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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.47 no.2 São Paulo Apr./June 2013

 

INTERCÂMBIO

 

Fairbairn e personalidades múltiplas

 

Fairbairn and multiple personalities

 

Fairbairn y las personalidades múltiples1

 

 

Paul FinneganI; Graham ClarkeII; Tradução do grupo D'Artagnan*

IPsicanalista, membro da Canadian Psychoanalytic Society CPS, professor do Toronto Institute of Psychoanalysis e do Toronto Institute of Contemporary Psychoanalysis
IIPsicanalista, professor visitante no Centre for Psychoanalytic Studies, University of Essex, Colchester, Reino Unido

Correspondência

 

 


RESUMO

Fairbairn descreveu sua teoria madura como "obviamente adaptada para explicar tais manifestações severas como as encontradas em casos de personalidade múltipla" (1952/2002, p. 159). Nosso objetivo aqui é demonstrar a utilidade da teoria de Fairbairn para a compreensão e tratamento psi-canalítico deste transtorno. Começaremos com um breve resumo introdutório da teoria madura do autor, salientando alguns aspectos de seu pensamento anterior sobre este transtorno que guiaram o subsequente desenvolvimento dessa teoria. A seguir, apresentaremos uma versão estendida do modelo de Fairbairn. Em nossa discussão do material clínico de cinco casos de personalidade múltipla, ilustramos as maneiras pelas quais este modelo nos permite: 1) identificar diferentes personalidades múltiplas com estruturas de ego ou objetos internos específicos; 2) ilustrar agrupamentos (clusters) de múltiplos geralmente encontrados; 3) antecipar aspectos das relações que tipicamente existem entre personalidades múltiplas; e 4) antecipar as dinâmicas transferenciais relacionadas. Em seguida, discutimos nossa perspectiva fairbairniana em relação às importantes contribuições de Davis e Frawley (1992a, 1992b) e de Grotstein (1991, 1992, 1994a, 1994b). Postulamos que pode ocorrer uma dissociação traumática das estruturas endopsíquicas, e que tais estruturas endopsíquicas dissociadas podem ser reprimidas por longos períodos de tempo antes de a repressão ser retirada. Essas estruturas endopsíquicas e suas personalidades relacionadas, novamente conscientes, funcionam de uma maneira indicada pelo conceito de cisão vertical.

Palavras-chave: Fairbairn; personalidade múltipla; cisão; estrutura endopsíquica.


ABSTRACT

Fairbairn described his mature theory as one "obviously adapted to explain such extreme manifestations as are found in cases of multiple personality" (1952/2002, p. 159). Our purpose here is to demonstrate the usefulness of Fairbairn's theory to the psychoanalytic understanding and treatment of this disorder. We begin with a brief introductory summary of Fairbairn's mature theory and highlight some aspects of his early thinking on multiple personality that informed the subsequent development of this theory. We then present an extended version of Fairbairn's model. In our subsequent discussion of clinical material from five cases of multiple personality, we illustrate the ways in which this model allows us: 1) to identify different alter personalities with specific ego-structures or internal objects; 2) to illustrate commonly found clusters of alters; 3) to anticipate aspects of the relationships which are typically found to exist between alter personalities; and 4) to anticipate related transference dynamics. We then discuss our Fairbairnian perspective in relation to the important contributions of both Davis and Frawley (1992a, 1992b) and of Grotstein (1991, 1992, 1994a, 1994b). We posit that a traumatic dissociation of endopsychic structures may occur and that such dissociated endopsychic structures may be repressed for long periods of time prior to the repression being lifted. These endopsychic structures, and their related personalities, conscious once more, then function in a manner indicated by the concept of a vertical splitting.

Keywords: Fairbairn; multiple personality; splitting; endopsychic structure.


RESUMEN

Fairbairn describió su teoría madura como "obviamente adaptada para explicar tales manifestaciones severas como las encontradas en casos de personalidad múltiple" (1952/2002, p. 159). Nuestro objetivo aquí es demostrar la utilidad de la teoría de Fairbairn para la comprensión y el tratamiento analítico de este trastorno. Comenzaremos con un breve resumen introductorio de la teoría madura del autor, destacando algunos aspectos de su pensamiento anterior sobre el trastorno que guiaron el posterior desarrollo de esa teoría. Luego presentaremos una versión extendida del modelo de Fairbairn. En nuestra discusión del material clínico de cinco casos de personalidad múltiple, ilustramos las formas por las cuales este modelo nos permite: 1) identificar diferentes personalidades múltiples con estructuras de ego u objetos internos específicos; 2) ilustrar agrupamientos (clusters) de múltiplos generalmente encontrados; 3) anticipar aspectos de las relaciones que típicamente existen entre personalidades múltiples; y 4) anticipar las dinámicas transferenciales relacionadas. A continuación, discutimos nuestra perspectiva fairbairniana en relación a las importantes contribuciones de Davis y Frawley (1992a, 1992b) y de Grotstein (1991, 1992, 1994a, 1994b). Planteamos el postulado de que puede ocurrir una disociación traumática de las estructuras endopsíquicas y que tales estructuras endopsíquicas disociadas pueden ser reprimidas durante largos períodos de tiempo antes de la represión ser retirada. Esas estructuras endopsíquicas y sus personalidades relacionadas, nuevamente conscientes, funcionan de una manera indicada por el concepto de división vertical.

Palabras-clave: Fairbairn; personalidad múltiple; división; estructura endopsíquica.


 

 

Ao longo de sua carreira, Fairbairn voltou-se para a personalidade múltipla como uma condição que sua "intrincada sondagem teórica" (Hinshelwood, 1991, p. 307) poderia iluminar. Isto começou com sua tese sobre "Dissociação e repressão" (1929a/1994) e com seu ensaio sobre o superego (1929b/1994), os quais só se tornaram disponíveis após a publicação do inestimável From instinct to self (Scharff & Birtles, 1994). O principal desenvolvimento da teoria madura de Fairbairn aconteceu em uma série de artigos escritos no começo dos anos 40 e reunidos em seu livro Estudos psicanalíticos da personalidade (1952/2002). Existem referências explícitas à personalidade múltipla por todo o livro e, também, à serventia do modelo de relações de objeto desenvolvido por ele para compreensão e tratamento deste transtorno (1946, 1929a/1994, 1929b/1994, 1954/1994, 1931/2002, 1940/2002, 1944/2002)2. Comentários no mesmo sentido aparecem em seu artigo sobre estados histéricos (1954/1994). Em uma importante observação sobre sua teoria madura, Fairbairn a descreveu como "obviamente adaptada para explicar tais manifestações severas como as encontradas em casos de personalidade múltipla" (1952/2002, p. 159).

Nosso objetivo aqui é demonstrar a utilidade da teoria de Fairbairn para a compreensão e tratamento psicanalítico da personalidade múltipla. Começaremos com um breve resumo introdutório da teoria madura do autor, salientando alguns aspectos de seu pensamento anterior sobre este transtorno que guiaram o subsequente desenvolvimento de sua perspectiva teórica. A seguir, apresentaremos um resumo da recente interpretação das ideias de Fairbairn, que será aplicado à discussão do material clínico de cinco casos de personalidade múltipla.

 

Uma breve introdução a Fairbairn e à personalidade múltipla

A teoria madura de Fairbairn, ou sua "psicologia da estrutura dinâmica", é vista por muitos como a mais completa teoria das relações de objeto desenvolvida dentro da chamada escola britânica das relações de objeto (Greenberg & Mitchell, 1983; Hughes, 1989). O bebê ativo que busca objetos, dependente de seu cuidador para quase tudo - "adaptado para ser inadaptado" (Macmurray, 1961/1995) -, tem um ego original intocado, que incorpora um objeto original pré-ambivalente. Com a experiência, cisões ambivalentes no objeto levam a cisões no ego - estas se baseiam em superexcitantes (aceitáveis) ou super-rejeitantes relações de objeto estabelecidas com o cuidador. Isso gera a "estrutura endopsíquica básica", contendo diversas estruturas dinâmicas: um ego consciente central, um ego ideal pré-consciente e dois selves inconscientes subsidiários - um ego e objeto libidinal, e um ego e objeto antilibidinal. Existem fortes paralelos com a teoria estrutural de Freud, mas reconstruída sobre uma atualizada compreensão científica do relacionamento entre energia e estrutura. O ego central e seu ego ideal recalcam os selves libidinal e antilibidinal inconscientes com o intuito de regular as relações da criança com o cuidador, de quem depende sua vida. No desenvolvimento, a pessoa move-se da dependência infantil e atravessa o estágio transicional em direção à dependência madura, que envolve relações com outros bem diferenciados (Fairbairn, 1941/2002).

A psicologia da estrutura dinâmica de Fairbairn baseia-se no entendimento de que as estruturas cindidas de ego e objeto podem agir independentemente como entidades -como pessoas - e funcionar, uma com a outra, em relacionamentos dinâmicos. A afirmação mais clara feita por Fairbairn em defesa dessa perspectiva aconteceu em 1943, durante as "Controvérsias" (King & Steiner, 1991), quando argumentou que o conceito explanatório de "phantasia", no trabalho de Melanie Klein e de seus seguidores, tornara-se obsoleto e que era o momento para a substituição

... do conceito de "phantasia"3 pelo de uma "realidade interna" habitada pelo Ego e seus objetos internos. Estes deveriam ser vistos como tendo uma estrutura organizada, uma identidade própria, uma existência endopsíquica e uma atividade tão real no mundo interno quanto a dos objetos do mundo externo (Scharff & Birtles, 1994, Vol. 2, p. 294).

Mais tarde, Fairbairn sugeriu que os objetos internos são estruturas compostas complexas caracterizadas por sobreposição e fusão - o mesmo sendo verdadeiro a respeito dos aspectos egoicos ligados a todas as relações de objeto (Fairbairn, 1944/2002, pp. 122-123).

Em um artigo anterior sobre um caso clínico com sintomas característicos da personalidade múltipla, Fairbairn introduz o conceito de "constelações estruturais funcionais", que acreditamos ser um precursor da "estrutura endopsíquica básica" de sua teoria madura. Na discussão desse caso, ele afirma que a divisão tripartite da mente feita por Freud deve ser tomada para representar "um agrupamento funcional característico dos elementos estruturais na psique ... mas os fatos do caso também indicam a possibilidade do aparecimento de outras unidades estruturais funcionais" (1931/2002, p. 218). Entendemos estas "unidades estruturais funcionais" como precursoras das estruturas dinâmicas de ego e objeto compreendidas na estrutura endopsíquica básica de sua teoria madura.

No mesmo artigo, Fairbairn indicou que a personalidade múltipla poderia ser vista como resultado da "invasão do campo consciente por constelações estruturais funcionais que se tornaram diferenciadas no inconsciente sob pressão de necessidade econômica" (Fairbairn, 1931/2002, pp. 221-222), e argumentou que tais constelações aparecem tanto como estruturas-de-ego quanto como objetos internos, cada qual podendo adquirir "uma independência dinâmica" (Fairbairn, 1944/2002, p. 132).

Oferecemos como ilustração da "invasão do campo consciente por constelações estruturais funcionais" um pequeno resumo de material clínico do caso de Evelyn, que apresentamos detalhadamente em outro artigo (Finnegan & Clarke, 2012). Neste caso, no curso de muitos anos de análise, emergiram três, até então longamente recalcadas, constelações de egos e objetos ideal, libidinal e antilibidinal - uma composta de crianças, que se desenvolveu durante o período de latência, quando o pai começou a abusar sexualmente dela; uma composta de adolescentes, que se desenvolveu nos anos em que Evelyn estava longe, na escola, e os abusos recomeçaram; e uma composta de jovens adultos4, desenvolvida quando Evelyn deu à luz e cuidou, independentemente, por três anos, do filho que teve de seu pai. Na linguagem da teoria de Fairbairn em questão, o caso de Evelyn ilustra a dinâmica de repetições traumaticamente induzidas da estrutura endopsíquica básica, com personalidades relacionadas à idade - criança, adolescente e jovem adulto - surgindo de cada uma das estruturas de ego e objeto presentes na estrutura endopsíquica básica induzida a cada repetição. É importante notar que esses três grupos de personalidades múltiplas relacionadas à idade emergiram do inconsciente em estágios sucessivos durante a análise, com um longo período de trabalho analítico feito com o grupo infantil antes que o grupo adolescente se mostrasse, e gastando um tempo considerável com este último antes que o grupo adulto se fizesse presente. Retornaremos a esse ponto na discussão que segue à apresentação das vinhetas clínicas.

Aos leitores curiosos por uma análise mais detalhada do interesse de Fairbairn no Transtorno de Personalidade Múltipla e o papel que ele teve no desenvolvimento de sua teoria das relações de objeto, recomendamos a leitura de nosso recente artigo sobre o assunto, publicado na revista Attachment (Clake & Finnegan, 2011).

 

Uma interpretação contemporânea de Fairbairn

Clarke (2005, 2006) ofereceu uma síntese do modelo da estrutura endopsíquica de Fairbairn com as categorias topográficas de Freud, uma vez que o primeiro não levou mais à frente seu uso original dessas categorias. A partir do trabalho de Grotstein (1998), Padel (1985, 1991), Rubens (1984) e Scharff e Birtles (1994, 1997), Clarke sugeriu que cada uma das estruturas dinâmicas baseia-se nas relações de objeto, e que a aplicação consistente das categorias topográficas significa que existem instâncias pré-conscientes de estrutura dinâmica libidinal e antilibidinal (estruturas de ego e objetos internos). Além disso, o amadurecimento psíquico e a mudança abrangem dois processos distintos: o primeiro envolve aprender com a experiência no mundo e, assim, ampliar o alcance e a extensão dos poderes dos egos central e ideal (Rubens, 1984); o segundo diz respeito ao desenvolvimento dos selves central e ideal (estrutura ego-objeto) baseado na (re)integração de relações de objeto dos selves subsidiários libidinal e antilibidinal (estrutura ego-objeto) (Padel, 1991). Clarke defende que o estabelecimento do "conjunto pré-consciente triádico" de relações entre as estruturas dinâmicas (ou "unidades estruturais funcionais") ideal, libidinal e antilibidinal é um importante aspecto desse modelo. Isto conduz a uma nova representação da estrutura endopsíquica, ou psicologia da estrutura dinâmica, proposta por Fairbairn. Foi este modelo que Finnegan (2007) afirmou ser adequado para utilizarmos clinicamente e ajudar-nos a compreender e tratar casos de personalidade múltipla.

 

A aplicação clínica do pensamento de Fairbairn à personalidade múltipla

O "paradigma do Transtorno da Personalidade Múltipla", como resumido por Lowenstein e Ross (1992), descreve a condição como "uma complexa, crônica forma de transtorno dissociativo pós-traumático essencialmente relacionada a abuso ou traumas infantis severos e repetidos, usualmente iniciados antes dos cinco anos" (p. 3). Em cada um dos casos discutidos abaixo, abusos físicos e sexuais experimentados durante a infância foram um importante fator etiológico no desenvolvimento da personalidade múltipla, embora a extensão do abuso varie consideravelmente.

Descobertas em pesquisas no campo da teoria relacional sugerem que relacionamentos desorganizados e formas perturbadas de comunicação entre os pais e a criança, em particular, não só geram uma tendência ao desenvolvimento de transtornos dissociativos, em resposta ao trauma, mas também geram sintomatologia dissociativa na ausência de trauma (Liotti, 1992, 1995, 1999; Lyons-Ruth, 2003, 2006). As dimensões do diálogo pais-criança mais relevantes para o posterior desenvolvimento da dissociação parecem ser as comunicações contraditórias, falhas em responder, comportamentos de recuo, desorientados, e de confusão de papéis, que passam por cima dos sinais que a criança tem da relação, mas não são, em si mesmos, explicitamente hostis ou intrusivos. "Nessas situações, o cuidador comporta-se de maneiras que têm o efeito de 'desligar' a criança do diálogo" (Lyons-Ruth, Dutra, Schuder & Bianchi, 2006, p. 80). Em todos os casos que apresentaremos, a experiência de descatexia crônica maternal recorrente [crmd] - que resulta em a criança ser repetidamente tratada como se ela não existisse - mostrou-se um fator etiológico importante, mas de extensão variável, no desenvolvimento da condição (Finnegan, 2007). Em tais circunstâncias,

 

Figura 1

 

... a criança é confrontada com a falta de um diálogo afetivo integrado, simbólico e interativo com o cuidador, de maneira que esta falta de integração, na forma de uma dissociação, é eventualmente internalizada pela criança (Lyons-Ruth et al., 2006, p. 80).

Furman e Furman (1984), em um artigo sobre "descatexia intermitente" parental, chamam a atenção para as muitas consequências que esta situação tem para a criança em desenvolvimento. Essas incluem a inevitável identificação com o uso feito pelo cuidador desse mecanismo primitivo e o subsequente comprometimento do funcionamento integrativo - e, também importante, uma maior vulnerabilidade à sedução sexual precoce. De uma perspectiva fairbairniana, estamos sugerindo que a descatexia maternal recorrente é uma dinâmica relacional mãe-criança que inevitavelmente gera e enrijece "a posição básica na psique. [a] posição esquizoide" (Fairbairn, 1940/2002, p. 8), compromete o funcionamento integrativo e torna-se o solo propício para capacidades de resposta descatexizante e dissocia-tiva (Finnegan, 2007).

A apresentação do material clínico abaixo ilustra a aplicação do pensamento de Fairbairn à personalidade múltipla. Cada um dos analisandos discutidos esteve previamente em tratamento psiquiátrico ou psicanalítico, e funcionavam razoavelmente bem - mas não sem dificuldades - em suas vidas pessoal e profissional. Em todos os casos, chegou-se ao diagnóstico de personalidade múltipla somente após o início da análise. Embora cada analisando tenha se surpreendido ao descobrir sua personalidade múltipla, e alguns inicialmente tenham resistido a pensar em si mesmos dessa maneira, com o tempo, nenhum duvidou da autenticidade de sua doença. Alguns pacientes imediatamente reconheceram personalidades alternativas que apareceram como "partes" ou "aspectos" de si mesmos, enquanto outros inicialmente não tinham conhecimento algum do que acontecia durante uma determinada parte da sessão na qual uma personalidade alternativa estava presente. Para alguns pacientes, havia uma convicção quase psicótica de que outra personalidade não tinha nada a ver com eles. Nestas circunstâncias, personalidades alternativas são vistas, no sentido mais literal, como não eu. Estes últimos casos requerem que o analista esteja bastante ciente da limitada capacidade desses pacientes para tolerar interpretações prematuras de seus processos de cisão induzidos traumaticamente e estruturados defensivamente.

 

Roger e o menino debaixo d'água

Roger era um homem zeloso, inteligente, que iniciou a análise por volta de seus quarenta e poucos anos, em decorrência de um isolamento social de longa data. Durante muito tempo, privou-se de relações sexuais com homens, pois, no passado, havia repetidamente experimentado tais circunstâncias como "espaçadas... sem sentimentos, emocional ou físico... [e] não lembro muito" Suas experiências sexuais sempre terminavam em fracasso vergonhoso e levavam Roger a sentimentos agressivos para com os seus parceiros. Sem que Roger o soubesse, toda vez que se iniciava algum tipo de contato sexual, um "múltiplo" ou uma personalidade alternativa, o menino debaixo d'água, surgia e assumia posse parcial de sua consciência, deixando a capacidade de funcionamento integrativo de Roger consideravelmente comprometida. O menino debaixo d'água apareceu na época em que foi duas vezes abusado sexualmente por adolescentes de seu bairro, quando tinha sete anos. Estes ataques precipitaram defesas dissociativas, levando os traumas a serem experimentados em um estado dissociado, com uma perda regressiva da identidade pessoal. As lembranças desses eventos foram banidas da memória de Roger, e as experiências vividas pelo menino foram sepultadas debaixo d'água. Durante anos, o paciente foi atormentado por um terror de caminhar na água da praia caso o nível do mar estivesse superior ao seu joelho.

Nós interpretamos o menino debaixo d'água como uma personalidade alternativa de ego antilibidinal traumaticamente dissociado. (Consideramos todas as personalidades alternativas - múltiplos - discutidas a seguir como traumaticamente dissociadas das estruturas dinâmicas presentes na estrutura endopsíquica de Fairbairn - ego ou objeto central, ideal, libidinal e antilibidinal - mas, por interesses de legibilidade, usaremos a abreviação de "múltiplo de ego antilibidinal" com o entendimento de que estamos aludindo à forma mais extensa). Esse múltiplo há tempos "sepultado" foi ativado na idade adulta de Roger, a partir do início da vida sexual e com o contato mais íntimo de seus parceiros. O menino debaixo d'água apresentara-se como uma criança de sete anos que considerou que seria o seu dever "estar lá para Roger" durante as relações sexuais - "para protegê-lo", absorvendo a agressão sexual que, certamente, estaria por vir. Embora parte de Roger, o menino debaixo d'água, considerasse o analista como um objeto antilibidinal sexualmente ameaçador, Roger, como um todo, lentamente desenvolveu confiança. Ele tornou-se, então, capaz de comunicar-se com o menino debaixo d'água, de expressar entendimento e apreciação frente às proteções recebidas e tomar as experiências sexuais abusivas e os afetos correspondentes como seus. O menino debaixo d'água não sentiu ressentimento ou ódio por Roger, ainda que este tenha permitido que o menino fosse abusado, ou mesmo por tê-lo exposto ao perigo repetidas vezes ou por tê-lo deixado sofrer sozinho durante muitos anos. No entanto, as relações entre múltiplos de ego antilibidinal e o ego central costumam ser muito mais conflituosas e antagônicas.

 

Mary e Brenda

Mary era uma administradora de empresas talentosa e bem-sucedida antes da erupção de ansiedade e depressão por volta de seus quarenta e poucos anos. Negligência materna e consequente abuso sexual durante a infância levaram-na ao desenvolvimento de vários múltiplos dos quais Mary não tinha consciência antes de sua análise, apesar de muitos anos com períodos de "tempo perdido" e "vozes" comentando sobre seus pensamentos, sentimentos e ações. Durante a análise, Mary colecionou e organizou um extensivo registro de material histórico e clínico relacionado a si mesma e aos "outros em mim". Ela ficou chocada ao descobrir um dia que a caixa em que estes arquivos foram guardados estava vazia. Um ano depois, foi revelado que Brenda, um múltiplo anteriormente desconhecido de Mary ou do analista, tinha atirado todos os arquivos no fogo. Brenda era um múltiplo que vivenciara um período específico de abuso sexual durante a adolescência precoce e sentia um forte ressentimento de Mary por tê-la deixado sofrer durante tanto tempo sem demonstrar atenção ou preocupação. Brenda não queria fazer parte da mudança, pois tinha medo de que, se Mary fizesse novos progressos na terapia, "isto seria a minha morte". Interpretamos Brenda como um múltiplo de ego antilibidinal e notamos que múltiplos como Brenda sentem um forte ressentimento direcionado ao ego central por terem sido condenados ao abuso por objetos antilibidinais externos e internos. Esse ódio pode ser acompanhado por uma inveja tão intensa e uma raiva tão feroz que todo tipo de esforço será feito pelos múltiplos de ego antibilidinal para minar o processo de análise.

 

Anne e Alice-6, Alice-14 e Alice-32

Na análise de Anne surgiram três múltiplos com idades diferentes, cada um com seu nome ligado à idade - Alice-6, Alice-14 e Alice-32. Cada um surgiu no contexto de um abandono catastrófico específico e correspondente a uma idade, e apresentou-se em análise com comportamento, linguagem e desenvolvimento cognitivo adequado à idade em questão. Esses múltiplos ilustram a sucessiva dissociação induzida por trauma de um ego antilibidinal em camadas. Cada um desses múltiplos de ego antilibidinal tinha uma desconfiança profunda e imediata do analista. Alice-6 era vulnerável, assustada, ferida, amarga, sem esperança, e tinha terror do abandono - de "ser deixada sem ser". Alice-14 era profundamente desconfiada, raivosa, invejosa, vingativa e, ocasionalmente, suicida. Alice-32 era sensível ao desprezo, cruel, destrutiva e vingativa, e ao mesmo tempo sentia-se vulnerável, desesperan-çosa e desesperada. Alice-6 nada sabia de Alice-14 ou de Alice-32. Alice-14 sabia da existência da mais nova, Alice-6, mas não da mais velha, Alice-32. Alice-32 conhecia os dois múltiplos mais jovens. É comum, em uma sequência de múltiplos como esta, que o conhecimento um do outro siga este padrão. Além disso, embora neste caso desconheçamos associações entre múltiplos de ego libidinal com os três múltiplos de ego antilibidinal, tais pareamentos costumam ocorrer com frequência.

 

Marilyn e Edna e Anne

Marilyn sofreu muitos anos de abuso emocional, e às vezes físico, nas mãos de sua mãe - que também dissociava -, e a experiência de descatexia crônica maternal recorrente [crmd] era um aspecto em sua vida cotidiana. A multiplicidade de Marilyn desenvolveu-se neste contexto e antes de ter sido estuprada por seu tio aos sete anos - a repentina lembrança levou-a à análise quando estava com cerca de quarenta anos. Marilyn era constantemente criticada e perseguida por vozes internas. Estas eram as vozes de dois múltiplos - um chamado Edna (o nome de sua mãe), um múltiplo de objeto antilibidinal, e o outro chamado Anne, um múltiplo de ego antilibidinal. Edna referia-se a Marilyn como sua filha e considerava-a com decepção e desprezo. Falava de Anne de maneira similar. Anne via-se como uma parte de Marilyn e, desesperada, odiava Marilyn por toda a dor e sofrimento que ela lhe trouxe. Anne sentia-se vulnerável e impotente diante das críticas de Edna a seu respeito. Ao longo da análise, esses dois múltiplos estavam ativamente engajados com o analista e, com o tempo, Edna e Anne concordaram que desperdiçavam suas energias perseguindo Marilyn - e que ela seria mais bem-sucedida se ambos lhe dessem mais energia. Os dois concordaram em ser mais silenciosos e permitir que Marilyn atravessasse o dia sem críticas. Meses mais tarde, Marilyn - que era muito atenta a essas duas personalidades alternativas e estava frequentemente em comunicação colaborativa com elas - disse que se sentia um tanto sozinha no metrô quando vinha à análise. Quando perguntado o porquê disso, falou sentir falta da já familiar companhia de Edna e Anne, que experimentava ao ouvir suas vozes.

Interpretamos Anne e Edna, respectivamente, como múltiplos de ego e objeto antilibidinal, e notamos que eles constituem componentes de uma subestrutura de ego-objeto antilibidinal. Eles ilustram o ponto em que a cisão de uma estrutura dinâmica ideal, libidinal ou antilibidinal de um aspecto do ego pode ser acompanhada pela cisão da correspondente estrutura dinâmica ideal, libidinal ou antilibidinal de um aspecto do objeto, e que isso resulta na formação de uma subestrutura de ego-objeto cindida. A dissociação de ambos os aspectos do ego e do objeto de estruturas dinâmicas proporciona uma função similar ao desenvolvimento original do ego libidinal e antilibidinal inconsciente, bem como das estruturas dinâmicas de objeto, na medida em que ambos preservam a relação de objeto com o(s) objeto(s) mau(s) e removem a relação da consciência.

Às vezes, múltiplos desenvolvem-se a partir de cada um dos aspectos de ego e objeto da subestrutura de ego-objeto - como foi o caso com Anne e Edna - e, às vezes, um múltiplo se desenvolve unicamente a partir do aspecto de ego de uma subestrutura de ego-objeto -como no caso do menino debaixo dágua.

 

Nancy e a Juíza, Nan Boa, Nan Má e a Ajudante

Nancy procurou análise após uma tentativa de suicídio pela qual ela havia buscado alívio para os estados depressivos crônicos e de autoquestionamentos torturantes. Depois de algumas semanas de análise, ao falar de seus sentimentos suicidas, ela disse que muitas vezes ouviu uma voz dizendo que ela tinha que morrer. Ela se referiu a esta voz como "A Juíza".

Às vezes eu sinto que A Juíza vai assumir o espaço em que estou, e eu vou deixar de ser a pessoa confiante que pensam que sou. A Juíza é uma parte muito importante de mim... Às vezes eu sinto que é certo. que eu deveria morrer. que ela sabe o que é melhor. Às vezes, ela me chama pelo nome. É como se fosse uma parte de mim, mas um pouco separada.

Quando Nancy tentara o suicídio, ela o fez ao ouvir a voz da Juíza dizendo-lhe para se matar, sentindo-se "totalmente controlada" por essa voz. Quando A Juíza, posteriormente, mostrou-se durante uma sessão como uma jovem adolescente enraivecida, disse:

Eu odeio Nancy. Ela é estúpida. Ela é feia e ela é uma falsa. Ela engana todo mundo. Todo mundo pensa que ela é outra pessoa. que ela é capaz, mas ela não é. Ela é carente, triste e com raiva, e eu a odeio e acho que ela deveria morrer. Não seria assassinato, seria um golpe de misericórdia.

A Juíza passou a explicar que ela assume com frequência o controle sobre Nancy e lhe diz o que fazer - às vezes, para se matar. Interpretamos A Juíza como um múltiplo de objeto antilibidinal. A agressão destrutiva de tal múltiplo de objeto antilibidinal pode ser um risco à vida.

A multiplicidade de Nancy tinha se desenvolvido no contexto de sua mãe ter sido muito deprimida durante toda a sua primeira infância e de seu pai ter abusado sexualmente dela repetida vezes na segunda metade de seu terceiro ano de vida. No âmbito dos estados dissociados ao qual ela se retirou adaptativamente dos abusos de seu pai - em que não ocorreu a regressiva perda da identidade pessoal -, Nancy desenvolveu as personalidades alternativas de Nan Boa e Nan Má, ambas com a idade de três anos. Estes dois múltiplos desenvolveram-se até seis anos, que foi a idade com a qual eles apresentaram-se em análise. Nan Boa era a filha inocente, amorosa e animada de um pai de quem ela esperava amor e cuidado - um múltiplo de ego libidinal. Nan Má era a criança cheia de ódio pelo pai que lhe causara terríveis dores físicas e emocionais ao abusar dela violentamente - um múltiplo de ego antilibidinal. Em suas transferências, estes dois múltiplos tomaram o analista, respectivamente, como um objeto libidinal e antilibidinal. Enquanto Nan Boa não sabia nada de Nan Má, esta última conhecia e odiava intensamente a anterior. Este padrão de relacionamento geralmente existe entre múltiplos de ego libidinal e antilibidinal pareados.

A Ajudante era um múltiplo de ego ideal e seu papel, desde a infância, foi guiar Nancy e outros múltiplos por momentos difíceis - para "ajudá-la". A Ajudante também auxiliou o analista ao facilitar o entendimento das complexas circunstâncias da história da paciente ao longo de sua tenra infância e ao fornecer perspectivas atualizadas sobre as relações entre os diversos múltiplos. Múltiplos de ego ideal normalmente servem a tais funções e o fazem de maneira calma, ponderada e emocionalmente distante. Às vezes, acontece - como com A Ajudante - de um múltiplo de ego ideal originar-se na infância, desenvolver-se progressivamente e amadurecer até a vida adulta do paciente.

 

Discussão

Ilustramos as características mais comuns das personalidades múltiplas derivadas de diferentes estruturas dinâmicas. Os múltiplos dissociados de ego ideal, libidinal e antilibidinal podem emergir em diferentes períodos da vida e preencher diferentes funções. Múltiplos de ego ideal são tipicamente pensativos, úteis, emocionalmente distantes e podem atuar como "guardiões" para a constelação de personalidades alternativas às quais eles estão associados. Múltiplos de ego libidinal apresentam dinâmicas relacionais de carência, idealização, esperança e agitação, bem como expressões explícitas de excitação sexual e expectativa de resposta sexual do analista como um objeto libidinal relacionado. Múltiplos de ego antilibidinal apresentam dinâmicas relacionais que incluem fúria assassina, vingança, ira, inveja maligna e profunda desconfiança, bem como vulnerabilidade, desamparo, desesperança e desespero de ser abandonado em um mundo sem propósitos. Múltiplos de objeto ideal são tipicamente ineficazes. Múltiplos de objeto libidinal apresentam-se tão sedutores quanto atraentes e, normalmente, não têm nenhuma consideração pelo bem-estar de qualquer outro múltiplo. Múltiplos de objeto antilibidinal são agressivos, desdenhosos e controladores, e apresentam profunda resistência ao processo de crescimento psíquico e integração.

Mais adiante, mostramos que as personalidades múltiplas podem tomar controle tanto parcial quanto total da consciência, e notamos a influência das dinâmicas múltiplas pré-conscientes, ideais, libidinais e antilibidinais na experiência consciente afetiva, cognitiva e comportamental. Oferecemos exemplos de algumas das dinâmicas relacionais típicas que ocorrem entre múltiplos derivados das estruturas dinâmicas ideal, libidinal e antilibidinal. Também demos exemplos de algumas das típicas transferências que emergem durante o curso da análise, e destacamos algumas resistências que derivam da manutenção de laços com objetos maus e do desejo de preservar o mundo interno como um sistema fechado. Finalmente, fizemos algumas indicações sobre o processo de análise nestes casos e sobre a necessidade de dirigir-se diretamente às personalidades múltiplas, respeitosa e analitica-mente, antes de uma interpretação especificamente voltada a facilitar a integração.

Conforme revisamos nosso material clínico, tornou-se evidente que é possível alocar as várias personalidades múltiplas em estruturas dinâmicas específicas, ideal, libidinal e antilibidinal no modelo de Fairbairn, de forma que "agrupamentos" (clusters) de tais personalidades múltiplas poderiam ser facilmente identificados. Estamos sugerindo aqui que estes agrupamentos de personalidades alternativas operam como "constelações estruturais funcionais" para prover o equivalente a estruturas endopsíquicas alternativas para a pessoa em questão. Estas constelações conseguem tanto preservar quanto obscurecer as relações de objeto traumáticas que deram origem a elas.

Como ilustramos por meio de nosso material clínico, estas estruturas endopsíquicas alternativas envolvem caracteristicamente um componente ideal, um libidinal e um antilibidinal. Há, entretanto, outros padrões comuns que têm importância: (a) a geração de personalidades alternativas libidinais e antilibidinais, pareadas e de idade específica; (b) a geração de múltiplos com idades diferentes, cada um agindo e tendo uma perspectiva adequada a sua idade, de maneira que um múltiplo jovem nada saberá sobre o mais velho; (c) a exter-nalização de poderes e habilidades específicos em um múltiplo; e (d) o desenvolvimento de múltiplos de ideal que conhecem agrupamentos particulares de selves alternativos, mas nada sabem de outros múltiplos ideais ou seus múltiplos libidinais e/ou antilibidinais associados. Significativamente há também alguns exemplos de múltiplos dissociados individuais relacionados às estruturas dinâmicas do ideal, libidinal e antilibidinal. Isto sugere um espectro de múltiplos dissociados, partindo de exemplos individuais relacionados a estruturas dinâmicas específicas, passando por vários múltiplos dissociados relacionados à mesma estrutura dinâmica, até a réplica parcial ou completa de uma estrutura endopsíquica que engloba uma constelação de diferentes estruturas dinâmicas, produzindo um "agrupamento" de personalidades - tais agrupamentos sendo os mais comumente encontrados.

Fairbairn pensou na dissociação como uma defesa "dirigida contra um conteúdo mental determinado basicamente por eventos que acontecem com o indivíduo" (Fairbairn, 1929a/1994, p. 77, itálico do autor). Com isto em mente, notamos a dissociação traumática radical das personalidades múltiplas - engendrada pela divisão das estruturas dinâmicas - e as resistências resultantes para que se tornem conhecidas. Repressão, para Fairbairn, envolve a ação de uma estrutura dinâmica sobre outra estrutura dinâmica - por exemplo, a repressão direta, pelos egos central e ideal, dos ego-objetos libidinal e antilibidinal e a repressão indireta do ego libidinal pelo ego-objeto antilibidinal. Que a Nan Boa - um múltiplo de ego libidinal - nada soubesse sobre a Nan Má - um múltiplo de ego antilibidinal -, enquanto esta conhecia e odiava intensamente aquela, consiste em um exemplo de repressão indireta.

Na discussão do tratamento de adultos vítimas de abuso sexual infantil, Davies e Frawley (1992a, 1992b) distanciam-se explicitamente da visão de Fairbairn a respeito dos processos envolvidos em gerar a estrutura endopsíquica original, em que estruturas dinâmicas são cindidas e então reprimidas: "Ao contrário de Fairbairn, nós não acreditamos que o(s) estado(s) do ego dissociado é (são) reprimido(s); preferivelmente, nós estipulamos que a repressão nunca ocorre e que os estados do ego coexistem, cada um com sua própria consciência" (1992b, p. 80, itálico nosso). Eles argumentam que, em circunstâncias de abuso sexual infantil, há uma cisão vertical defensiva do ego, que serve igualmente para defender de afetos esmagadores e proteger contra o conhecimento. Um dos estados do ego coexistentes conhece e reage afetivamente ao trauma enquanto o outro estado do ego, ainda que empobrecido, é ignorante sobre o trauma. Davies e Frawley diferenciam-se de Fairbairn ao verem a dissociação como

... uma cisão vertical do ego que resulta em dois ou mais estados do ego que são mais ou menos organizados e funcionam independentemente ... [e que] Estes estados do ego alternam-se na consciência, e sob diferentes circunstâncias, internas e externas, surgem para pensar, comportar-se, lembrar e sentir (1992b, p. 80).

Em consequência dessa cisão vertical, o self da criança abusada - que existe no "contexto das relações de objeto perpetuamente abusivas" - e o aspecto relacionado do objeto são "literalmente expulsos do funcionamento mais integrado da personalidade do paciente e permitidos a estabelecer uma existência independente para que possam buscar suas necessidades distintas" (1992a, p. 21). Sob estas circunstâncias, o self dissociado não é reprimido, mas coexiste com sua própria consciência. Esta dissociação extrema, que eles propõem, é uma maneira de "controle de danos", que "existe para obliterar e preservar" (1992b, p. 82). Dissociação, portanto, é "um processo que preserva e protege, de forma dissociada, todo o mundo interno da criança abusada" (1992a, p. 8, itálico nosso).

À luz do material clínico, mostramos que esta reafirmação das funções da dissociação para vítimas de abuso sexual infantil é convincente. Alguns aspectos do material clínico que apresentamos podem certamente ser entendidos dentro da perspectiva da "cisão vertical" -por exemplo, as mudanças súbitas que ocorreram entre a Nan Boa e a Nan Má. No entanto, nós também pensamos que há uma cisão vertical dissociativa mais abrangente entre "constelações estruturais funcionais" ou estruturas endopsíquicas ("todo o mundo interno") em muitos dos pacientes diagnosticados com personalidade múltipla. Acreditamos ainda que há evidência clínica clara da repressão - um ponto ao qual retornaremos abaixo.

Grotstein descreveu a teoria da estrutura endopsíquica de Fairbairn como "a insuperável metapsicologia do abuso infantil e da personalidade múltipla" (1991, p. 140) e "o paradigma mais apropriado já proferido para o abuso infantil, molestamento infantil, transtorno de estresse pós-traumático e transtorno de personalidade múltipla" (Grotstein, 1994b, p. 123). Ele ressaltou a autonomia das estruturas endopsíquicas - "cada estrutura tem sua própria autonomia, procedência, inocência, vontade (intencionalidade), raciocínio (raison d'etre), direito inato, bênção, ou maldição ... [e] singularidade" (1994a, p. 183) - e discutiu "a dialética das relações endopsíquicas". Em um artigo psicanalítico com vítimas de abuso sexual infantil, ele observou que "estes pacientes sentem-se descontínuos; cada um destes selves aparentemente desconectados vive autônoma e independentemente e pode nem saber da existência dos demais; ainda assim parecem ter alguma relação inconsciente entre si" (1992, p. 71). Embora ele não apresente material clínico de um caso de personalidade múltipla, Grotstein reconhece explícitamente que "em casos de extrema dissociação como os que ocorrem no transtorno de personalidade múltipla, as subpersonalidades podem ser independentes" (1994a, p. 182).

Apreciamos grandemente a abordagem fairbairniana de Grotstein e, ao mesmo tempo, pensamos ser insuficiente para explicar de modo pleno a dissociação traumática radical das personalidades alternativas que vimos. Apresentamos a dissociação traumática das estruturas endopsíquicas ("todo o mundo interno") e, com base em nosso material clínico, sugerimos que tais estruturas endopsíquicas dissociadas/cindidas podem também ser reprimidas por longos períodos de tempo antes de a repressão ser retirada e de a estrutura endopsíquica e suas personalidades afins, novamente conscientes, funcionarem de uma forma indicada pelo conceito de cisão vertical. Assim foi no caso de Evelyn, no qual as três constelações de personalidades alternativas - criança, adolescente e jovem adulta - emergiram à consciência em sequência e, então, apresentaram-se clinicamente em estados caracterizados pela cisão vertical.

Finalmente, em relação à terapia, Davies e Frawley comentam:

Nós acreditamos que ao fazer contato com a cisão, a persona dissociada da criança dentro do adulto abusado, nós libertamos aqueles objetos arcaicos para que trabalhem o seu caminho nos paradigmas da transferência-contratransferência através de mecanismos projetivos-introjetivos e, ao fazê-lo, permitimos aos pacientes que elaborem cada configuração possível dentro da relação terapêutica (1992a, p. 8).

Grotstein (1992) oferece uma descrição paralela do processo terapêutico no qual "subselves discretos" entram na consciência na neurose de transferência, são aceitos e depois passam para a "integração em um self unificado" (p. 72). Ele sugere que uma "depressão de abandono" sucede à liberação dos laços com "objetos persecutórios" (p. 72) - como ilustramos no caso de Marilyn, que vivenciou tamanha solidão dolorosa diante do silenciamento das sempre críticas vozes de Anne e de Edna. Estes são processos que tentamos exemplificar mediante nosso material clínico.

 

Conclusão

Originalmente, ambos fomos surpreendidos ao descobrir que Fairbairn havia dito que sua teoria era "obviamente adaptada para explicar essas manifestações extremas como as encontradas em casos de personalidade múltipla". Isso nos levou a começar a rever o papel da personalidade múltipla no desenvolvimento da teoria de Fairbairn e pensar sobre a aplicação de sua teoria ao material clínico de casos de mpd (Transtorno de Personalidade Múltipla) / did (Transtorno de Identidade Dissociativa). A interpretação recente de Clarke acerca de Fairbairn forneceu uma compreensão adicional ao complexo material clínico. Assim que começamos a formular o material neste contexto teórico, reconsideramos aspectos da teoria evocados pelos dados clínicos. Primeiramente, chegamos a ideias de cisão de estruturas dinâmicas individuais; em seguida, à cisão das subestruturas de ego-objeto; e, depois, à cisão e duplicação da própria estrutura endopsíquica - todas, novas ideias geradas para responder ao material clínico. Estas novas ideias, porém, são consistentes com o desenvolvimento posterior da própria compreensão de Fairbairn do processo original de cisão, em que um objeto é internalizado e depois dividido em um objeto bom (ideal) e dois objetos maus (libidinal e antilibidinal). Nosso envolvimento tanto no material clínico quanto com a teoria psicanalítica de Fairbairn tem avançado a nossa compreensão em ambas as áreas. Esperamos que nossa ilustração acerca da aplicação clínica do pensamento de Fairbairn sobre a personalidade múltipla tenha indicado a utilidade dessa abordagem para desenvolver um entendimento estrutural e dinâmico do transtorno e que tenha acrescentado algo proveitoso ao seu tratamento.

 

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Correspondência:
Paul Finnegan
554 Spadina Avenue
Toronto, Ontario, Canada, M5S 2J9
pfinnegan@sympatico.ca

Graham Clarke
47 Lord Holland Road
Colchester, Essex, UK, CO2 7PS
graham@essex.ac.uk

Recebido em 15.2.2013
Aceito em 19.3.2013

 

 

* Eugênio Canesin Dal Molin, Júlia Catani, Davi Berciano Flores, Isabella S. Borghesi
1 Este texto será publicado no livro Fairbairn and the object relations tradition, editado por David Scharff e Graham Clarke (volume 2 da série Lines of Development, editada por Joan Raphael-Leff e Norka Malberg), Karnac, 2013.
2 O Transtorno de Personalidade Múltipla, tal como é nomeado neste artigo, existiu como nomenclatura apenas na terceira edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) e em sua revisão subsequente. Anteriormente, no DSM-II, este diagnóstico pertencia à classe de Neurose Histérica de tipo dissociativo. Com a publicação do DSM-IV e DSM-IV-R (em vigor até o momento), o Transtorno de Personalidade Múltipla passa a pertencer ao diagnóstico de Transtorno Dissociativo de Identidade.
3 NT: seguindo indicação de Luís Cláudio Figueiredo, a tradução de phantasy por "phantasia" dá mais visibilidade a uma importante diferença conceitual: "fantasia" pode ser ilusão, devaneio; já "phantasia" (de Phantasie, em alemão, ou phantasy, em inglês) "diz respeito à imaginação como atividade psíquica essencial, sendo a própria realidade psíquica" (Figueiredo, 2009, p. 26, nota 6).
4 NT: o uso de "jovens adultos" se deve ao fato de, no caso em questão, uma das personalidades ser do gênero masculino (cf. Finnegan & Clarke, 2012).

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