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Revista Brasileira de Psicanálise

versión impresa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.47 no.2 São Paulo abr./jun. 2013

 

RESENHAS

 

Estruturação psíquica e subjetivação da criança em idade escolar: o trabalho da latência

 

 

Audrey Setton Lopes de Souza

Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP, professora doutora do Instituto de Psicologia da Universidade São Paulo IPUSP, autora do livro Pensando a inibição intelectual (1995) e co-organizadora e autora do livro Psicanálise com crianças: perspectivas teórico-clínicas (Gueller & Souza, 2008)

Correspondência

 

 

Autor: Rodolfo Urribarri
Editora: Escuta, São Paulo, 2012, 286p.
Resenhado por: Audrey Setton Lopes de Souza

O estudo do desenvolvimento da sexualidade revolucionou a concepção sobre a infância e permitiu uma melhor compreensão sobre o mecanismo de formação de sintomas. A partir desta concepção, foi possível compreender os modos como os adultos se organizam a fim de dar conta da tarefa de, por um lado, satisfazer seus desejos e, por outro, encontrar formas de desviá-los ou controlá-los como meio de sair do âmbito exclusivo da vida familiar e incluir-se na vida social, permitindo também utilizar criativamente seus recursos no desenvolvimento da civilização.

Muito aprendemos sobre o complexo de Édipo, a adolescência e as aquisições da primeira infância; no entanto, pouca atenção tem sido dedicada ao período denominado período de latência. Um tempo de reordenamento psíquico, que promove grandes mudanças psicológicas e sociais, em um movimento que exige um intenso trabalho interno, necessário para a abertura a novas identificações e novos desenvolvimentos intelectuais.

Referindo-se ao desenvolvimento da sexualidade, Freud (1905/1980) destaca que o desenvolvimento sexual ocorre em duas fases, interrompidas pelo período de latência, dando a esta uma atenção especial como uma das condições necessárias para a aptidão dos homens tanto para desenvolver uma civilização superior, mas também para sua tendência à neurose.

Durante este período, a produção de excitação sexual não é de forma alguma interrompida, pois continua e produz uma reserva de energia que se utiliza em grande parte para finalidades não sexuais - ou seja, por um lado, contribuir com os componentes sexuais para os sentimentos sociais e, por outro (através da repressão e da formação reativa), construir as barreiras subsequentemente desenvolvidas contra a sexualidade (p. 239).

A questão "O que é latente no latente?" é formulada em interessante artigo do casal Sandler e Ligia Mattos, para a qual respondem: "O que é latente no latente é a turbulência emocional" (Sandler, Mattos & Sandler, 2000), uma forma de se preparar em silêncio, por meio de um incremento do elemento racional e da ênfase na realidade objetiva. A repressão da sexualidade estaria a serviço do enquadramento do indivíduo na psicologia do grupo. Um período importante para a criança sair do pequeno grupo da família e tornar-se membro da espécie. Eles destacam que, no latente, a elaboração psíquica pode estar camuflada, acontecendo à surdina, sem maiores evidências; perspectiva que aponta o modo de operar do latente: na surdina. Assim, ao invés de pensá-los pelo que eles parecem não ter (imaginação, insight), devemos considerar algo que se opera poderosamente no silêncio.

O trabalho de Urribarri se debruça cuidadosamente sobre este período do desenvolvimento, permitindo ao leitor uma compreensão aprofundada, marcando a importância das aquisições adquiridas neste período que, longe de ser uma parada no desenvolvimento, é um momento que exige um grande trabalho psíquico, que levará a um reordenamento da personalidade e a uma abertura para o mundo.

Para o autor, apesar de a latência instalar-se a partir do sepultamento do complexo de Édipo, seria extremamente empobrecedor e reducionista caracterizá-la apenas desta forma. Ele a considera como um momento-chave para a organização psíquica e o desenvolvimento emocional, e por isto devemos compreendê-la para além do seu encobrimento manifesto, pois "a fase de latência se caracteriza mais pela estreiteza do ângulo de visão do psicanalista do que pela pobreza da fantasmatização da criança" (Diatkine apud Urribarri, 2012, p. 290).

Se para o observador externo o latente parece empobrecido quando comparado à riqueza imaginativa e à espontaneidade da criança pequena, perceber o que se opera internamente neste período dará a dimensão da revolução e crescimento que ocorre no silêncio da latência.

Esta é a posição de Urribarri, para quem a latência tem sido mais definida pela negativa -o que deixa de ocorrer - que pelo positivo. Assim, em seu trabalho, destacará o que surge e o que se complexifica neste período, marcado por mudanças na organização e funcionamento do aparelho psíquico e por novas formas de conduta e de relações sociais. Tal perspectiva o leva a caracterizar este período como "o trabalho da latência"

Junto com o que se destrói ou coarta está o que se constrói e possibilita; junto ao que obriga à renúncia, o que oferece e constrói novos prazeres e destinos; ao que se aliena e se priva se contrapõe o que se domina e o que se torna autônomo, que se expressa em atividades, aprendizagens, expansões, relações, complexi-ficações diversas etc, tanto no intra como no intersubjetivo (p. 94).

Seu texto se inicia com uma extensa pesquisa bibliográfica (resenha histórico-crítica da bibliografia sobre a latência), percorrendo as concepções freudianas e de várias correntes psi-canalíticas, debruçando-se cuidadosamente sobre estas contribuições. Estas valiosas referências fundamentam o pensamento do autor e instrumentalizam aqueles que se interessam pelo tema.

Mas a maior riqueza do livro, a meu ver, está em suas contribuições àqueles que trabalham na clínica com pacientes latentes, que são apresentadas nos capítulos subsequentes. São exploradas por Urribarri as muitas conquistas decorrentes deste trabalho da latência, tanto no campo intrassubjetivo como no intersubjetivo.

No campo do intrassubjetivo, o aparelho psíquico se amplia e se complexifica. Diz Urribari:

Se puder se consolidar uma relação intersistêmica fluída, que possibilite a descarga por via da sublimação (e a ocorrência de outros mecanismos), e não centrada na formação reativa e na repressão (que constrin-ge, enrijece e empobrece pelo desgaste da contracatexia), se produzirá a ampliação e fortalecimento do ego, particularmente na diversificação de canais de expressão e descarga, ligações relacionais e institucionais, ampliação do pensamento e da linguagem, e fundamentalmente na articulação e funcionalidade do pré-consciente. Quanto menos embasada se encontra a organização prévia, menos recursos o jovem terá para enfrentar o embate puberal. Em casos extremos, gerará desorganizações diversas, predominando nos meninos as atuações violentas e antissociais, ou a psicose puberal, e nas meninas a frenética entrega à prática genital, ou os transtornos alimentares como anorexia nervosa (p. 141).

O trabalho da latência é comparado à elaboração psíquica e ao trabalho do sonho e do luto, valorizando sua vertente criativa. Trata-se de um trabalho que possibilita uma elaboração dos desejos e proibições, um redirecionamento e criação de novas vias de descarga. Para tal, implica em uma possibilidade de renúncia edípica e em um redirecionamento do pulsional, que "geram profundas e transcendentes modificações, a ponto de que o aparelho psíquico que se gesta é radicalmente diferente do anterior, não só como corolário do edípico, mas também pelo trabalho sutil e amplo nos diversos níveis metapsicológicos" (p. 186).

Urribarri nos oferece, em seu livro, um estudo de como podemos observar as mudanças na expressão gráfica, na linguagem, na atividade motora e no jogo, que refletem o processamento psíquico da latência. O texto é recheado com exemplos clínicos que ilustram estes movimentos, assim como as semelhanças e diferenças entre estas modalidades de expressão nos meninos e nas meninas.

Ele nos mostra como com o deslocamento do interesse pelo corpo para um interesse pelos objetos e seus mecanismos, para os fenômenos naturais e suas leis, propicia-se um amplo desenvolvimento intelectual e do pensamento na medida em que o ego se fortalece, tornando-se mais capaz dos deslocamentos que permitem as sublimações.

No que se refere ao jogo, este se torna a principal via de descarga, evitando a masturbação e agressividade excessivas, e apesar de perder a clara simbologia conflitiva, é "colorido por um marcado e aumentado interesse pela realidade, suas alternativas, dificuldades e possibilidades de inserção em termos racionais" (p. 133). Os desenhos se tornam mais complexos e elaborados, revelando maior discriminação entre fantasia e realidade. Em termos de linguagem, o predomínio da ação é substituído pela verbalização como forma de resposta.

Remeto os leitores a uma exploração destes aspectos no texto de Urribarri, no qual podemos acompanhar pormenorizadamente o desenvolvimento destas conquistas.

No campo da intersubjetividade, a possibilidade do enfrentamento edípico abre o caminho para as relações exogâmicas, fora do universo familiar. Neste caminho exogâmico, o autor enfatiza a importância da inserção social na escola e no grupo de pares na promoção de novas identificações, normas e ideais, propiciando, neste encontro com outros olhares e discursos, o enriquecimento das vivências do latente.

O processo de deslocamento e inserção no ambiente social implica a separação gradual dos pais (o que serve aos fins de defesa diante dos desejos edípicos e da ansiedade de castração). A conexão com outros adultos e pares transforma-se, progressivamente, em novas influências intelectuais, educacionais, sociais e axiológicas que diferem (ao menos parcialmente) das aprendidas no seio familiar (p. 188).

Urribarri ainda nos oferece um capítulo sobre as psicopatologias que aparecem neste período, acrescido de exemplos clínicos elucidativos.

Trata-se de um raro trabalho de aprofundamento sobre a estruturação psíquica e o processo de subjetivação da criança em idade escolar e demonstra a magnitude do trabalho psíquico que está presente no período da latência, que "longe de ser um período insignificante e tranquilo de recesso e passagem, sem novidades, é um momento-chave na organização psíquica, extraordinariamente ativo e rico" (p. 275).

 

Referências

Freud, S. (1980). Três ensaios para uma teoria sexual. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad.). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1905).         [ Links ]

Gueller, A. S. & Souza, A. S. L. (Orgs.). (2008). Psicanálise com crianças: perspectivas teórico-clínicas. (2a ed.). São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Sandler, E. H., Mattos, L. T. L. & Sandler, P. C. (2000). Latência? Psychê, 4(6),53-73.         [ Links ]

Souza, A. S. L. (1995). Pensando a inibição intelectual: perspectiva psicanalítica e proposta diagnóstica. (2a ed.). São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Audrey Setton Lopes de Souza
Rua Fradique Coutinho, 1945
05416-012 Vila Madalena, São Paulo, SP
Tel.: (11) 3813-2131
asetton@uol.com.br

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