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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.47 no.3 São Paulo July/Sept. 2013

 

ARTIGOS TEMÁTICOS: LEGADOS

 

Prática psicanalítica e mensagem enigmática1

 

Psychoanalytic practice and enigmatic message

 

Práctica psicoanalítica y mensaje enigmático

 

 

Silvia BleichmarI; Tradução Claudia Berliner

IPsicanalista argentina (1944-2007), realizou seu doutorado na Universidade de Paris VII sob a orientação de Jean Laplanche, discípula e pensadora original, autora de vasta obra traduzida para várias línguas

 

 


RESUMO

Este trabalho privilegia, como eixo, a ideia que Jean Laplanche postula sobre o realismo do inconsciente, pelo caráter exógeno e não subjetivo de sua origem. Uma exogeneidade que passa pelo outro e que marca como excitante e traumático o início da vida psíquica. A autora apresenta a proposta de Laplanche de que entre adulto e criança, pela assimetria de saberes fundante da situação originária, circulam mensagens de significação sexual inconscientes, percebidas pela criança como enigmáticas. A partir de dois casos clínicos, mostra que o enigma se apresenta como traumatismo, em parte pela assimetria de saberes entre adulto e criança, em parte pela clivagem psíquica no adulto que envia a mensagem, o que evidencia uma assimetria de saberes do adulto com ele mesmo. Nesse sentido, a autora discute as possibilidades de tradução da mensagem do outro.

Palavras-chave: Jean Laplanche; mensagens enigmáticas; metábola; teoria da sedução.


ABSTRACT

This paper has as its axis the idea postulated by Jean Laplanche about realism of the unconscious, due to the exogenous and non-subjective nature of its origin. An exogeneity which passes through the other and which characterizes the beginning of the psychic life as exciting and traumatic. The author presents Laplanche's proposal that, between the adult and the child, due to the asymmetry of knowledge of the originating situation, unconscious messages of sexual signification circulate and are perceived by the child as enigmatic. Through two clinical cases, it is shown that the enigma presents itself as a traumatism partly due to the asymmetry of knowledge between the child and the adult and partly due to the psychic cleavage in the adult who sends the message, which exposes an asymmetry of knowledge between the adult and himself. In this sense, the author discusses the possibilities of the translation of the other's message.

Keywords: Jean Laplanche; enigmatic messages; metabola; seduction theory.


RESUMEN

Este trabajo da privilegio, como eje, a la idea que Jean Laplanche postula sobre el realismo del inconsciente, por el carácter exógeno y no subjetivo de su origen. Una exogeneidad que pasa por el otro y que marca como excitante y traumático el inicio de la vida psíquica. La autora presenta la propuesta de Laplanche de que entre adulto y niño, por la asimetría de conocimientos básicos de la situación original, circulan mensajes de significado sexual inconscientes, percibidos por los niños como enigmáticos. A partir de dos casos clínicos, muestra que el enigma se presenta como traumatismo, en parte por la asimetría de saberes entre adulto y niño, en parte por la división psíquica en el adulto que envía el mensaje, lo que muestra una asimetría de conocimientos del adulto con él mismo. En este sentido, discute las posibilidades de traducción del mensaje del otro.

Palabras clave: Jean Laplanche; mensajes enigmáticos; metábola; teoría de la seducción.


 

 

Queridos amigos:

Estas Jornadas que temos realizado a cada dois anos são uma oportunidade para reencontros. Nelas compartilhamos nossas elaborações teórico-clínicas e também nossas preocupações em relação à psicanálise, seu presente e seu futuro.

Como não considerá-las, então, um lugar privilegiado, se a isso agregarmos o fato de que o seu caráter atópico, a-institucional, somado à sua permanência no tempo, nos garante que os únicos laços que nos fazem retornar vezes seguidas a esses encontros são a inquietação intelectual e o afeto? - deslocados para as bordas, tangencializados, diria Jean Laplanche, os interesses autoconservativos do eu.

Nossas Jornadas deste ano se chamam "Prática psicanalítica e mensagem enigmática", e este título é em si mesmo um programa de trabalho, que retoma uma das questões nucleares que vêm sendo exploradas a partir dos novos rumos que se abrem para a psicanálise depois dos Novos fundamentos (1987) e da Revolução copernicana inacabada (1992/2008) - da qual traduzimos um conjunto de textos, que seguem os eixos que hoje nos convocam, sob o título La prioridad del otro en psicoanálisis (1992).

Prática psicanalítica: não se trata, creio, fundamentalmente, daquilo que alguns consideram o desenvolvimento das elaborações clínicas, se por isso entendemos a imposição de noções implícitas que articulariam uma espécie de harmonia universal entre os psicanalistas sob o lema, muito geral, e por isso mesmo enganoso, de que "na clínica, todos falamos da mesma coisa".

Está, antes, do lado do que Laplanche chamou, nos Novos fundamentos, "mise à l'épreuve pratique" ou seja, submeter à prova prática. A teoria é posta à prova na prática; o fracasso, se fracasso há, é fracasso da teoria e da prática. As indicações práticas que o analista realiza, a maneira pela qual exerce sua função específica, o prescritivo, como conjunto de indicações, de atos, não se sustentam senão em relação ao descritivo, ao modo, à metapsi-cologia na qual cada analista apoia sua prática.

Torna-se, então, necessário incluir minha exposição de hoje - como uma recapitulação pessoal mas necessária para estabelecer os termos do debate - na ordem das principais afirmações decorrentes do partido que Jean Laplanche foi tomando ao longo dos anos, nas quais aqueles de nós que hoje se consideram seus discípulos e continuadores de sua obra se reconhecem.

Primeiro, o ponto de partida que supõe diferenciar-se de toda tentativa de reduzir a materialidade do inconsciente àquela mediante a qual realizamos sua apropriação, ou seja, ao discurso; junto com isso, a proposta forte de considerar o inconsciente em seu caráter realista, com um funcionamento fechado a qualquer referência exterior a si mesmo, a toda intencionalidade, incluindo nisso qualquer abertura subjetivista (que deve ser concebida sempre como partindo do eu, das instâncias abertas à intercomunicação).

Em segundo lugar, a noção de conflito como eixo articulador central da psicanálise, na medida em que dá conta da posição do sujeito em relação ao inconsciente, considerando-o como atravessado pelo recalque e posicionado com respeito à sexualidade inconsciente como disruptiva e desligadora, "mortífera" e autotraumática.

Ambas as questões não estão esgotadas, mas ganham um novo caráter na polêmica atual com a psicanálise concebida, por um lado, como um processo de hermenêutica interpretativa, e por outro, ante a tentativa de esvaziamento do inconsciente originário não mais pelo lado de uma subordinação à filogenética endogenista, mas por sua diluição numa teoria da "identificação" que, em última instância, conduziria a um recentramento da prática nos aspectos inconscientes do eu.

A terceira questão que quero sublinhar, e que considero axial para nosso intercâmbio, remete à origem do inconsciente, a seu caráter exógeno, mas de uma exogeneidade que devemos conceber não como simples exterioridade, mas como estranhamento (ajenidad, étrangeté). Nessa diferença entre exterioridade (perceptual, familiar ou simplesmente de entorno) e o estranhamento do outro radica a contribuição absolutamente original da obra de Jean Laplanche, porque se trata de uma exterioridade que marca como excitantes e traumáticos os começos da vida psíquica e define para sempre as relações do sujeito psíquico com o mundo.

É aqui que se evidencia a importância de manter no centro mesmo de nossa teoriza-ção o conceito de metábola e de recalque originário.

E isso porque a assimetria constitutiva evidencia o fato de que a fundação do inconsciente no sujeito psíquico não tem uma origem que poderíamos chamar, de modo genérico, "intersubjetiva", e por essa razão não reencontra as fontes da mensagem do outro nem seu código no interior da análise. O que implica, inevitavelmente, uma nova frustração do analista: o abandono da ilusão de que possa chegar ao núcleo mesmo do inconsciente, pelo fato de esse núcleo "ter suas raízes no outro".

Esclareçamos desde já que o estatuto do outro na fundação do inconsciente é altamente paradoxal; já que se deve abandonar a esse respeito qualquer recurso à intersubjetividade - porque esta não pode ser concebida senão no intercâmbio de sujeitos, ou seja, dos eus que se enfrentam, se aliam ou se complementam, o que acontece de modo totalmente diferente no tempo das origens. No bebê humano, a presença do outro como condição determinante da constituição subjetiva se apoia no fato de que a disparidade originária é também disparidade de estruturas: a mãe - para dizê-lo de modo simples -, provida de subjetividade, de interior e de exterior, de inconsciente sexuado e de eu narcisista, de representações recalcadas e de representações ideológicas do mundo, e o bebê, provido de algumas montagens reguladoras, mas - e esta é a questão central - carente de representações e de sistemas psíquicos nos quais incluir essas representações que irão se precipitando.

O nascimento do sexual considerado assim como um verdadeiro metabolismo, não como o resíduo direto da sexualidade do outro, mas do intervalo que se abre entre a sexualidade do outro e seus cuidados, suas "atenções", seu narcisismo des-sexualizado -ainda que seja de origem sexual -, porque o adulto está provido de inconsciente, põe em jogo o fato de que há ali uma transformação, uma desqualificação na passagem, que torna impossível o retorno àquilo de que provém.

É aqui que a categoria de sedução passa a ocupar um lugar central. Ela deve ser definida como relação passividade/atividade: o ativo é aquele que traz consigo mais saber, mais experiência etc que o passivo.

A sedução é uma relação assimétrica, cujo protótipo é o par criança-adulto. Uma criança, confrontada com um mundo adulto que, de entrada, lhe envia mensagens, impregnadas de significações sexuais (aquelas que a psicanálise descobre) inconscientes (para o próprio emissor), mensagens percebidas como enigmáticas, isto é, como "para traduzir" (Laplanche, 1992/2008, pp. 332-333).

Vou retomar agora os três articuladores centrais propostos por Laplanche para voltar a trabalhar com eles, tanto no tocante à prática quanto às origens. Começo com a categoria de mensagem - categoria solidária da teoria da sedução, e à qual temos de nos remeter para começar.

Quero assinalar em primeiro lugar que considerar a sedução como situação universal tem a virtude de pôr o foco no caráter assimétrico da relação originária, aquilo que constitui o fundamental da relação adulto-criança das origens: dando-se no campo do sexual, implica uma diferença de saberes e de posições em que a antecedência de atividade por parte do adulto com respeito à criança gera as condições para uma situação do inconsciente como alheio, pulsante, indomável, no campo do eu.

Ao mesmo tempo, permite ressituar de modo não acidental nem contingente a teoria traumática, restituindo a esta sua operância, com caráter de universal necessário para "o progresso da vida psíquica" - por oferecer uma ponte com a teoria freudiana das pulsões, neste caso do lado do exógeno.

Reposiciona a função do outro não como Outro transcendental nem como "semelhante" simétrico ou especular, desarticulando o paralelismo entre a biologia e a vida psíquica que o conceito de simbiose traz para os primórdios do bebê humano; e mais: inverte o parasitismo com o qual a psicologia do desenvolvimento reingressou na psicanálise para mostrar que se há parasitação, esta é da ordem sexual e simbólica, e nesse sentido, é a criança que é parasitada pelo adulto naqueles momentos em que sua sobrevivência biológica depende do outro - nos tempos em que se encontra em estado de desamparo.

Abramos estas questões para possibilitar a troca em nossas Jornadas. Primeiramente, em relação ao que circula entre a criança e o adulto nesses momentos das origens se conservamos a assimetria fundante da situação originária.

A proposta de Jean Laplanche é a seguinte: circulam mensagens enigmáticas (e sabemos que essas mensagens não são necessariamente linguajeiras, e que nos primórdios da vida são inclusive não linguajeiras): "Uma criança, confrontada com um mundo adulto que, de entrada, lhe envia mensagens, impregnadas de significações sexuais (aquelas que a psicanálise descobre) inconscientes (para o próprio emissor), mensagens percebidas como enigmáticas, isto é, como um 'para traduzir'" (Laplanche, 1992/2008, pp. 332-333).

Propondo, por outro lado, em "L'interprétation entre déterminisme et herméneutique":

A noção de mensagem traz a ideia de que há sentidos existentes, preexistentes, propostos ao sujeito e dos quais ele não é o senhor, dos quais só pode se apropriar submetendo-se a eles. Com a noção de enigma aparece uma ruptura do determinismo: na medida em que o emissor da mensagem enigmática ignora a maior parte do que quer dizer, e na medida em que a criança possui apenas meios inadequados e imperfeitos para dar forma ou teorizar o que lhe é comunicado, fica desqualificada qualquer causalidade linear entre o inconsciente e o discurso parental por um lado, e o que a criança faz com ele, por outro (Laplanche, 1992/2008, p. 410).

Gostaria de retomar essas duas formulações de Laplanche para retrabalhar a partir delas. Em primeiro lugar, a dos "sentidos preexistentes".

Exporei dois exemplos de minha própria prática, que adquirem um caráter quase paradigmático quanto à fecundidade do conceito de mensagem enigmática e à revisão "técnica" a que me impulsiona, ao mesmo tempo em que apresento as diferenças que têm de ser sublinhadas (tanto a respeito do caráter inconsciente da mensagem quanto dos sentidos preexistentes).

Um jovem de vinte anos que está em análise comigo relata, em uma sessão, o seguinte. Em um intervalo de sua aula de teatro, está conversando com um amigo sobre uma garota de quem gosta. Nesse momento passa seu professor - personagem muito valorizado por meu paciente - que, ao escutar o diálogo, solta a seguinte frase com um tom jocoso e um sorriso cúmplice: "Conta outra...! Bichinha não assumida".

Esse comentário desata nele, ao modo do enigma como trauma, a pergunta sobre a afirmação do outro (outro que tem uma antecedência indubitável de saber em um campo privilegiado que interessa particularmente a meu paciente; outro com quem se constitui uma relação de transferência). A interrogação gira em torno de saber se seu professor detectou algo que o leve a realizar uma afirmação de tal tipo, agregando que não desconhece a possibilidade de tendências homossexuais em si mesmo - 1996, um século de psicanálise! -, mas que não lhe parece que isso implique uma desqualificação de seu caráter de heterossexual. Não satisfeito, contudo, com sua própria resposta, acrescenta: "Não sei por que disse isso, se eu nunca amei um homem"

Pergunto-lhe, então, o que acha que levou seu professor a dizer o que disse. Interrogo, neste caso, sobre o portador da mensagem porque sei que na resposta encontrarei uma fantasia, e não a realidade do outro. Com muita dificuldade agrega: "Talvez estava querendo algo de mim..." - e com mais dificuldade ainda: "talvez eu o agrade"

Trabalhar os aspectos homossexuais do paciente sem respeitar sua afirmação sobre sua própria heterossexualidade seria desconhecer o caráter de verdade de uma afirmação do eu que não é derrubada por um desejo inconsciente. Seria também, penso, voltar a uma perspectiva de dupla consciência, de liquidação do pré-consciente - ou do eu - como estruturas, instâncias, com sua própria densidade, não como simples reflexo invertido do inconsciente. Se a psicanálise põe em risco as certezas do eu, não o faz para propor sua substituição pelas certezas do inconsciente, mas para trazer à luz desejos recalcados que o pré-consciente não poderia suportar e que definem as contradições e ambivalências do sujeito.

Quanto à categoria mensagem deve-se sublinhar o fato de que, nesse caso, o sedutor quer algo desse jovem - cujas associações infelizmente não podemos dar a conhecer na sua totalidade por razões de espaço - que pareceria estar do lado da consciência. Estamos, na verdade, ante um caso de sentido indireto: dar a conhecer uma parte de mensagem, sabendo que tem outro sentido do qual o portador é amo e que pretende desestabilizar quem a recebe oferecendo-lhe uma dúvida sobre seu desejo para usá-lo em benefício próprio.

Nesse sentido, não se trata de "um sentido ignorado por ele mesmo", mas de um sentido oculto embora dirigido, destinado a produzir uma sedução factual. No entanto, ainda falta resolver o seguinte: se é a transferência com o professor que torna esse jovem proclive a vacilar ante a proposta do sedutor, é porque ela mesma já contém amor homossexual por um homem. Em princípio, poderíamos afirmar, em uma perspectiva clássica: pelo pai mas, em particular, e isso é determinante em seu caso singular, pelo amor a si mesmo, por sua própria imagem. Em princípio, é o narcisismo a fissura pela qual o outro sedutor se introduz, por detectar no jovem seduzido um desejo de ser amado para além de qualquer coisa, e um amor por si mesmo que o torna presa fácil, mas é também a sutil intuição de que o amor pelo outro como portador de saber impõe uma submissão passiva que o deixa, de algum modo, indefeso.

Se, como analista, em uma perspectiva clássica, eu tivesse me inclinado por interpretar o desejo como "desejo homossexual, efeito de algum tipo de determinação endógena do Édipo invertido", acho que o desespero de meu paciente teria sido infinito. E ao mesmo tempo, a confusão tê-lo-ia deixado mais indefeso ainda ante a proposta sedutora do outro. Os benefícios de uma intervenção baseada no conceito de mensagem enigmática e trauma são claros, porque possibilitam a teorização e, nesse movimento, a emergência do desejo como fantasia relativa a uma posição sexual infantil.

Nesse caso, a mensagem sedutora é clara, e a clínica nos permite abordar o movimento de passagem pelo discurso do outro em sua vigência atual, não realizando um mero translado do presente para o passado, e sem recusar lugar para o desejo inconsciente: amar o idêntico - outro homem -, ser amado - passivamente -, os restos homossexuais sobre os quais a proposta de sedução agita meu paciente.

Relação assimétrica, no caso em questão, na qual a psicanálise introduz o complemento essencial de que esse "a mais" é a mais de saber do lado do sedutor, mas que cumpre distinguir, mesmo que pareça banal, da sedução originária. Em princípio, e neste caso, porque o sedutor sabe que seduz. Não há diferencial entre o apego (attachement) e o sexual do lado do adulto, mas há do lado do jovem, que sai em busca de saber e reconhecimento e topa com a sedução factual (não necessária) por parte do outro.

Vejamos um exemplo em que o enigma se coloca como trauma sem, contudo, aparecer do mesmo modo. Uma paciente adulta relata, numa sessão, algo que a mantém em uma situação ao mesmo tempo irritada e fixada à lembrança - trata-se de uma lembrança de adolescência: em uma viagem com o pai, quando tinha aproximadamente 19 anos, este comenta, sem que ela saiba muito bem o motivo, que a mãe - isto é, sua esposa - nunca o satisfez como mulher e que isso o obrigou a viajar muito.

Ela repete, várias vezes, e com irritação: "E eu não sei por que me disse aquilo..." Chega a conclusões, em múltiplas sessões e de modos distintos, mas coerentes: que queria fazer uma aliança com ela contra a mãe...; que era um modo de lhe dizer - como pai - que se quisesse ter um marido tinha de não ser como a mãe...; (mais perigosamente, e aproximando-se de algo angustiante:) que talvez precisasse se mostrar como muito homem porque já tinha ultrapassado uma curva da idade em que começava a se sentir um pouco velho...; que talvez estivesse lhe dizendo que ela era mais mulher que a mãe...; que talvez a convocava a perdoá-lo por suas ausências durante a infância...; que podia estar lhe pedindo que, sem refutar o discurso materno que o acusava de infidelidade, compreendesse as razões que o levavam àquilo. Todas essas teorias apareciam sem disjunção, mas tampouco em conjunção. Surgiam em diferentes sessões, e sempre terminavam do mesmo modo, destacando seu caráter traumático e impossível de ligar: "enfim... sei lá...".

A busca de um sentido para essa mensagem do pai, intraduzível, mas que talvez pudesse obter um estatuto menos traumático, permitia-lhe, contudo, reposicionar-se em suas relações amorosas com os homens, e ao mesmo tempo, diminuir a culpa em relação à própria mãe, mantida desde a infância pela rivalidade, mas também pelo segredo com o qual o pai tinha validado sua primazia sobre aquela. Sutilmente, os movimentos afetivos com os quais a lembrança aparecia iam variando, e a apropriação ativa dava-lhe ocasião tanto para manifestar sua hostilidade e ressentimento em relação a um pai que a tinha colocado nesse lugar, quanto para, piedosamente, desculpá-lo pela vida miserável que tinha levado.

Nesse caso, é sem dúvida necessária a destradução para que seja possível uma nova tradução. Isso, porém, é assim porque o sujeito, já constituído, atravessado pelo recalcamento e pelas autoteorizações do eu, se precipita em sua análise em um movimento de desarticulação de significações estabelecidas ao longo da vida.

Que tem de similar e que tem de distinta esta última situação em comparação com a situação originária? Em primeiro lugar, diferentemente do caso anterior, o pai não é consciente da mensagem que envia, embora aja movido por algum tipo de desejo, cujo sentido, todavia, lhe escapa como efeito do recalque. Há diferencial entre os cuidados que prodigaliza à sua filha e a mensagem sexual que envia, e esta não é unívoca, não está atravessada pelo duplo sentido, mas simplesmente por "um sentido ignorado por ele mesmo", que obriga a filha à autoteorização, porque o outro nunca teria uma resposta a esse respeito, e porque a própria pergunta sobre o sentido seria informulável, já que o emissor mesmo não poderia encontrar o sentido sem associar sobre seu próprio discurso (com todo o peso que damos em psicanálise à palavra "associação", ou seja, como modo de aproximação do recalcado).

Assim como ocorre no exemplo que acabo de expor, nas origens da vida, as mensagens têm, de modo paradigmático, "um sentido ignorado por ele mesmo", pois o adulto que emite a mensagem conhece uma única dimensão do que envia: a dimensão consciente.

É neste ponto que quero sublinhar que encontro duas propostas nas teorizações de Jean Laplanche sobre a sedução, e que me vejo obrigada a tomar partido: por um lado, aquela na qual a sedução aparece como diferença de saberes entre a criança e o adulto, entre seduzido e sedutor. Por outro, aquela que situa o fundamento na clivagem do psiquismo do próprio adulto.

Gostaria, então, de ressaltar, como questão central, que a sedução tem seu fundamento não no fato da disparidade de saberes entre a criança e o adulto, mas entre o adulto e o adulto, na clivagem constitutiva do inconsciente que atravessa o adulto responsável pela criança em desamparo.

É essa fundamental assimetria do adulto consigo mesmo a base da implantação sexual na criança e a fonte de emissão de mensagens traumáticas constitutivas do inconsciente. É essa clivagem do psiquismo do adulto que marca a diferença em relação à teoria clássica da sedução, e inclusive em relação à sedução factual.

Por isso, a fórmula que adverte que o inconsciente não é simplesmente o outro implantado em mim se sustenta em complementaridade com o conceito de metábola. Porque entre a intervenção primeira do outro e a criação da outra coisa em mim, intercala-se um processo chamado recalcamento, muito complexo, que envolve ao menos dois tempos, que atuam um sobre o outro e que desembocam em uma verdadeira desarticulação/reconfiguração dos elementos provenientes do vivido.

Mas junto com essa teoria do caráter enigmático da mensagem a partir da clivagem do inconsciente, Laplanche nos oferece outra perspectiva, cujos alcances considero mais limitados em psicanálise e que talvez possa, inclusive, ser considerada efeito do deslizamento de uma teoria que poderíamos chamar "teoria geral da tradução", importada para o tratamento ao apontar, de modo interrogativo, em Problemáticas V: a tina, a transcendência da transferência:

Assim, a mensagem adulta é por essência enigmática em razão desse diferencial, mas caberia perguntar se não o seria, inclusive, num nível mais fundamental, em razão do diferencial interno a toda mensagem enquanto tal. Penso que é isso que deveríamos pôr em evidência a propósito do problema da tradução: o fato de o diferencial da tradução de uma língua a outra assim como a dificuldade ligada à tradução e até a impossibilidade mesma da tradução não serem senão a revelação de um diferencial interno à língua mesma (Laplanche, 1987/2008, p. 235).

Não considero esta última a hipótese mais fecunda dentro de suas teorizações, pois aqui retorna, de certo modo, uma teoria do recalcamento como ausência de tradução, que deixa de lado a questão nuclear do conflito.

Que haja impossibilidade de tradução e isso evidencie um diferencial interno à própria língua pode ser importante para a teoria geral da tradução. Em minha opinião, contudo, a impossibilidade da tradução na relação criança-adulto no tocante à mensagem do outro não é efeito de um diferencial interno da língua, ou seja, o inconsciente não funciona ao modo de uma linguagem constituída por duplas articulações e capaz de produzir significações. Nesse sentido, é preciso conservar a diferença entre uma teoria geral da tradução e a teoria da sedução-metábola-tradução em psicanálise, ressaltando a necessidade de abandonar toda ilusão de código de partida.

Não há língua de origem nem sentido de partida, mas língua de partida para construir sentido no sujeito singular, uma vez constituído o recalcamento originário e a clivagem psíquica. E mesmo reintroduzindo a questão do potencial interno da língua para reformular o enigma invertendo os termos, como algo que pode até funcionar em benefício do adulto ou do sedutor, fazendo obstáculo à tradução porque a criança sempre pode suspeitar de um mal-entendido possível, ou ser acusada de "mal-entender" (jogando com Ferenczi: "Uso da confusão de línguas entre o adulto e a criança"), não considero isso central para uma teoria do recalcamento.

Porque o aspecto central a ser sublinhado é o fato de que a mensagem não pode remeter a um código de partida, porque seus aspectos sedutivo-excitantes são produto de uma defasagem no psiquismo do próprio emissor, devido à clivagem que o constitui.

Não há, portanto, tradução possível no tocante à metábola de origem, porque não há para onde remeter o sentido. A desqualificação é inerente à passagem, e é autoconserva-tivo o movimento de apropriação necessário dos signos provenientes do outro. Antes de se desqualificar na relação entre a criança e o adulto, já se desqualificou no interior do próprio adulto, entre seus sistemas psíquicos.

A destradução-retradução só é possível como processo intrapsíquico, nas recomposições de sentido que a análise favorece, mas essas destraduções-retraduções perderam, de fato, qualquer referência ao outro, e se a ele retornam é, inevitavelmente, como "objeto do mundo" e não como parte de mim mesmo (mesmo quando se trata de um objeto privilegiado do mundo, e que inclusive outorga todo sentido ao mundo).

Neste ponto, também é necessário explicitar outra questão relativa ao recalcamento originário. É na Carta 52/112 da correspondência de Freud com Fliess que Jean Laplanche encontra o nexo que sustenta o caráter freudiano da proposta do recalcamento originário como um déficit de tradução. Retomo a citação - amplamente conhecida: "O recusamento [Versagung] da tradução é o que clinicamente se chama 'recalcamento'. Subsiste assim um anacronismo, em determinada província ainda vigoram alguns fueros" (Freud, 1976, p. 276).

Esta Carta 52/112 tem suas virtudes mas, ao mesmo tempo, é preciso delimitar suas perspectivas. Eu mesma me baseei nela para desenvolver uma série de questões relativas não só à fundação do inconsciente, mas à necessidade de afirmar a heterogeneidade de um inconsciente que inclui representações que nunca podem ser transpostas para o pré-consciente - não são traduzíveis, diria Laplanche - e que constituem o fundo do inconsciente e justificam a análise infinita. E esta é uma enorme virtude do modelo.

Ao mesmo tempo, porém, a Carta 52/112 se sustenta no interior do primeiro modelo metapsicológico freudiano, o do "Projeto" (1950[1895]/1976), no qual a passagem de um sistema a outro não implica processos de contrainvestimento e, portanto, o conflito está marcado não pelas relações intersistêmicas, mas pelas diferenças de níveis de organização intrínseca dos sistemas. Nesse sentido, é um modelo que não permite sustentar um aspecto central do freudismo, e que Jean Laplanche defendeu desde o começo de sua obra: a função do conflito e o dualismo como dualismo em conflito, não como simples diferença de potencial organizacional. O mesmo ocorre com carta a Fliess de 6 de dezembro de 1896, que situa a sucessão de cenas e compara as relações entre elas a uma reinscrição e a uma tradução, posicionando o recalcamento na barreira que separa duas épocas psíquicas e assimilando-o a um defeito parcial de tradução.

O que dá o caráter de signo aos restos metonímicos dos objetos originários, o que produz o salto qualitativo é, em minha opinião, o fato de que a sexualidade do outro introduz um potencial de energia irredutível à autoconservação. É o paradoxo de uma energia que se põe a operar, do lado da excitação, no momento em que se apazigua a necessidade biológica.

Mas esses signos só se constituirão como tais après-coup, porque o começo da vida está marcado pela ausência de sujeito em sentido estrito. E essa dessubjetivização das origens, essa desintencionalização das origens, é correlativa à dessubjetivização do inconsciente, à recusa de outorgar ao inconsciente originário qualquer intencionalidade.

Ao recusar qualquer afirmação que reintroduza o sujeito desde as origens, sinto-me obrigada a não aceitar, nem sequer como metáfora, que o objeto que "faz signo" possa impor a pergunta "O que o seio quer de mim?" nos primórdios da vida. Ao propiciar a reintrodução de um sujeito precocemente, também sustenta uma retrospectiva com a qual a psicanálise sempre se enganou.

É nesse ponto que se deve sustentar, a meu ver, a recusa de toda clínica "intersubjetiva" que, desconhecendo o caráter do inconsciente como existente, pretenda recompor a partir do exterior algo que nunca esteve fora.

Embora de origem exógena, o inconsciente aparece, paradoxalmente, como "auto-engendrado", pelo fato de que a marca da impressão da sexualidade do outro se produz em tempos nos quais o sujeito não está constituído, não há tópica nem noção de objeto perceptual ou interioridade. A referência está cortada e, com ela, toda relação de intencionalidade voltada para o objeto.

As razões que o eu tem para desconhecer o inconsciente como alheio não são da mesma ordem que aquelas impostas pelo paradoxo de que, sendo o inconsciente de origem exógena, desconhece os restos estrangeiros que o habitam. O estranhamento a que aludimos não é defensivo, é estrutural; tem mais a ver com o incognoscido originário do que com o desconhecido, efeito do recalque secundário, e por isso, a prática psicanalítica apenas pode bordear constantemente os enlaces das transcrições que constituem os diversos tempos do psiquismo.

Se o tratamento analítico, por mais inovador que seja, só pode ter sentido e efeito reencontrando algo preexistente e fundamental na existência humana, é necessário sublinhar o fato de que, tal como ocorre nas origens, a mensagem do outro é intraduzível, porque não havendo língua de partida, não há nem significação outorgada nem código a que recorrer.

Foi Jean Laplanche quem primeiro destacou a necessidade de erradicar todo sujeito do inconsciente e de afirmar, de maneira genial, em um mesmo movimento, o realismo do inconsciente e seu caráter não subjetivo.

A partir disso, provavelmente nosso grande desafio, invertendo precisamente o percurso do sujeito psíquico, consista em resolver esta questão tão complexa no seio de nossa prática: afirmar, ao mesmo tempo, que o inconsciente é algo que se constitui por referência ao outro humano e, simultaneamente, que só se pode analisar algo se o sujeito considerar como próprio aquilo que se lhe oferece como alheio. Com base nisso, conservar uma hipótese fundacional de ordem exógena e, ao mesmo tempo, não culminar em uma análise que se dedique a trabalhar os desejos dos outros originários.

 

Referências

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Laplanche, J. (1992). La prioridad del otro en psicoanálisis (S. Bleichmar, trad.). Buenos Aires: Amorrortu.         [ Links ]

Laplanche, J. (2008). Problematiques V: le baquet, transcendance du transfert. (Trabalho original publicado em 1987).         [ Links ]

Laplanche, J. (2008). La révolution copernicienne inachevée. Paris: PUF. (Trabalho original publicado em 1992).         [ Links ]

 

 

1 Texto apresentado por Silvia Bleichmar nas 3as Jornadas de trabalho sobre a obra de Jean Laplanche, realizadas em Madri, Espanha, nos dias 19, 20 e 21 de julho de 1996, cujo título foi "O intraduzível da mensagem do outro: fundamentos da prática e do inconsciente".

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