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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.47 no.1 São Paulo jan./mar. 2013

 

RESENHAS

 

De mãe em filha: a transmissão da feminilidade

 

 

Sandra Aparecida Serra Zanetti

Psicóloga, Mestre e Doutoranda em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo USP

 

 

Autora: Marina Ribeiro
Editora: Escuta, São Paulo, 2011, 208p.
Resenhado por: Sandra Aparecida Serra Zanetti

Marina Ribeiro é psicanalista; doutora em psicologia clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP; professora do Instituto Sedes Sapientiae; autora de vários artigos em psicanálise; do livro Infertilidade e reprodução assistida: desejando filhos na contempora-neidade (2004); além de coautora dos livros Bion em nove lições: lendo transformações (2011) e Balint em sete lições (2012).

De mãe em filha, fruto de seu trabalho de doutorado, é um livro delicado que nos convida a viajar rumo ao horizonte sem-fim, entre os azuis, onde se tece a feminilidade. Esta delicadeza proveio do intenso cuidado da autora ao navegar por mares tortuosos, para trazer-nos conhecimentos precisos e preciosos.

Contando com autores clássicos da psicanálise, como Freud e Klein, mas principalmente com seus contemporâneos (Paulo de Carvalho Ribeiro, Jacqueline Godfrind, Florence Guignard), soube posicionar-se por meio de um entrelaçamento de conceitos, o que lhe permitiu pensar a construção do psiquismo de um bebê-menina em direção à feminilidade. Marina Ribeiro, per-feitamente coerente com seu próprio tema, permitiu-se, também, usufruir do saber que nos foi transmitido há séculos, por meio de mitos e tragédias gregas, para iniciarmos essa trajetória visitando os vínculos ternos, doloridos e complexos, entre mães e filhas, construções longínquas, porém atuais, descritas no mito de Deméter e Perséfone e na tragédia de Electra.

Assim a autora inicia seu livro: "Paixão mãe-filha no mito e na tragédia", primeira parte de cinco. Nesta, ela se compromete em compreender as repercussões da relação apaixonada entre mãe e filha para a transformação da menina em mulher. O mito de Deméter e Perséfone é visto como uma metáfora para processos constitutivos da feminilidade nas mulheres, pavimentando o acesso à sexualidade adulta, que dependerá "tanto do afastamento da mãe quanto da proximidade identificatória com ela" (p. 25). No mito, Perséfone, a filha, é concedida em casamento por seu pai, Zeus, sem o conhecimento de sua mãe, Deméter, que teria recusado. "Deméter representa o desejo não civilizatório de uma mãe: jamais ceder seu rebento ao desejo de um homem (outro), mesmo que ele possua um belo e vasto reino" (p. 28). São os riscos narcísicos de uma intensa aproximação entre mãe e filha que começam a se desenhar. O amor e o ódio, mas principalmente o ódio, existentes nestas relações são explorados. Electra é o próprio elogio ao ódio. Electra é consumida por um intenso ódio e por desejos de vingança, pois não perdoa sua mãe, Clitemnestra, por ter matado seu pai, Agamêmnon. O pretexto para a motivação do crime foi o sacrifício de sua irmã, Ifigênia, mas Electra acusa a mãe de, na verdade, desejar ocupar o lugar de soberanos do palácio ao lado de seu amante. Nesta trama, mãe e filha estão atadas pelo ódio, o que, para Klein (1963/1991), significa a frustração de Electra de não ter sido verdadeiramente amada por sua mãe. No entanto, Marina Ribeiro (2011) ressalta, e isto é um dos fios que atravessam e sustentam toda sua obra, que a hostilidade também "parece ser apoio, não anatômico, mas subjetivo, que tem a importante função de diferenciação - quando não se fixa - entre mãe e filha" (p. 56). Isto porque quando se fixa "é o que restou do desejo onipresente de permanecer na fusão simbiótica com a mãe", e assim, "a separação com o objeto, a entrada do terceiro, é insustentável" (p. 56).

Na relação mãe-filha, a fronteira entre eu e o outro é bem mais delicada e de difícil diferenciação, pois estamos nos domínios do "império do mesmo" (André, 2003), no qual se navega por águas narcísicas, cuja cilada é a formação de um duplo. Paradoxalmente, contudo, as meninas precisam de suas mães para se diferenciar delas, o que justamente as tornam mais suscetíveis às demandas e insatisfações narcísicas da mãe. É neste percurso que experiências traumáticas de aprisionamento aos ideais narcísicos maternos podem ocorrer, e a menina, suscetível à cilada, pode permanecer enredada.

Na segunda parte do livro, a autora irá se debruçar em um arcabouço de conceitos teóricos selecionados que a ajudarão a compreender o processo da constituição da feminilidade. Esta parte do livro requer atenção, pois os conceitos são densos, fundamentais e, também, porque este parece ter sido o principal compromisso da pesquisadora: o de apresentar e discutir conceitos psicanalíticos ligados à construção de um eu feminino. Marina Ribeiro evidencia a interação e o encontro entre a mente da mãe e de sua recém-nascida. Inicialmente, o conceito de "identificação feminina primária" (Paulo de Carvalho Ribeiro, 2000) remete-nos à passividade do bebê diante do adulto sedutor, imprescindível para o aparecimento da feminilidade. Jacqueline Godfrind concebe a "homossexualidade primária e sua secundarização", mostrando que a semelhança da dupla mãe-bebê do sexo feminino inaugura a vida psíquica a partir de uma relação entre iguais. Para Godfrind (1990, 1994 e 2001), a homossexualidade primária funda uma identidade de gênero e o prazer de ser mulher que será futuramente partilhado com um homem; e sua secundarização é vivida mais tarde, por meio das "receitas partilhadas entre mulheres para provocar a admiração dos homens" (p. 90). A "posição feminina primária" ou "fase da feminilidade" é um conceito advindo da obra kleiniana, que consiste na identificação precoce do bebê com a mãe, por volta dos seis meses, quando o bebê se volta para o pai. "Neste momento há um primeiro esboço de que a mãe é um outro, e de que o pai é o outro da mãe" (p. 91). E finalmente, o "materno primário" e o "feminino primário", de Florence Guignard (1997, 2000 e 2002), são conceitos que carregam a hipótese da existência de dois tempos do feminino, nos quais as identificações iniciais com o objeto primário se organizam. No tempo do "materno primário" (entre dois e três meses de vida), constitui-se um espaço interno dos investimentos pulsionais oriundos das primeiras identificações com a mãe, "imprimindo violentamente o desconhecido do objeto na psiquessoma da criança" (p. 96). E o segundo tempo, do "feminino primário", é aquele no qual se instala a posição feminina primária, descrita por Klein, em que a criança se identifica com o desejo da mãe pelo pai. Este é um momento de "des-idealização: o bebê não é tudo para a mãe" (p. 96). Na sequência, Marina Ribeiro esforça-se para organizar todos estes conceitos, procurando criar esquemas representativos de acordo com o desenvolvimento da menina-bebê, e faz análises minuciosas de como esses conceitos se avizinham ou se afastam.

Na terceira parte do livro entram em cena os avatares da homossexualidade secundária nas mulheres heterossexuais: "a heterossexualidade nas mulheres vem sempre acompanhada de uma intensa corrente homossexual subterrânea, originária do prazer (ou desprazer) vivido entre mãe e filha" (p.115). Seguindo o texto, a autora esclarece os conceitos apresentados a partir da análise do filme Sonata de outono. Os personagens elucidam a dificuldade ou impossibilidade de uma mulher sentir-se amada por um homem. Marina Ribeiro ressalta que, como no filme, quando o encontro entre mãe e filha não pôde ser vivido minimamente de forma satisfatória, isso pode ser desorganizador para a construção da feminilidade na trajetória menina a mulher. O filme retrata de forma bela, profunda e dolorosa o sentimento de insuficiência da filha (Eva), que explica humildemente a seu marido sua necessidade de aprender a viver: "Eu pratico todo dia. Meu maior obstáculo é não saber quem eu sou. Eu tateio cegamente. Se alguém me ama como sou posso ter finalmente a coragem de olhar para mim mesma. Essa possibilidade é pouco viável". O filme pode ser compreendido como uma metáfora da feminilidade mortífera - o pacto negro (Godfrind, 1994): quando a filha não consegue se separar da mãe, desidentificar-se, e sua existência fica em função de reparar o frágil funcionamento psíquico da mãe.

A quarta parte do livro é dedicada à presença do terceiro nessa relação, ao olhar masculino, à função paterna que salva a filha dos enlaces psíquicos fechados com a mãe. Contudo, o pai também se encontra em uma trama identificatória consciente e inconsciente com sua própria mãe e pai, a bissexualidade psíquica (Freud, 1938/2006). A criança inevitavelmente está exposta à maneira como o casal parental se constitui e se relaciona: são as marcas da bissexualidade psíquica do casal parental na constituição do psiquismo infantil, e a trama identificatória decorrente, segundo a autora, "faz parte tanto da constituição de um eu feminino quanto da escolha amorosa feita na vida adulta" (p. 135) por uma mulher.

Na quinta parte do livro encontramos construções clínicas muito interessantes e ilustrativas, quando também é possível perceber a dedicação da autora-analista ao tema estudado. São apresentados dois casos clínicos, Zoe e Liz, ambas com grandes dificuldades de se separarem de suas mães, mas de maneiras distintas. Em Zoe, "a devastação da relação mãe e filha toca na fronteira da impossibilidade de viver" (p. 158), demonstrando o quanto a feminilidade se entrelaça com a constituição do eu, como também pode ser verificado na fala significativa de Eva, acima citada. Desde muito pequena, Zoe sentiu-se responsável pelo estado psíquico depressivo de sua mãe. Sentimentos de culpa a invadiam, pensava que fazia mal às pessoas; consequentemente, isolava-se do mundo. Ao longo da trajetória da análise, Zoe foi percebendo que teria que cuidar de si própria ou deixar-se sepultar na depressão materna. Felizmente, como coloca a autora-analista, a vida prevaleceu dada sua capacidade de persistência e de sonhá-la viva. Um investimento, sem dúvida, custoso e intenso, mas gratificante. Marina Ribeiro dialoga com o conceito de mãe morta de Green (1988) e o conceito de pacto negro de Godfrind (1994), para esclarecer os mecanismos envolvidos no funcionamento psíquico de Zoe e, também, para compreender os investimentos mortíferos entre mãe e filha.

Liz, por sua vez, é uma filha inundada de projeções narcísicas da mãe. Aqui o conceito de cilada narcísica (Bidaud, 1998) parece ser mais adequado para esclarecer este tipo de relação na qual estava aprisionada. A filha não poderia andar um centímetro além do que a mãe havia so-nhado/projetado para ela: "Quando eu era pequena eu precisava contar tudo o que me acontecia para minha mãe, se eu não contasse algo de muito ruim aconteceria, hoje preciso contar tudo que penso e sinto, fico ansiosa para voltar para casa e ficar só com ela" (Liz). Reinava em Liz o império do mesmo (André, 2003), no qual a diferenciação é conquistada a duras penas. Interessante notar que tanto Zoe como Liz revivem com seus namorados experiências do que primeiramente foi vivido com a mãe. Como assinalou Freud (1938/2006, p. 217): para ambos os sexos, a mãe é "o mais forte objeto amoroso e o protótipo das relações amorosas posteriores". Importante dizer que em nenhum dos dois casos o pai pôde ser experienciado como uma segunda chance, pelo contrário, "a frustração (com o pai) remetia a filha novamente à mãe" (p. 185).

Finalizando o livro com suas considerações ricas e poéticas, Marina Ribeiro pensa a separação entre mães e filhas como um processo "nas fronteiras do sem-fim" (p. 188).

A linha do horizonte é apenas a hipótese imaginária de um limite; neste sentido, o feminino é azul. É o mar no qual a vida evoluiu em sua conjunção com o céu. Limite ilusório, pois no horizonte não é possível distinguir os azuis - do mar e do céu, do eu e do outro (p. 188).

Ressalta que as mulheres ainda desejam, inconscientemente, a mãe, o seu primeiro amor, e que a elaboração desse vínculo faz-se necessária: tanto o ódio como o amor precisam ser elaborados. O pai, ou a função paterna, representa a salvação dessa díade, pois a vida psíquica se faz no interjogo de ilusão e desilusão. Na trajetória bebê-menina-mulher existe, portanto, uma especificidade: é a particularidade da semelhança, do mesmo que engendra o mesmo (André, 2003), que potencializa os riscos de uma cilada narcísica e/ou da ilusão simbiótica. A dupla mãe e filha transitam ao longo da vida constituindo um dueto inseparável, e ao mesmo tempo e paradoxalmente, diferenciado, para que cada uma tenha um espaço psíquico próprio. No entanto, isto dependerá da habilidade da dupla: "De mãe em filha, entre o precioso e o tanático, entre força e vulnerabilidade... é preciso talento" (p. 197).

 

Referências

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Correspondência:
Sandra Aparecida Serra Zanetti
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