade de um amigo que cumpra o papel de um parresiasta, ou seja, de um interlocutor que aceite receber como verdadeira a verdade cáustica que escuta, já que geralmente a relação predominante com o si mesmo é ilusória e enganosa (p. 25). Real e efetivamente, a presença da amizade de transferência e de suas diferentes oscilações revela o triunfo sobre a pressão do intrincado jogo das resistências do analisante e das contrarresistências do analista - que obstam à progressão da busca livre, comprometida e valorosa do conhecimento de si na dinâmica do campo analítico -, e propicia um aumento da empatia psicanalítica (Bolognini, 2004).

Considero importante sublinhar que, quando a amizade de transferência se manifesta no processo analítico, o analista vê-se investido como se fosse um amigo confiável e franco, mas não responde em ato às demandas de satisfação de amizade do analisante. De todo modo, durante o transcurso da amizade de transferência, o analista corre o risco de ver esfumarem-se as fronteiras de sua assimetria funcional como analista, que se diluem num plano de "compadre" ou "companheiro de estrada", minando, então, o sentido e os fins da psicanálise. Por isso, é desejável que essa transferência de amizade não se cristalize, tornando-se defensiva e encobrindo a dinâmica regressiva das outras transferências, tanto positivas como negativas: narcisistas, edípicas e fraternas, que costumam se manifestar de modo inelutável nas diferentes fases de um processo analítico.

 

Considerações finais

De acordo com os temas que vim desenvolvendo nestas páginas, ressalto a importância de distinguir, na situação analítica com crianças e adolescentes, as transferências e contra-transferências edípica, narcisista e fraterna da amizade de transferência-contratransfêrencia. A transferência fraterna não é um mero deslocamento defensivo do conflito edípico e tampouco é superada com a dissolução do complexo de Édipo. Possui suas próprias especificidades e mantém pontos de contato com as dimensões narcisistas e triangulares.

É necessário diferenciar na transferência a organização vertical, própria da relação triádica com os pais, da dimensão horizontal com os irmãos e com os amigos, preservando, contudo, sempre, nesta última, a assimetria das funções entre o analista e o analisante.

Em outro artigo (Kancyper, 1995), assinalei a tendência equivocada que os analistas têm de reduzir o complexo fraterno ao complexo de Édipo e de negar sua importância. Por um lado, devido à compulsão teórica por parte do analista de centrar exageradamente tudo no Édipo como complexo nodular, deixando de lado o fraterno, que não é mera consequência do anterior. Por outro, por parte do analisante, porque as angústias e as relações de domínio entre irmãos, assim como os sentimentos de crueldade, ciúme, inveja, ressentimentos e remorsos, tão pungentes e secretos, infligem ao homem uma vexação psicológica e podem operar resistencialmente no processo analítico.

Na transferência fraterna, reedita-se a singular história infantil e atual com as particularidades do irmão ou da irmã, e o analista deve considerá-la em toda a sua importância tópica, dinâmica e econômica. A precondição para isso é que o analista atravesse o intrincado trabalho psíquico suplementar representado pela análise de seu próprio complexo fraterno, que é invariavelmente reativado pelo complexo fraterno manifesto e latente do analisante. O analista deve reconhecer de que modo interagem nele as fantasias inerentes à relação entre irmãos durante as diferentes fases de cada um dos processos analíticos. Essas fantasias são reativadas não só na pessoa do analista, mas também nos outros analisantes, que, como "irmãozinhos de análise", reanimam a dinâmica narcisista com seus diversos tipos de duplos.

As transferências e contratransferências narcisista, edípica, fraterna e a amizade de transferência-contratransferência não são opostas nem excludentes. Possuem diferentes lógicas e, esclarecidas suas respectivas fronteiras e detectadas suas articulações, permitem obter um entendimento mais abrangente e ao mesmo tempo mais aguçado da multifacetária situação analítica com crianças e adolescentes.

 

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Correspondência:
Luis Kancyper Güemes
2963, Piso 10 1425
Buenos Aires, Argentina
kancyper@uolsinectis.com.ar

Recebido em 3.10.2012
Aceito em 30.10.2012

 


1 NT: pulsão de dominação.

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