SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.47 issue3Between London and Paris, 1945-1975: the formation of contemporary psychoanalysisPsychoanalytic practice and enigmatic message author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.47 no.3 São Paulo July/Sept. 2013

 

ARTIGOS TEMÁTICOS: LEGADOS

 

O primado do outro no campo da psicanálise: um diálogo com Laplanche

 

The primacy of the other in the field of psychoanalysis: a dialogue with Laplanche

 

La primacía del otro en el campo del psicoanálisis: un diálogo con Laplanche

 

 

Mônica do Amaral

Professora livre-docente da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP) e membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)

Correspondência

 

 


RESUMO

Este ensaio procurou apresentar as ideias de Jean Laplanche de maneira viva, destacando o modo como o autor as articulou com a formação dada aos alunos de pós-graduação em psicanálise (Université Paris VII), bem como o diálogo estabelecido com analistas do mundo inteiro em congressos e conferências internacionais. A ênfase foi dada à ideia princeps de primado do outro na constituição do psiquismo e da sexualidade inconsciente. É a presença do outro em nós, do estranho/familiar salientado por Freud, que é retomada por Laplanche para repensar não apenas os fundamentos da psicanálise, mas os fundamentos da razão ocidental. O papel da alteridade na constituição do psíquico abre uma importante discussão a respeito da dimensão cultural que nos constitui - discussão essencial para se repensar as bases de uma psicanálise brasileira.

Palavras-chave: Laplanche; primado do outro; estranho/familiar e cultura; novos fundamentos da psicanálise.


ABSTRACT

This essay sought to present the ideas of Jean Laplanche in a lively manner, with emphasis on the way the author articulated them with the education given to the Psychoanalysis post-graduate students (Université Paris VII), as well as on the dialogue established with analysts worldwide during international congresses and conferences. The emphasis was given to the princeps idea of primacy of the other in the constitution of psychism and of unconscious sexuality. It is the presence of the other within us, of the strange/familiar underlined by Freud, which is resumed by Laplanche in order to rethink not only the foundations of psychoanalysis but the foundations of Western thought. The role of otherness in the constitution of the psychical opens an important discussion about the cultural dimension which constitutes us, central for rethinking the bases of a Brazilian psychoanalysis.

Keywords: Laplanche; primacy of the other; strange/familiar and culture; new foundations of psychoanalysis.


RESUMEN

Este artículo tuvo como objetivo presentar las ideas de Jean Laplanche de una manera viva, destacando el modo en el que el autor las articuló con la formación dada a los alumnos de postgrado en psicoanálisis (Université Paris VII), así como el diálogo establecido con analistas de todo el mundo en congresos y conferencias internacionales. Se enfatizó en la idea prínceps de la primacía del otro en la constitución del psiquismo y de la sexualidad inconsciente. Es la presencia del otro en nosotros, de lo extraño/familiar subrayado por Freud, lo que retoma Laplanche para replantearse no solo los fundamentos del psicoanálisis sino los fundamentos de la razón occidental. El papel de la alteridad en la constitución del psíquico abre una importante discusión sobre la dimensión cultural que nos constituye – discusión fundamental para replantearse las bases de un psicoanálisis brasileño.

Palabras clave: Laplanche; primacía del otro; extraño/familiar y cultura; nuevos fundamentos del psicoanálisis.


 

 

Uma conversa preliminar

Conheci Jean Laplanche em 1992, nos corredores da universidade (Université Paris VII), espaço privilegiado para os estudantes de todo o mundo se encontrarem e debaterem suas ideias com psicanalistas, muitos deles importantes para a nossa formação aqui no Brasil, como Pierre Fédida, Maurice Dayan, Sophie de Mijolla-Mellor, Lanouzière e Jacques André. Fui apresentada ao professor Laplanche por um amigo e colega no curso de Epistemologia da Psicanálise1, da Unicamp, Luiz Carlos Tarelho, que havia decidido fazer seu doutorado na França. Eu iniciara meu doutorado na USP, sob orientação da professora Iray Carone, estudiosa da teoria crítica, encontrando-me interessada em um diálogo aprofundado entre a psicanálise e as teses de Theodor Adorno sobre o narcisismo na modernidade.

Se de início apresentei, em seminário de tese, minhas ideias sobre o narcisismo de maneira tímida, receosa de que não fosse bem aceito pelo Professor Laplanche o diálogo que eu propunha entre a teoria crítica e os estudos sobre a teoria freudiana no campo

epistemológico, fui desde o primeiro momento estimulada por ele a enfrentar abertamente a discussão entre Adorno e Freud, mediada por suas proposições críticas. Desse modo, tive a oportunidade de percorrer os textos freudianos, assim como os de Adorno2, guiada por suas aulas/conferências semanais e seminários de tese em que tivemos a oportunidade de debater Stendhal, Althusser, Rimbaud, Holderlin, dentre outros escritores, mas também temas como o que eu trazia - o narcisismo na modernidade - ou aqueles que tocavam o limiar da teoria e da clínica, envolvendo, por exemplo, a paranoia, a melancolia e os estados-limite.

Após um ano de curso, apresentei-lhe um ensaio metapsicológico sobre o narcisismo e o masoquismo originários das massas fascistas, conceitos fundamentais para pensar minha tese, a qual foi se delineando cada vez mais claramente com o desencadeamento da guerra fratricida entre os povos da ex-Iugoslávia, nos anos de 1992 e 1993 - ou seja, a tese de que a economia libidinal das massas fascistas permanecia nos subterrâneos das tendências narcísicas de constituição da subjetividade contemporânea, e que poderia irromper com a mesma virulência primitiva em momentos de maior instabilidade social. Daí ter anunciado em meu livro3 a ideia de que os espectros totalitários não haviam se extinguido com o fim da II Guerra Mundial. Uma prova disto era que o século XX terminava onde havia se iniciado - em Sarajevo.

Demonstrando concordância com o encaminhamento de minhas reflexões, Laplanche me estimulou a debruçar-me sobre a história do Brasil para compreender como essa tese poderia ser pensada a propósito dos fenômenos de massa em nosso país. De volta ao Brasil, assim que concluí meu doutorado, empreendi estudos e pesquisas sobre o período entreguerras, abrangendo a Revolução de 1930 e o Estado Novo4. Um estudo que encontrou apoio e estímulo entre os historiadores, mas muito pouco entre os psicanalistas. Estes, em sua maioria - a não ser alguns autores como Renato Mezan, Joel Birman e Jurandir Freire -, pouco se interessavam em pensar fenômenos da cultura com o suporte da teoria psicanalítica.

Mas o contato com as leituras de Laplanche e Jacques André, cujas reflexões remetiam invariavelmente ao primado do outro na constituição do psiquismo - o outro estrangeiro, seja o outro encarnado como pessoa, seja como indício do originário, o outro de si -, encaminhou-me a desenvolver um percurso teórico e clínico em que estiveram presentes e articuladas as dimensões histórico-culturais e a dinâmica psíquica, para as quais contribuíram sobremaneira as supervisões com Isaías Melsohn e Márcio Giovanetti. A análise e o convívio com Fábio Herrmann me levaram a experienciar de modo aprofundado a ideia sustentada por Laplanche na clínica, em sua inseparabilidade da teoria - de que o campo transferencial é o locus em que o método psicanalítico deve atuar de maneira a reabrir o enigma do paciente e do próprio analista, e assim propiciar que surja a teoria na medida do paciente5, tendo a metapsicologia freudiana como horizonte.

Depois de iniciada minha formação na SBPSP, tive a oportunidade de ir ao Congresso Internacional de Psicanálise6 em Nice, em que presenciei um debate de Laplanche com mais de 500 analistas de todo o mundo, das mais distintas abordagens, propondo-lhes questões clínicas e teóricas que foram discutidas por ele durante cerca de três horas. Foi uma das experiências das mais marcantes de minha formação vê-lo pôr em marcha o raciocínio clínico a partir dos novos fundamentos que construíra ao longo de suas obras, confrontando/dialogando Freud com Freud, e fazendo-o avançar em direção à ideia princeps defendida por ele - a do primado do outro na constituição do psiquismo.

Tomando em consideração este contato com um psicanalista tão rigoroso e, ao mesmo tempo, aberto ao diálogo, pretendo, neste artigo, justamente apresentar como o autor entende esse primado, além de tentar demonstrar quão profícuo pode ser repensar os fundamentos da teoria freudiana a partir da experiência clínica, com o apoio de suas reflexões.

 

Os fundamentos da psicanálise, segundo Laplanche

Laplanche ficou conhecido internacionalmente, e também no Brasil, pelo Vocabulário da psicanálise (1967/1985), que produziu com Pontalis - o primeiro dicionário de psicanálise que trazia um trabalho histórico-conceitual de diversos temas e conceitos criados pela psicanálise freudiana. Outro legado de suma importância foi a coordenação da tradução das Obras completas de Freud na França, desde 1988, que até então haviam sido traduzidas de modo esparso - e não em sua totalidade - por editoras como Gallimard, Payot e PUF.

Depois, com a publicação, nos anos 80, das Problemáticas - de I a V (1980a, 1980b, 1980c, 1981, 1987) -, em que Laplanche realiza um trabalho minucioso de revisão dos fundamentos da teoria freudiana, atendo-se a alguns temas como angústia, castração/simbolização, sublimação, o inconsciente e o Id, e outro sobre a questão da transferência - para os quais procurou dar um acabamento em Novos fundamentos para a psicanálise (1987/1992d) -, o autor parecia completar seu projeto de revisão dos fundamentos da teoria freudiana. Neste último livro, retomou a discussão de alguns desses conceitos, procurando alinhavá-los segundo o eixo central de suas reflexões, ou seja, a teoria da sedução generalizada - tema, aliás, cujos principais ângulos foram muito bem explorados pelo psicanalista Luiz Tarelho (2012). Laplanche lançou, ainda, anos depois, o livro O primado do outro em psicanálise (1992/1997), que foi publicado inicialmente com o título A revolução copernicana inacabada (1992b), sobre o qual pretendo me estender.

Gostaria de salientar, nesse sentido, a ideia do primado do outro para a constituição do psíquico, não apenas percorrendo este último livro, que reúne artigos de 1967 a 1992, mas detendo-me em alguns conceitos fundantes do psíquico, a respeito dos quais me debrucei em minha tese de doutorado, abordando o narcisismo, o masoquismo e o feminino, ao mesmo tempo em que procurava suscitar questões acerca dos fundamentos da psicanálise e do próprio psiquismo apoiando-me nas leituras críticas de Laplanche.

 

A propósito de O primado do outro em psicanálise

Os artigos reunidos nesta obra (1992/1997), sobre os mais diferentes assuntos, apresentam, como sustenta o autor, um movimento em espiral, uma vez que abordam de modo cíclico alguns pontos problemáticos que os atravessam - pontos que a cada espiral são retomados, depois afastados do eixo e, posteriormente, recuperados sob outro ângulo.

Na apresentação do livro, Laplanche propõe como situar suas contribuições, aproximando-as da experiência do próprio Freud - indissoluvelmente clínica e teórica, ou mesmo filosófica -, não no sentido de apurar os conceitos freudianos, mas como ele costumava dizer, fazendo trabalhar Freud com Freud, e assim lhe "dar alma" - tarefa que, ao retomar os fundamentos da psicanálise, convida a reabrir a "fenda originária", a qual, por sua vez, aponta necessariamente para o "estranhamento do outro".

No capítulo que abre a coletânea, "A revolução copernicana inacabada", o autor recorre à ideia da revolução que as teses de Copérnico teriam provocado no sistema ptolomaico, sugerindo que o mais importante dessa reviravolta teria sido a descoberta de que o Homem não era mais o centro do universo, sequer como sujeito do conhecimento, deixando de ser "o sistema central daquilo que ele conhece" (1992/1997, p. VIII)7.

Não no mesmo sentido abordado por Freud, Laplanche recorre a essas ideias para apontar como há no interior do pensamento do primeiro uma oscilação entre uma posição ptolomaica, dando ênfase ao autocentramento e ao autoengendramento, e uma posição copernicana, heterocentrada - oscilação presente desde as primeiras descobertas sobre o inconsciente, assim como desde a postulação da sedução. Mas é no seio dos desvios e ressurgimentos ptolomaicos, como o proclamado abandono da teoria da sedução na carta de Freud a Fliess, em 1897, que mesmo recusada em seu valor fundante, essa teoria mantém um "desenvolvimento subterrâneo", garantindo a Freud, bem como a seus seguidores contemporâneos, um aprofundamento produtivo. Do mesmo modo teria havido, na perspectiva copernicana, outros desenvolvimentos, como a adoção do conceito de Id (Isso) de Groddeck, levando ao extremo a ideia de que somos "vividos por ele" muito mais do que o experimentamos. Não se pode deixar de mencionar a proximidade das ideias de Nietzsche a esse respeito - ideias que, claramente em colisão com a metafísica ocidental, abriram caminho para a destituição da unidade e do primado da consciência postulados por Freud, o que pode ser observado mais claramente no aforismo 17, de sua obra Além do bem e do mal:

Quanto à superstição dos lógicos, nunca me cansarei de sublinhar um pequeno fato que esses supersticiosos não admitem de bom grado - a saber, que um pensamento vem quando "ele" quer, e não quando "eu" quero; de modo que é um falseamento da realidade efetiva dizer: o sujeito "eu" é a condição do predicado "penso". Isso pensa: mas que este "isso" seja precisamente o velho e decantado "eu" é, dito de maneira suave, apenas uma suposição, uma afirmação, e certamente não uma "certeza imediata". E mesmo com "isso pensa" já se foi longe demais; já o "isso" contém uma interpretação do processo, não é parte do processo mesmo (Nietzsche, 1886/2005, pp. 21-22, itálico meu).

Um pensar que, segundo Nietzsche, envolve interpretação de um ponto de vista alheio ao Eu, o qual, deslocado de si, assinala a presença do outro em nós.

A ideia do Id, tal como sustentada por Freud - muito próxima, aliás, da que fora defendida pelo filósofo alemão, ou seja, o "outro-coisa" em nós -, foi tematizada por Laplanche em artigo escrito em coautoria com Leclaire (1966), a propósito do realismo do inconsciente. Dentre as questões salientadas, a mais importante, a meu ver, é que não se trata de destacar o caráter simbólico do sintoma ou que este seja uma tradução pura e simples do inconsciente, mas que envolve uma solução de compromisso entre as tendências conscientes e inconscientes. Além disso, os autores sustentam não ser possível conceber um inconsciente primordial que não seja oriundo do recalcado. Ou mais especificamente do sexual, que, segundo eles, é determinante para se pensar o sujeito do inconsciente e prioritário em relação a outras necessidades, como de alimentação, de proteção etc. De onde se depreende o primado do sexual, que abre para a questão do outro, o qual, para a criança, remete ao adulto em seu estranhamento (em contraposição ao familiar).

"Corpo estrangeiro interno", "reminiscência" significam, de acordo com Laplanche, "o inconsciente como estrangeiro em mim, e até mesmo colocado em mim como estrangeiro" (1992/1997, p. XVI), ideia que abre caminho para a discussão num artigo posterior sobre sua tese da sedução generalizada.

Ainda acompanhando Freud, Laplanche sublinha o seguinte trecho do artigo "Uma dificuldade da psicanálise" (1916-1917/2003): "O homem se sente soberano em sua própria alma", uma primeira constatação, mas que logo é acompanhada de outra que desmonta a ilusão de soberania - "O Eu não é senhor em sua própria casa". E como observa Laplanche, a palavra "estrangeiro" ocorrerá com frequência para demonstrar quão poderosas parecem ser essas forças estranhas ao ego, que embora surjam na qualidade de impulsos, são por ele denegadas e atribuídas a uma invasão estrangeira. Finalmente, Freud aponta a interpretação psicanalítica para esses fenômenos "estranhamente inquietantes": "Nada de estrangeiro entrou no Eu. É uma parte de sua própria vida psíquica que escapou de seu conhecimento" (1916-1917/2003, p. 134).

Laplanche faz uma observação importante a respeito do debate filosófico que Freud sugere ter com os filósofos de seu tempo. Freud atribuirá a origem de suas ideias a Schopenhauer, sustentando que a vontade inconsciente defendida por este seria equivalente ao conceito psicanalítico de pulsões psíquicas. No entanto, Laplanche observa que a psicanálise trouxe um debate que até então não havia sido enfrentado: a contribuição clínica para pensar as formas de resistência que se lhe antepõem, dificultando o reconhecimento dessas forças inconscientes.

Segundo Giacoia Junior (2005), a unidade sintética do eu passa a ser pensada a partir de Schopenhauer não mais como representação, mas ligada ao universo do querer. A identificação, de acordo com este, entre o querer e o comando da vontade que esperamos executar pela ação nos dá a sensação prazerosa de "triunfo sobre resistências" e, ainda, a ilusão de liberdade da vontade, que nos faz crer que por meio de nossa própria vontade venceríamos a resistência. Essa fusão gera um sentimento de potência na superfície da consciência, dando-nos a impressão de unidade - unidade que Nietzsche e Freud, cada um a seu modo, tratarão de desmontar.

Laplanche argumenta, no entanto, que o tratamento dado por Freud à desmontagem da ideia de primado da consciência e da racionalidade pré-consciente-consciente se faz de uma perspectiva distinta daquela empreendida pela filosofia. Quando Freud sugere que algo escapa à racionalidade, afirma o autor, é preciso distinguir duas coisas: se se está referindo a algo que lhe fora subtraído ou que não se encontrava a ela submetido desde o início, sendo, pois, originário, uma vez que lhe é anterior. E ainda a respeito da denominação de processo primário atribuída ao funcionamento do inconsciente ou mesmo quando da regressão, Laplanche esclarece envolver três aspectos: "o que é menos organizado, de onde parte a excitação e o que foi primeiro no tempo de surgimento" (1992/1997, p. XIX).

Em todo caso, como bem assinala o autor, Freud estava atento ao movimento da própria psicanálise no sentido de negar a dimensão de estranhamento do inconsciente, propondo muitas vezes sua redução, seja no campo teórico, seja na prática analítica. Recordamos, ainda, que a ideia de fantasia retroativa nada tem a ver com lembrança do passado individual, mas com reminiscências cuja característica é vir à tona de modo descontextua-lizado, o que lhes confere um ar de relativa estranheza: "algo que retorna vindo de algures, uma pseudolembrança vinda... do outro" (1992/1997, p. XXII).

Nesse sentido, esclarece que o essencial da revolução copernicana que Freud dará ensejo será não apenas o descentramento da consciência, mas o duplo aspecto nele contido: o "outro-coisa", que só passa a fazer parte do inconsciente, em sua alteridade radical, por intermédio do "outro-pessoa" - portanto, pela via da sedução.

Em seguida faz a pergunta: o que impede que a teoria da sedução sustente sua afirmação do primado do estranhamento externo? Especialmente se pensarmos que esta outra pessoa ocupa o lugar primeiro (fundante) na constituição do eu; uma prioridade, segundo Laplanche, que não é postulada apenas na teoria, mas experimentada na transferência.

Esta ideia de que o outro-pessoa é fundamental para se pensar os fundamentos do psiquismo e a própria transferência parece-me essencial para distinguir Laplanche da vertente lacaniana da psicanálise, que tendeu progressivamente a dissolvê-lo, como afirma Tarelho, "na teorização do grande outro, isto é, nos meandros da linguagem e do simbólico" (2012, p. 99). Sobretudo se considerarmos que a maior contribuição de Freud, no entendimento de Laplanche, foi ter apontado a dimensão de alteridade do inconsciente.

 

O outro sedutor

Para tratar de sua interpretação das teses da sedução, Laplanche discute as próprias ideias de Freud acerca do estado de desamparo em que se encontra o bebê, os cuidados de que este precisa para prover suas necessidades básicas e os traços mnésicos deixados por essa experiência primordial, que se desdobram em dois tipos de signos: ligados ao objeto (uma imagem da comida) e às imagens internas relativas à sequência da alimentação - sequência que desencadeará o circuito do desejo. A grande questão suscitada por Laplanche é de como uma necessidade de alimentação pode fazer emergir o desejo, que é de outra ordem, ou seja, de natureza sexual. Freud, para melhor teorizar sobre a "experiência de satisfação", deveria ter levado em conta o "apoio externo", que ele até admite de início, mas que desaparece das demais considerações, seja no que diz respeito ao objeto, que é reduzido ao alimento, seja a propósito da finalidade, que também se vê reduzida ao processo de digestão (ingestão, digestão).

O que falta então à teorização da experiência de satisfação para que se possa pensar em como se origina o sexual?

O "signo" que faz sinal - ou seja, um signo ou uma mensagem proposta à criança pelo adulto - muito antes de a criança o presumir. Mensagem enigmática de sedução, inconsciente para o adulto. Eis o objeto fonte da pulsão sexual, de acordo com Laplanche, indício de que se pode conceber o sexual intervindo na experiência de satisfação. Não se pode negligenciar o fato de que é a mãe que introduz o seio junto à criança, com toda a conotação sexual da qual é portador. Nesse ponto, Laplanche avança em relação às formulações de Freud, uma vez que este, ao abandonar a teoria da sedução, não percebeu que, para além da sedução real, há uma sedução fundante e generalizada que dá origem ao sexual infantil. Daí a importância da teoria do apoio e de sua introdução em edições posteriores dos Três ensaios sobre a sexualidade (1905/1987), como sustentei em um artigo (Amaral, 1995) em que me debrucei sobre as idas e vindas de Freud entre uma posição mais voltada ao autoengendramento (pto-lomaica) e outra, mais próxima da sustentada por Laplanche, que aponta para o primado do outro (copernicana).

Gostaria de retomar a tese do apoio, tal como defendida por Laplanche, para repensar algumas questões cruciais relacionadas a conceitos-chave, como o complexo de Édipo, o narcisismo, o masoquismo e o feminino.

 

A tese do apoio - de Freud a Laplanche

Sobre os Três ensaios

No artigo referido acima (Amaral, 1995), procurei analisar as indagações de Freud sobre a origem e o destino das pulsões, e quais as incidências das reformulações na teoria freudiana sobre as pulsões e o aparelho psíquico. Com isso, demonstrei que seria possível percorrer praticamente toda a teorização freudiana por meio da análise de uma única obra, considerando as sucessivas edições, nas quais Freud buscou introduzir suas reformulações teóricas.

A primeira edição dos Três ensaios parecia uma das mais interessantes exatamente por ser menos conclusiva, e por isso a considerei como uma obra aberta, em que diferentes teses sobre a pulsão sexual conviviam, o que permitia mais de uma interpretação. Prevalecia, em todo caso, uma concepção do campo sexual essencialmente revolucionária na época - marcadamente perversa e polimórfica.

No entanto, as reformulações introduzidas posteriormente, nas demais edições (1910, 1915, 1920, 1924), foram lhe conferindo uma orientação cada vez mais de natureza endógena e biologizante - ptolomaica, para seguir a terminologia adotada por Laplanche -, fazendo desaparecer as tensões e riqueza da primeira edição. Segundo o autor (1992/1997), essas alterações teriam feito desaparecer o caráter aberrante da sexualidade que aparecia na primeira edição. Portanto, foram acréscimos que introduziram modificações importantes no conjunto da obra, mas que, de acordo com Laplanche, desviaram-se, em grande parte, da riqueza presente na primeira edição.

Não se pode esquecer que, mesmo na primeira edição, a tendência polimórfica da sexualidade perversa, embora fique evidenciada nos dois primeiros ensaios, sofre uma ruptura no terceiro ensaio, uma vez que este dá lugar a uma espécie de teleologia extrínseca a ela mesma, impondo-lhe uma finalidade associada à procriação e não à satisfação, como definiam os dois ensaios iniciais.

Uma questão importante que me surgiu foi: se concebêssemos a sexualidade do ponto de vista endógeno e biologizante, quais seriam as consequências para se pensar a simbolização própria às formações do inconsciente? E ainda: tendo em vista que essa concepção deixa de lado toda relação fantasmática e originária sustentada pela relação de alteridade, como se daria a simbolização constitutiva das manifestações primordiais do sujeito psíquico, ou seja, o autoerotismo e o narcisismo?

Gostaria aqui de me deter nas implicações da concepção do apoio para a definição da sexualidade infantil e do processo real de constituição do psiquismo humano, e em como a tese da sedução generalizada nos auxiliou a proceder a uma leitura mais acurada das teses freudianas da sexualidade.

Freud, na primeira edição dos Três ensaios (1905/1987), no segundo ensaio - em que aborda a sexualidade infantil -, toma como modelo prototípico a sucção do bebê, da qual depreende as três características da sexualidade infantil: "Ela ainda não conhece objeto sexual algum, é autoerótica e seu alvo está sob o domínio de uma zona erógena" (pp. 106-107).

Uma definição em que tudo o que caracteriza a pulsão está presente - o alvo, o objeto e a fonte-zona erógena -, para depois apresentar novas definições que contrariarão cada um desses aspectos: de que ela seja anobjetal, quando na verdade o próprio narcisismo retorna sobre si apoiado na relação especular com o objeto primário-mãe; o autoerotismo não parece ser originário, mas muito mais um segundo movimento após esse investimento libidinal primário; de que a finalidade esteja subsumida a uma zona erógena, que faria brotar a pulsão, sugerindo uma espécie de autoengendramento, sendo que, em seguida, expõe a ideia de apoio entre o campo autoconservativo e o sexual, além de apontar inúmeras outras fontes possíveis que não se restringem ao corpo erógeno.

Quanto ao primeiro aspecto, não se pode esquecer que, nessa mesma edição, no terceiro ensaio, no item "A descoberta do objeto", Freud rompe com esta tendência e fala abertamente de uma primeira relação de objeto, que seria perdida depois de a criança formar a representação da mãe como objeto total. Acrescenta ainda que a relação de objeto seria restabelecida na adolescência e vida adulta, seguindo o protótipo da relação primordial com o seio materno (um reencontro de natureza fantasmática).

Mas qual o problema de se conceber o autoerotismo sem objeto?

Se o autoerotismo não comporta fantasia alguma, não pode haver uma relação de simbolização entre os processos autoconservativo e sexual. Verifica-se apenas uma substituição de objetos de um dos processos pelos de outro. Laplanche esclarece o que estaria em jogo nesta concepção de autoerotismo: "O ato de chupar o dedo substitui o alimento, mas de maneira puramente mecânica e não significante" (1992c, p. 30).

Depreende-se dessas observações qual seja a preocupação do autor: a de que a teoria psicanalítica deve apresentar uma conceituação capaz de dar conta das trocas simbólicas que fundam o psiquismo humano. Nesse sentido, defende Laplanche que a gênese teórica ("teo-ricogênese") deveria reproduzir/acompanhar a ontogênese.

 

Demais edições dos Três ensaios - avanços e retrocessos

Será somente na edição de 1915 que se mencionará claramente o apoio da sexualidade sobre o plano da autoconservação (ac). Uma concepção bem mais rica do que aquela que aparece em "Pulsões e os destinos das pulsões" (1915/1988), texto que apresenta uma concepção paralelista do apoio, sem dar margem a forma alguma de simbolização, uma vez que a AC e a sexualidade funcionam como dois processos paralelos que se tocam apenas no desencadeamento, ao nível da fonte. Já a concepção dos Três ensaios supõe que alvo, objeto e fonte se articulem de maneira mais ágil e mais dinâmica, dando lugar à produção da fantasia, negada pela concepção paralelista do apoio.

Mas, ao lado dessa concepção mais dinâmica do apoio, há uma exposição sobre as fases de organização sexual (oral e anal, sendo que a genital será introduzida somente em 1924), de cunho desenvolvimentista, que em nada se assemelha aos aspectos polimórficos e perversos da edição de 1905. Segundo Laplanche (1992c, 1993), esta noção de estágios bem definidos da sexualidade pressupõe uma evolução pré-formada e integrativa da sexualidade, portadora de uma espécie de finalismo intrínseco a cada um dos estágios, conforme o qual seriam negados tanto os aspectos autoconservativos como a própria especificidade do sexual. De acordo com o seu entendimento, a especificidade do sexual só se afirma quando um campo não sexual é sustentado, ou seja, por contraposição.

Já a quarta edição dos Três ensaios, de 1920, coincide com a publicação de "Para além do princípio do prazer" (1920/2001), em que são formuladas as teses da última teoria das pulsões de Freud - as pulsões de vida e de morte. A sexualidade, que até 1918 traduzia-se pela libido objetal e narcísica, aparece nesse momento diluída no conceito de Eros, que contraditoriamente faz desaparecer o erótico em nome da ideia de ligação. O conceito de Eros, portanto, ao assumir um caráter totalizante, perde sua especificidade propriamente sexual. Por outro lado, como afirma Laplanche em um artigo sobre a pulsão de morte (1992a), este conceito serviu para "reafirmar algo que se perdeu" com a nova conceituação de Eros, ou seja, a sexualidade não ligada no sentido da pulsão.

Outra problemática importante que se coloca é como Freud justapõe algumas hipóteses relativas ao complexo edipiano sem articulá-las, sendo a teoria da sedução generalizada o elo que parece faltar entre os devaneios diurnos na adolescência, o aparecimento das fantasias originárias e o complexo de Édipo (Freud, 1905/1987, pp. 169-170, nota 3 - acrescentada em 1920 ao item "Barreira contra o incesto"). Observe-se que Freud apresenta sob o mesmo termo Phantasie tanto as fantasias relativas aos devaneios diurnos como as fantasias inconscientes originárias, sem distingui-las. O que talvez justifique essa não distinção é o tempo auto (endógeno) de ambas as fantasias, que Freud associa ao autoerotismo presente na masturbação. Em contrapartida, apresenta as fantasias originárias e o complexo de Édipo sem articulação alguma. Só se pode compreender essa falta de conexão porque o autor concebe as primeiras como uma herança filogenética, e o segundo da maneira mais realista possível.

Na mesma linha das hipóteses de Laplanche da teoria da sedução generalizada, sustentei que a articulação que faltava fazer era supor a origem exógena da fantasia infantil a partir do encontro com a fantasia de sedução da mãe. Por outro lado, como sugere Laplanche, que faria parte deste encontro a implantação do imaginário materno na criança (enviando mensagens enigmáticas a serem traduzidas por esta), o que me levou a pensar em fantasias incestuosas precoces. Em todo caso, pressupor o complexo de Édipo seja de modo realista, seja do ponto de vista da fantasia, significa remeter a sexualidade ao outro, o que pareceu impor uma nova quebra na tendência endógena das edições posteriores a 1905.

Com relação à edição de 1924, em comparação com a edição de 1915, gostaria de salientar como a concepção mais ou menos endógena da pulsão acabou interferindo em outras conceituações relativas aos fundamentos do psiquismo, como o masoquismo.

Embora nessas duas edições se possa identificar um tempo auto do masoquismo originário, também é possível notar algumas diferenças.

Na edição de 1915, as reflexões sobre o masoquismo estão apoiadas nas teses de "Pulsões e os destinos das pulsões" (1915/1988), que embora suponha uma determinação endopsíquica da fantasia masoquista, ainda aponta a via reflexa intermediária, por meio da qual explicita o retorno da pulsão sobre si, como mediação para se compreender a conversão da heteroagressividade (sádica) em autoagressão, da qual, por via do apoio, faz derivar o masoquismo reflexo.

É na edição de 1924 que Freud, recorrendo às suas teses sustentadas em outra obra, "O problema econômico do masoquismo" (1924/1992), substitui a noção de apoio pelas ideias de ligação e não ligação, associadas respectivamente às noções de pulsão de vida e de morte. Além disso, enquanto em 1915 ele dava prioridade ao tempo hétero da agressividade, desta vez dá lugar à ideia de autodestruição originária proveniente da pulsão de morte, que tenderia a ser expulsa para o exterior. O masoquismo originário, erógeno, cujo desenvolvimento se faz em direção aos masoquismos feminino e moral, seria o resultado dos restos internos do componente autodestrutivo da pulsão.

Portanto, esta segunda versão do masoquismo originário, entendido como essencial à constituição da sexualidade, ao remetê-lo a um estado "ontológico, absoluto e primeiro", com o auxílio das teses da pulsão de vida e de morte, acaba encerrando a sexualidade e a constituição do psiquismo em uma mônada solipsista. Desse modo, apenas se agudiza uma tendência que já vinha se esboçando ao longo dos Três ensaios, que reflete uma das interpretações possíveis da teorização freudiana das pulsões, combatida por Laplanche exatamente por abstrair o outro na constituição da fantasia.

 

Sobre o narcisismo

Aqui gostaria de retomar um debate sobre os narcisismos primário e secundário8, tomando em consideração as posições de Laplanche, Lacan e Octave Mannoni em relação às ideias apresentadas por Freud em "Introdução ao narcisismo" (1914/1992).

Este artigo foi considerado por Laplanche, desde Vida e morte em psicanálise (1985), como ponto nodal, em que se articularia a tópica e a teoria das pulsões freudianas - um texto cujo objetivo teria sido conferir um tratamento teórico ao que vinha sendo observado na clínica sobre o narcisismo e suas relações com a perversão, a homossexualidade e a psicose.

Posteriormente, em seu último curso, publicado sob o título "Le fourvoiement biologisant de la sexualité (II)" (1993), Laplanche chega a sugerir que esse artigo de Freud poderia ser considerado como momento capital de articulação das duas grandes teorias freudianas da pulsão (das pulsões de autoconservação e sexuais, de um lado, e das pulsões de vida e de morte, de outro).

Baseando-me nas teses de Laplanche sobre a teoria da sedução, sustentei que, mediante uma espécie de dialetização do apoio, novas perspectivas se abririam para a conceituação do ego e do narcisismo (essencial para se pensar o primeiro), e até mesmo em relação às pulsões. Não se pode esquecer que nesse artigo de Freud passa a ser feita uma distinção entre os planos autoconservativo, sexual erótico e sexual narcísico, ao mesmo tempo que a ação (de natureza comunicativa) do outro é entrevista como ponto de partida da escolha de objeto sexual.

É possível depreender uma ideia de narcisismo como "complemento libidinal do egoísmo da pulsão de autoconservação" que, segundo Freud, poderia ser atribuída a todo ser vivo. Ele parece estar se referindo, no caso, ao narcisismo primário, fundante, presente nos primórdios da infância, ao qual contrapõe o narcisismo da psicose, concebido como secundário em relação ao primeiro. Mas esta hipótese levaria a supor um narcisismo da infância, normal, anterior ao da vida adulta, patológico, que por meio de uma espécie de reinversão, em decorrência da retração da libido para o ego, seria responsável pelo delírio de grandeza e pelo afastamento do interesse do ego pela realidade externa.

Mas também é possível depreender outro sentido dos narcisismos primário e secundário se levarmos em conta a temporalidade envolvida na formação do ego-indivíduo e do ego-instância.

Laplanche esclarece-nos, em seu livro Novos fundamentos para a psicanálise (1987/1992d), a relação entre a temporalidade difásica da repressão primária e aquela observada na gênese do ego. Para ele, não há uma repressão primária e outra secundária, mas dois tempos indissociáveis no mesmo movimento de constituição do ego e da própria sexualidade inconsciente.

Um primeiro tempo é remetido ao surgimento do ego, ainda indissociável do indivíduo, que coincidiria com a periferia que o delimita - "eu-pele", conforme Anzieu (1985), ou "ego-corpóreo", de acordo com Freud. Um segundo tempo é associado ao momento em que a repressão originária atuaria no sentido de constituir o ego-instância como parte do aparelho psíquico. No entendimento de Laplanche, esta instância formar-se-ia seja como imagem do todo, como derivação metafórica, "segundo a imagem da mãe ou dos pais", seja como órgão ou apêndice especializado do todo, em continuidade metonímica com o mesmo, como um "pedaço do corpo materno" (1993, p. 12).

Partindo dessa interpretação dada por Laplanche a respeito da temporalidade difásica da repressão originária, sustentei a hipótese de que esses dois tempos referir-se-iam também aos dois momentos de constituição do narcisismo primário.

No entanto, é notável a ambiguidade do referido artigo de Freud, na medida em que ao lado dessa concepção mais fecunda dos narcisismos primário e secundário aparece outra, na qual o narcisismo primário é apresentado como um estado biológico, originário (não psíquico, no limite), e o narcisismo secundário como o amor dirigido ao ego ainda na infância.

Uma ênfase nessa segunda leitura teria sido dada de algum modo por Lacan e alguns de seus seguidores, como Mannoni. Este, em um seminário feito com Lacan, em março de 1954 (Lacan, 1983), defende a noção de um narcisismo primário associado ao eu ontológico e de um narcisismo secundário associado ao ideal de ego. Neste mesmo seminário, Lacan aborda o "estágio do espelho", que remeteria a criança à imagem dela mesma e cuja moldura seria dada pelo outro. Segundo o autor, o narcisismo primário seria aquele estágio originário, que remeteria a criança a sua imagem corporal, mas que no ser humano é acompanhado de um segundo narcisismo, cujo pattern fundamental é a relação com o outro.

Laplanche (1993) considera, entretanto, que o termo "estágio do espelho" utilizado por Lacan recai no mesmo problema criticado por este, ou seja, o estadismo (de acordo com o qual os tempos sucessivos da vida erótica não devem ser confundidos com uma sucessão de estágios libidinais); discute também a própria conceituação de espelho, que sugere, a seu ver, de uma hora para outra, tudo se precipitar, sem maiores explicações.

No entanto, quando Lacan remete o termo espelho à imagem do outro, do semelhante, Laplanche identifica certa semelhança com a ideia de Anzieu (1985) de "eu-pele", pele para o pensamento. O autor pondera que as duas conceituações podem ser enriquecedoras para a concepção freudiana sobre a gênese do ego - a primeira se referindo à impregnação visual e a outra à impregnação tátil.

Por fim, no momento em que Freud indica a dessexualização (ou o abandono dos fins sexuais específicos) que estaria envolvida na transformação da libido de objeto em narcisismo, Laplanche aponta um paradoxo que estaria implícito na teorização sobre o narcisismo: o de que, embora se possa observar uma espécie de pansexualismo real, se tal absorção for feita no plano teórico, considerando existir Eros narcísico em tudo, não se correria o risco de caminhar para a própria dessexualização da psicanálise?

Pelo menos é o que o autor sugere (1993) a propósito das "psicologias de ego", ou mesmo das que advogam as "relações de objeto" que, a seu ver, encontrariam respaldo neste paradoxo criado pela teoria freudiana do narcisismo.

 

A título de conclusão: do outro originário ao outro-pessoa

Pretendi recolher em minha memória e experiência de teorização no campo freudiano as contribuições de Laplanche para pensar os fundamentos da psicanálise em sua íntima relação com a ontogênese do recalcado - esse estranho/familiar em nós, que nos aproxima do outro originário -, objeto fonte da pulsão, sustentado pela relação de sedução mãe/bebê, mas que há de ser atualizado/recriado na transferência.

Espero ter delineado, desse modo, algumas das principais implicações desse trabalho de confrontação de Freud com Freud, travado por Laplanche, para se pensar os fundamentos do psiquismo, da constituição da fantasia, com o apoio da relação de alteridade, em oposição a qualquer forma de redução do psíquico ao autoengendramento e do eu narcísico a uma mônada solipsista.

É a presença do outro em nós; do primado do outro na constituição de nossa sexualidade inconsciente, como sustentara Laplanche - interpretação que abre um importante debate a ser enfrentado pela psicanálise, não apenas sobre seus próprios fundamentos, mas sobre os fundamentos da razão ocidental.

Debate ensejado por Schopenhauer, que Nietzsche faz avançar, e cujos desenvolvimentos no campo clínico e metapsicológico realizados Freud e pela leitura contemporânea de Laplanche têm apontado que a filosofia subjetivamente centrada, seja no campo da representação, seja no campo da vontade, não se sustenta, uma vez que o eu se revelou como "um abismo de problemas", como afirma Giacoia (2005). Segundo este, o mundo não parece mais ser acessível a não ser no emaranhado do círculo das representações - e, diria eu, de interpretações que advêm de um ponto de vista alheio ao Eu, estranho e familiar, mas invariavelmente deslocado de si.

Nesse sentido, tenho sustentado que Nietzsche e Freud, ao defenderem o descentra-mento da razão e da consciência, anteciparam não apenas as descobertas do inconsciente como ofereceram as bases para se pensar outra ordem de retorno do reprimido - das culturas e subjetividades recalcadas pelas representações do monoculturalismo ocidental. Por sua vez, ao sustentar uma leitura de Freud a partir do primado do outro - do outro originário, do outro fantasmático -, Laplanche deixa entrever a dimensão cultural que nos constitui, que nos remete à história negada de nossas ancestralidades, africana e indígena - fundamental para se repensar as bases de uma psicanálise brasileira.

O retorno sobre si só faz sentido como sombra do objeto... perdido e, de algum modo, a ser reencontrado.

 

Referências

Amaral, M. do (1995). Os três ensaios sobre a teoria da sexualidade: um texto perdido em suas sucessivas edições? Revista Psicologia USP, 6(2),63-84.         [ Links ]

Amaral, M. do (1997). O espectro de Narciso na modernidade: de Freud a Adorno. São Paulo: Estação Liberdade; FAPESP.         [ Links ]

Amaral, M. do (1997-1999). O getulismo do período entre-guerras: uma versão latino-americana do fascismo europeu? Texto não publicado. (Relatório de pesquisa, CNPq).         [ Links ]

Anzieu, D. (1985). Le moi-peau. Paris: Dunod.         [ Links ]

Freud, S. (1987). Trois essais sur la théorie de la sexualité (P. Koeppel, trad.). Paris: Gallimard. (Trabalho original publicado em 1905).         [ Links ]

Freud, S. (1988). Pulsions et destins de pulsions. In S. Freud, Oeuvres complètes (J. Laplanche, trad., Vol. 13, pp. 161-185). Paris: PUF. (Trabalho original publicado em 1915).         [ Links ]

Freud, S. (1992). Pour introduire le narcissisme. In S. Freud, La vie sexuelle (J. Laplanche et al., trads., pp. 81-105). Paris: PUF. (Trabalho original publicado em 1914).         [ Links ]

Freud, S. (1992). Problème economique du masochisme. In S. Freud, Nevrose, Psychose et Perversion (J. Laplanche, trad., pp. 287-297). Paris: PUF. (Trabalho original publicado em 1924).         [ Links ]

Freud, S. (2001). Más allá del principio de placer. In S. Freud, Obras completas (J. L. Etcheverry, trad., Vol. 18, pp. 1-62). Buenos Aires: Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1920).         [ Links ]

Freud, S. (2003). Una dificultad del psicoanálisis. In S. Freud, Obras completas (J. L. Etcheverry, trad., Vol. 17, pp. 125-135) Buenos Aires: Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1916-1917).         [ Links ]

Giacoia Junior, O. (2005). Nietzsche & Para além de bem e mal (2a ed.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

Herrmann, F. (1991). Andaimes do real: o método da psicanálise. São Paulo: Brasiliense.         [ Links ]

Herrmann, F. (2001). Introdução à teoria dos campos. São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Lacan, J. (1983). O seminário, livro 1 (B. Milan, trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

Laplanche, J. (1980a). Problematiques I: l'angoisse. Paris: PUF.         [ Links ]

Laplanche, J. (1980b). Problematiques II: castration, symbolisation. Paris: PUF.         [ Links ]

Laplanche, J. (1980c). Problematiques III: la sublimation. Paris: PUF.         [ Links ]

Laplanche, J. (1981). Problematiques IV: l'inconscient et le ça. Paris: PUF.         [ Links ]

Laplanche, J. (1985). Vida e morte em psicanálise (C. P. Barreto Mourão & C. F. Santiago, trads.). Porto Alegre: Artes Médicas Sul.         [ Links ]

Laplanche, J. (1987). Problematiques V: le baquet, transcendance du transfert. Paris: PUF.         [ Links ]

Laplanche, J. (1992a). La pulsion de mort dans la théorie de la pulsion sexuell. In J. Laplanche, La révolution copernicienne inachevée (pp. 273-286). Paris: Aubier.         [ Links ]

Laplanche, J. (1992b). La révolution copernicienne inachevée. Paris: Aubier.         [ Links ]

Laplanche, J. (1992c). Le fourvoiement biologisant de la sexualité (I). Psychanalyse à ¡'Université, 17(68),3-41.         [ Links ]

Laplanche, J. (1992d). Novos fundamentos para a psicanálise (C. Berliner, trad.). São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1987).         [ Links ]

Laplanche, J. (1993). Le fourvoiement biologisant de la sexualité (II). Psychanalyse à l'Université, 18(69),3-36.         [ Links ]

Laplanche, J. (1997). Le primat de l'autre en psychanalyse. Paris: Champs Flammarion. (Trabalho original publicado em 1992).         [ Links ]

Laplanche, J. & Leclaire, S. (1966). L'inconscient, une étude psychanalitique. In H. Ey (Ed.), L'inconscient (pp. 95-130). Paris: Desclée de Brouwer.         [ Links ]

Laplanche, J. & Pontalis, J.-B. (1985). Vocabulário da psicanálise (P. Tamen, trad.). São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1967).         [ Links ]

Nietzsche, F. (2005). Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro (P. C. de Souza, trad.). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1886).         [ Links ]

Tarelho, L. (2012). A teoria da sedução generalizada de Jean Laplanche e o descentramento do ser humano. Jornal de Psicanálise, 45(83),97-107.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Mônica do Amaral
Avenida da Universidade, 308
05508-900 São Paulo, SP
monicagta@hotmail.com

Recebido em 10.8.2013
Aceito em 27.8.2013

 

 

1 Esse curso era ministrado na Unicamp, entre 1988 e 1989, pelos filósofos Roberto Monzani, Bento Prado e Jeanne-Marie Gagnebin e coordenado pelo professor Osmyr Gabbi Jr.
2 Aqui tive a colaboração do professor Ruy Fausto, então docente em Paris VIII, que me ajudou a cotejar as traduções, brasileira e francesa, e o original em alemão de alguns textos, fundamentais para a minha pesquisa, de Theodor Adorno.
3 Trata-se da tese de doutorado, publicada sob o título O espectro de Narciso na modernidade: de Freud a Adorno (1997).
4 Refiro-me a uma pesquisa intitulada O getulismo do período entre-guerras: uma versão latino-americana do fascismo europeu? (1997-1999).
5 Fábio Herrmann (1991, 2001) designou como prototeoria a teoria feita sob medida para cada paciente, que no caso dessa pesquisa teria que se adequar às exigências de nosso objeto.
6 42° Congresso internacional de psicanálise, organizado pela ipa, entre 22 e 27 de julho de 2001, em Nice.
7 Tradução da autora, assim como nas demais citações de obras consultadas em outros idiomas que não o português.
8 Apresentado no livro O espectro de Narciso na modernidade (Amaral, 1997).

Creative Commons License