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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.47 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2013

 

RESENHAS

 

Entre elos perdidos

 

 

David Zimerman

Analista didata da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre SPPA

Correspondência

 

 

Autor: David Léo Levisky
Editora: Imago, Rio de Janeiro, 2011, 378p.
Resenhado por: David Zimerman

Com muita satisfação recebi o convite do amigo e xará, David Léo Levisky, para fazer uma resenha - a ser publicada nesta Revista Brasileira de Psicanálise, da qual ele já foi editor - do seu mais recente livro: Entre elos perdidos.

Tal se deve ao fato de constituir para mim um privilégio resenhar a obra de um autor que conheço de longa data - e do qual já li, sempre com prazer e proveito, se não toda, pelo menos a maioria da produção escrita.

Não obstante o fato de dispensar David apresentações no meio psicanalítico, mas visto que o presente livro tem tudo para alcançar interesse por parte de um público mais heterogêneo, que não unicamente os costumeiros leitores da "área psi", creio ser de justiça destacar, de forma resumida, dentre suas múltiplas atividades, os pontos mais significativos.

David Levisky nasceu em São Paulo, onde se formou em medicina, especializou-se em psiquiatria e psicanálise, e direcionou sua maior dedicação no atendimento de crianças e adolescentes.

A par dos reconhecidos méritos de sua eficácia clínica, obteve também o título de doutor em História Social pela Universidade de São Paulo, além de ter sido diretor clínico do Centro Israelita de Assistência ao Menor.

Mais: respondeu pela coordenação de significativos eventos, como os bem-sucedidos encontros "Adolescência e violência"; "Freud: psicanálise, cultura e judaísmo - 100 anos de história", entre outros. É membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, na condição de psicanalista didata.

Em relação à resenha propriamente dita de Entre elos perdidos, tenho uma convicção: embora Levisky reitere que seu livro se caracteriza como sendo um "romance histórico", particularmente vou mais longe.

Concordo, realmente, com o fato de que a essência da trama gira basicamente em torno de romances amorosos protagonizados por Eliazar Cação, professor de sociologia e antropologia, brasileiro, cristão, casado com Cláudia, bem-sucedida profissional executiva de negócios imobiliários, em São Paulo. O casal tem dois filhos, já crescidos e emancipados, que moram fora do Brasil, o que não impede que a família seja bastante unida.

Particularidade de Cláudia: apesar de ser, como o marido, de nacionalidade brasileira e de educação cristã, tem uma avó judia, apegada aos costumes e a rituais religiosos judaicos. De nome Berta, essa avó, em razão das perseguições e humilhações que ela e a família haviam sofrido sob o nazismo (1933-45), para proteger seus descendentes daqueles sofrimentos, simula ter renegado seu judaísmo.

Quando passa a residir no Brasil, continua aquela avó a manter sua simulação. No seu dia a dia, porém, e de forma muito discreta, ela não consegue deixar de revelar a permanência que a herança judia ocupava em sua mente e seu coração.

Tudo isso tem grande influência em Cláudia e, indiretamente, em Eliazar, que fica obcecado e empolgado em conhecer e estudar, com profundidade, as origens, o desenvolvimento do judaísmo e as principais características do sentimento de identidade dos judeus, bem como os fundamentos religiosos e o perfil dos heróis que compunham a história do mundo judaico, em todos os aspectos.

Parte do enredo se ocupa dessa procura do professor Eliazar Cação do possível encontro do seu verdadeiro sentimento de identidade nos elos do passado, que talvez tivessem sua origem no judaísmo antigo.

Fortes, pensava ele, eram aquelas conexões com sua forma de pensar e filosofar, juntamente com seu apego a determinados valores, princípios, costumes e, mesmo, certo fanatismo na forma de pesquisar quem seria ele de fato, e o que faria ou deveria fazer enquanto estivesse vivo.

Abro um parêntese para enumerar alguns pontos que, acredito, são os principais responsáveis pelo meu entusiasmo por este livro, cujo estilo literário prende a atenção do leitor, do começo ao fim.

Em sua abertura, por exemplo, há um enfoque numa real tragédia ocorrida em julho de 2007, com um avião da TAM, no voo 3054, que sairia de Porto Alegre, chegaria a São Paulo e daí seguiria para Paris. Todas as pessoas que acompanharam as palestras de Eliazar sabiam que ele voltaria a São Paulo e, de lá, prosseguiria para Paris.

A repercussão da tragédia na mídia (nenhum passageiro teria sobrevivido) provoca desespero em todos que o conheciam, especialmente em Diana, universitária que o vinha ciceroneando e, de certa forma, se envolvera com ele. Levisky demonstra, neste ponto, grande habilidade e talento ao mesclar e enriquecer uma tragédia real com observações e reflexões próprias de fatos ficcionais.

Outro aspecto que me encantou. Em que pese não ter almejado produzir uma obra prioritariamente amparada em conceitos e vivências psicanalíticas, mas, sim, um "romance histórico", conseguiu ele atingir um duplo objetivo.

Concordo que o autor conseguiu para sua obra uma característica de "romance" (o que aparece com clareza nas diferentes relações amorosas). Já o termo "histórico" desponta, de forma enfática, em situações que dizem respeito à evolução da humanidade sob diversos prismas de observação (os personagens retratam transformações que envolvem geografia, religiões, guerras, costumes, modo de educação por parte dos pais, de professores, de representantes de distintas religiões, rivalidade entre nações, convergências e divergências entre judaísmo, islamismo e cristianismo).

Tudo isso se acompanha das paulatinas mudanças evolutivas dos valores, hábitos e crenças - de modo que não só a Idade Média dos povos mediterrâneos é evocada, mas igualmente a atualidade socioeconómica e política do Brasil.

Apesar de Levisky ter evitado incluir um enfoque prioritariamente psicanalítico na sua metáfora de "romance histórico", a verdade é que, como bom psicanalista, a psicanálise está em seu sangue. Por intermédio de seu elenco - em que Eliazar predomina -, o leitor acompanha de perto e se identifica com as alegrias, dores, conflitos, dúvidas, angústias e as autorreflexões que evidenciam a sabedoria e conhecimentos do nosso autor.

Ainda que sutilmente, um bom observador logo capta que Davi fala por meio de seus personagens, de Eliazar, principalmente, da esposa Cláudia, de Sofia (uma linda mulher, antropóloga e islamita, grande paixão e amante de Eliazar).

Eliazar também se nutriu de pensamentos, frases e expressões do seu grande modelo e ídolo, Maimónides (1138-1204), importante figura histórica, um consagrado médico e filósofo judeu, nascido em Córdoba (Espanha), durante o domínio mouro.

Outras vezes, Levisky brinda o leitor com frases sábias, envolvidas num suave teor psica-nalítico, atribuídas a um "amigo psicanalista" que teria lhe revelado a sabedoria de determinadas e belas reflexões.

Como o professor Eliazar é o protagonista maior, vale traçar as características de sua personalidade. Em meu entendimento, sua caracterologia é, marcadamente, de natureza obsessiva. Sempre muito correto, pelo menos na aparência, cuidava dos mínimos detalhes em tudo que fazia e dizia, de modo que ficou conhecido como um destacado e louvado professor de sociologia e antropologia, reforçando a sua imagem de estudioso, meticuloso, profundo, ético, gentil com todos.

No entanto, Levisky faz questão de mostrar claramente (a partir de aspectos da conduta de Eliazar) que, pari passu a um caráter obsessivo, existia outro Eliazar, que eu rotularia da presença em si, de fortes características narcisistas, muitas vezes manifestadas por meio de atitudes sedutoras; uma ânsia insaciável de ser reconhecido e louvado como sendo um vencedor em tudo, notadamente em relação às mulheres bonitas e atraentes.

A esses traços sadios e reconhecidos, certas manifestações de Eliazar denunciam, no entanto, uma pessoa perturbada com sua ambiguidade, ambivalências, dúvidas permanentes, enormes dificuldades em tomar decisões difíceis, o que o leva, em consequência, em variadas situações, especialmente as amorosas, a apelar para o recurso de seduzir, ser seduzido e de usar maciças doses de mentira.

Assinale-se, ainda, que ao longo da leitura aparecem quatro mulheres que se "apaixonam" por ele, em diferentes circunstâncias. Sigamos a ordem de sua entrada.

(1) Diana surge no início. Trata-se de uma universitária designada pela direção da faculdade (onde Eliazar iria proferir palestras, em Porto Alegre), para recebê-lo no aeroporto Salgado Filho, em sua chegada de São Paulo, e deixá-lo no Plaza Hotel. Na sequência, o acompanharia no cumprimento de encontros e contatos que figura tão ilustre fazia por merecer.

Para o leitor perceber melhor o "outro lado" de Eliazar, paralelo ao "obsessivo", reproduzo uma das reflexões de Diana: "Eliazar Cação era uma figura excitante e controvertida, não só intelectualmente pela sua erudição e posicionamentos ideológicos, políticos e sociais, mas também como homem, graças ao seu charme e à sua disponibilidade afetiva. Estar com ele gerava em mim uma excitaçãozinha peculiar, com pontas de inveja e de ciúme entre colegas" (p.14). Até o projeto de se casar com meu namorado sofreu um forte abalo diante do fato de Eliazar ser simpático e sedutor. "Percebi que ele havia notado minha feminilidade ao me olhar por inteira, ter sorrido, e feito uma expressão entusiasmada ao elogiar a minha beleza e jovialidade" (p. 15).

(2) Em Montevidéu, Eliazar seduziu e foi seduzido por Lúcia, num romance que durou pouco tempo, mas o suficiente para o leitor perceber que também Lúcia sentiu-se apaixonada por ele. (Para deleite e envaidecimento de Eliazar, ela, na intimidade, o chamava de "meu senhor", p. 37).

Também com Lúcia, diante da possibilidade de uma relação mais profunda, Eliazar evidencia sua costumeira ambivalência e ambiguidade, o que nela provocava uma constante pergunta: "O que restará de nossa amizade? Será que ela vai durar até o fim de nossos tempos ou vamos nos estapear no meio do caminho?" (p. 39).

A relação com Lúcia, embora curta, enriquece-o, porquanto ela é dotada de notável cultura geral, o que permite que Levisky, ao tempo em que brinda o leitor com reflexões sobre afetos universais (amor, ódio, inveja, admiração, sexo, vida, morte, ética, deuses), enfatize que o modo pelo qual eles são sentidos e vividos pelas pessoas, em todas as culturas, depende do local e da época em que transcorrem.

Partindo daí, indiretamente, Levisky nos justifica porque denomina o presente livro de um "romance histórico". Ou seja, nos diálogos de Eliazar com Lúcia, o autor evoca a Idade Média e de como esta deu origem à construção do mundo ocidental; o surgimento das "Cruzadas"; a formação dos impérios; os conflitos papais e disputas entre a Igreja e o Estado; a estruturação do cristianismo, judaísmo, islamismo etc.

(3) Cláudia, esposa de Eliazar, ocupa naturalmente um importante espaço. Tanto sob o ponto de vista do amor sadio entre eles, quanto na patologia da relação. Traições recíprocas, ciúmes, mentiras e ameaças de divórcio se alternam a momentos amorosos. O reconhecimento de cada um dos méritos do outro, que às vezes aflora, não impede as violentas brigas verbais, com ataques depreciativos e humilhantes.

No meu entender, o ponto alto do livro consiste na verdadeira batalha que se desencadeia quando Cláudia descobre que estava sendo traída por "uma tal de Sofia". Ambas lutam com todas as armas pela posse de Eliazar. Os argumentos, as juras de cada uma delas, as cartas enviadas ao "grande amor" da vida de ambas - da esposa e da amante - são de leitura imperdível.

(4) Sofia entra em cena em Paris, num encontro casual. Acompanhado pela esposa, Eliazar lá se encontrava não só por motivos turísticos: seria aquela uma forma de iniciar um projeto de peregrinação, que ele faria de forma obstinada, para conhecer melhor Maimônides - seu grande modelo -, tanto em questões filosóficas quanto místicas, teológicas, mitológicas e metafísicas.

Uma grande motivação dessa viagem seria conhecer a Bibliothèque Nationale de France. Ele estava convicto de que encontraria ali documentos medievais e iniciaria a pesquisa eletrônica na busca de textos do e sobre Maimônides.

Seu encontro com Sofia acontece naquela biblioteca, onde ela pesquisava matérias respei-tantes à sua especialidade (antropologia). Eliazar fica como que hipnotizado pelos lindos olhos verdes dela. A atração é mútua e a empatia quase instantânea. Juntam-se interesses intelectuais comuns e uma tremenda química erótica. À parte isso, Sofia presta um relevante auxílio a Eliazar na busca de documentos, textos sobre a vida e doutrinas de Maimônides .

Não poderíamos, por fim, deixar de registrar o modo como Levisky assinala a intensa devoção de Eliazar a Maimônides e seu judaísmo. Quando perguntavam se ele era judeu, Eliazar costumava responder: "Não, não sou judeu, mas um simpatizante desse povo que tem sofrido muito e que, apesar disso, ou, por isso mesmo, têm oferecido inúmeras contribuições para o desenvolvimento da humanidade" (p. 49).

Em outra passagem, Eliazar desabafa em relação à sua identidade, ao confessar a possibilidade de que:

[...] parte de minha personalidade, como se eu estivesse à procura de algo que falta em mim e que não sei o que é. Pode ser que elos de minha personalidade tenham se perdido em meio a tantas perseguições e fugas. Meu desejo de avançar nas pesquisas sobre as perseguições aos judeus desde a Idade Média pode estar relacionado a fatos históricos que são anteriores às inquisições, espanhola e portuguesa (pp. 150-151).

Sofia nascera em Éfeso, cidade situada no extremo norte da Turquia, antigo reduto judaico do Mediterrâneo, anterior à Diáspora (maciça dispersão de judeus, acontecida no ano 70 d. C. -seus vestígios mais claros podem ser vistos no Museu da Diáspora em Tel Aviv). Divorciara-se recentemente de seu marido islamita e encontrava-se carente de um novo amor.

Tal relacionamento, assim, num breve tempo transforma-se em ardente paixão recíproca, com momentos paradisíacos e outros de forte angústia e dolorosas indecisões (situações e sentimentos vividos por todos os protagonistas daqueles triângulos amorosos). Inspirada pelas leis e princípios religiosos islamitas, propõe, com a maior naturalidade, que Eliazar convivesse simultaneamente com ela e Cláudia.

Apesar da convicção de que a esposa jamais aceitaria algo tão distante de suas crenças religiosas e de seu caráter, Eliazar chega até a fazer junto a ela um ensaio da ideia - tão só para comprovar o que já supunha.

Com isso, mais se afunda no impasse em que se sentia prisioneiro e sem saída - embora orgulhoso e narcisicamente gratificado:

[...] o que é que eu tenho de tão especial, que duas mulheres certamente muito diferenciadas, intelectual e esteticamente lindas, continuam se mantendo apaixonadas por mim, embora saibam que não cumpro o que prometo, que minto e as engano sistematicamente e que não tenho coragem em tomar decisões importantes para nós três, de modo que prefiro enrolá-las do que correr o risco de perder uma delas, ou as duas, e cair num doloroso estado de solidão e, logo, depressão.

No final do livro, Claudia e Sofia, sem uma conhecer a outra, encontram-se à espera de Eliazar no aeroporto de Paris. Supunham que ele estaria vindo de São Paulo, disposto a cumprir as promessas que fizera.

Para Cláudia, afiançara que viajariam para Israel, oportunidade em que aprofundaria seus conhecimentos sobre o judaísmo e, provavelmente, buscaria mais e novos vestígios de Maimônides. Para Sofia, prometera aceitar o convite de ficar hospedado na residência que ela mantinha em Paris.

Sob o signo da tragédia de Congonhas, o aeroporto parisiense fervilhava. Cláudia e Sofia estavam numa imensa fila, em busca de informações sobre o destino de Eliazar. O que teria acontecido com ele? Estaria vivo ou seria um dos passageiros daquele fatídico voo 3054?

Sofia encontrava-se um passo à frente de Claudia - portanto, de costas para esta. Entre ambas, como que a flutuar, a vaga sensação da existência de uma rival nas proximidades.

E se fosse assim, e se Eliazar aparecesse vivo: como seria o seu comportamento diante de cada uma? (Incrível como Levisky consegue aqui que o leitor partilhe com elas as mesmas dúvidas e desejos.)

Não posso concluir a presente resenha sem deixar de recomendar com empenho a leitura desta obra. Dentre tantos motivos, constitui o principal a oportunidade de o leitor, em muitos momentos, sentir-se identificado com alguns dos protagonistas - o que, certamente, o levará a refletir sobre o que faria se estivesse naquele lugar -, bem como sentir em si mesmo que a nossa personalidade nunca é um bloco sólido, único e compacto. Ao contrário, perceberá ele que todos temos o nosso psiquismo dividido em "partes" diferentes entre si: o lado adulto convivendo com a criança que um dia fomos (e que se mantém alojada em nosso inconsciente, como "resíduo" do nosso passado). Outro exemplo poderia ser o da nossa possível "parte obsessiva-compulsiva" se desentendendo com a nossa "parte" narcisista.

Não fosse o respeito ao necessário espaço desta resenha, poderíamos alinhar inúmeros exemplos de conflitos que se processam no interior do psiquismo de cada um de nós, cujo conhecimento contribui para que nos tornemos mais harmônicos, coesos, libertos e felizes.

 

 

Correspondência:
David Epelbaum Zimerman
Rua Comendador Caminha, 286/404
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Tel.: (51) 3222-9077
dgzimer@terra.com.br

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