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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.47 no.3 São Paulo July/Sept. 2013

 

ARTIGOS TEMÁTICOS: LEGADOS

 

Meu encontro com Freud e Green: das pulsões aos estados limítrofes

 

My encounter with Freud and Green: from drives to borderline states

 

Mi encuentro con Freud y Green: de los impulsos a los estados limítrofes

 

 

Zelig Libermann

Membro efetivo da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre (SPPA)

Correspondência

 

 


RESUMO

Na introdução de seu livro Sobre a loucura privada, André Green afirma que escreve, entre outros motivos, pelo desejo de organizar a experiência e como expressão de sua busca da verdade na filiação a Freud. Um contato mais amplo com sua obra nos mostra que Green permaneceu fiel a esses objetivos durante toda sua trajetória. Muitos de seus textos, em que pese a ausência de relatos de caso, emanam o que ele denomina de pensamento clínico. Além disso, ele é o psicanalista contemporâneo que melhor articulou o pensamento de Freud com a psicanálise da atualidade (sempre com uma postura de tributo e de questionamento), evidenciando a presença das ideias freudianas na compreensão dos períodos iniciais da vida psíquica e dos indivíduos fronteiriços considerados os pacientes típicos do nosso tempo. Frente à diversidade de temas que sua vasta obra nos apresenta, escolhi abordar neste trabalho algumas ideias de Green sobre o conceito freudiano de pulsão e sua aplicação clínica nos casos dos pacientes fronteiriços.

Palavras-chave: Freud; André Green; pulsão; estados limítrofes; pacientes fronteiriços.


ABSTRACT

In the introduction of his book On Private Madness, André Green claims that he writes, among other reasons, as a result of his desire to organize experience and as an expression of his search for truth in the affiliation with Freud. A broader contact with his work reveals that Green remained faithful to these goals during his entire path. Many of his texts, where there is an absence of case reports, exude what he calls clinical thought. On top of this, he is the contemporary psychoanalyst who best articulated Freud's thinking with modern day psychoanalysis (always in a conduct of tribute and questioning), pointing out the presence of Freudian ideas in the understanding of the initial periods of psychic life and of borderline individuals considered to be the typical patients of our time. In the face of the diversity of themes presented by his vast body of works, I chose, in this work, to touch upon some of Green's ideas on the Freudian concept of drive and its clinical application in cases of borderline patients.

Keywords: Freud; André Green; drive; borderline states; borderline patients.


RESUMEN

En la introducción de su libro De locuras privadas, André Green afirma que escribe, entre otros motivos, por el deseo de organizar la experiencia y como expresión de su búsqueda de la verdad en la filiación a Freud. Un contacto más amplio con su obra nos muestra que Green permaneció fiel a esos objetivos durante toda su trayectoria. Muchos de sus textos, a pesar de la ausencia de relatos de casos, emanan lo que él denomina pensamiento clínico. Además, él es el psicoanalista contemporáneo que mejor articuló el pensamiento de Freud con el psicoanálisis de la actualidad (siempre con una postura de tributo y de cuestionamiento), evidenciando la presencia de las ideas freudianas en la comprensión de los períodos iniciales de la vida psíquica y de los individuos fronterizos considerados los pacientes típicos de nuestro tiempo. Ante la diversidad de temas que nos presenta su amplia obra, escogí abordar en este trabajo algunas ideas de Green sobre el concepto freudiano de impulsos y su aplicación clínica en los casos de los pacientes fronterizos.

Palabras clave: Freud; André Green; impulso; estados limítrofes; pacientes fronterizos.


 

 

I. Introdução

O convite para participar deste número da Revista Brasileira de Psicanálise, que se detém sobre o legado de importantes psicanalistas contemporâneos recentemente falecidos, despertou-me sentimentos de satisfação e de preocupação ao mesmo tempo.

Satisfação pela possibilidade de homenagear André Green, esse grande psicanalista do nosso tempo, falecido no início de 2012, cujo pensamento influenciou minha formação teórica, auxiliando-me na compreensão de conceitos freudianos fundamentais, e na relação destes com as ideias dos autores pós-freudianos (tanto no que se refere às convergências como também às divergências) e com as problemáticas da clínica psicanalítica.

Preocupação, porém, por causa de uma dúvida: frente a uma obra tão vasta como a de André Green (que abrange temas como afeto, narcisismo de vida e de morte, os pacientes fronteiriços, as pulsões, o trabalho do negativo, entre outros), quais aspectos se pode eleger para homenageá-lo sem que essa escolha obscureça a amplitude de sua produção teórica e clínica em psicanálise?

Lembrei-me, então, de um artigo lido recentemente (Falcão, 2013), no qual a autora faz referência a uma entrevista concedida por Green a Dominique Eddé, publicada no livro La lettre et la mort, de autoria do próprio Green.

Em dado trecho da entrevista, questionado sobre o fato de ser conhecido internacionalmente por suas ideias sobre o afeto, Green afirma: "E se alguma vez for necessário me definir como o homem de alguma coisa, eu diria que eu sou o homem do pulsional" (citado por Falcão, 2013, p. 154).

No que se refere a minha experiência pessoal, o desejo de Green de ser conhecido como o "homem do pulsional" se cumpriu, pois foram justamente suas ideias a respeito da teoria das pulsões proposta por Freud (e mais especificamente da pulsão de morte) o ponto de partida para o meu contato com sua obra.

No entanto, em que pese o respeito que se deve ao desejo do próprio Green, a partir de um contato mais amplo com sua produção científica, considero que ele é, também, o psicanalista contemporâneo que melhor articulou o pensamento de Freud com a psicanálise da atualidade, mostrando-nos, através de um pensamento complexo, a presença das ideias freudianas na compreensão dos períodos iniciais da vida psíquica1 e dos indivíduos fronteiriços, ou não neuróticos, considerados os pacientes típicos do nosso tempo. A obra de Green situa-se em uma dimensão metapsicológica que comporta duas noções complementares: um modelo de funcionamento da mente e um pensamento clínico.

 

II. As pulsões

Como o próprio Freud afirmava, a teoria das pulsões se constitui em uma mitologia da psicanálise (1933[1932]/1976), e a pulsão de morte é um conceito que não "foi bem aceito mesmo entre os psicanalistas" (Freud, 1937/1976, p. 246)2. Talvez por isso várias gerações de psicanalistas pós-freudianos considerem a pulsão como uma noção puramente biológica e de característica solipsista. Pois bem, a meu ver, as concepções de André Green contribuíram para realçar os aspectos psíquicos contidos no conceito de pulsão, a integração deste com a teoria das relações de objeto e, principalmente, reafirmar sua utilidade clínica.

Em primeiro lugar, ao destacar a ideia de Freud (1915/1976) de que a pulsão situa-se entre o soma e o psíquico, Green (1977/1990) a considera como um conceito que deve ser compreendido "em função de processos de transformação de energia e simbolização (força e sentido)" (p. 106, itálico do autor), e que seria, portanto, o primeiro elemento de um processo que se inicia no corpo para chegar ao pensamento. A pulsão é parte do fenômeno de representação, que Green (1990) considera como "quase uma sinonímia" com a psique: "Nada pode se construir sem tomar em consideração este amálgama da força e do sentido por meio da capacidade de representação" (Green, 2002/2010, p. 67).

Esse aspecto psíquico da pulsão se destaca em sua elaboração sobre a ação das pulsões de vida e de morte, elaboração esta que muito me auxiliou na integração entre as complexas ideias de Freud contidas, em primeira mão, no texto "Além do princípio de prazer" (1920/1976) e as dificuldades por mim enfrentadas no atendimento, há vários anos, de um paciente em quem predominavam as características do narcisismo negativo, descrito por Green em seu livro Narcisismo de vida, narcisismo de morte (1983/1988).

Segundo Green, a expressão das pulsões de vida e de morte caracteriza-se por processos de ligação e desligamento, respectivamente. O objetivo primordial da pulsão de vida é o que ele chamou de função objetalizante, isto é, a capacidade de criar uma relação com o objeto, bem como de transformar estruturas em objetos, "mesmo quando o objeto não está mais diretamente em questão" (Green, 1986/1988, p. 64). A função objetalizante depende da manutenção, no funcionamento psíquico, do investimento significativo. A transformação de estruturas, dando-lhes qualidades e atributos de objeto, vai ao encontro da ideia de que não só o ego pode se tornar objeto do id, mas que, até mesmo, o próprio investimento pode ser objetalizado (Libermann, 1999).

A pulsão de morte, pelo contrário, tem como objetivo exercer uma "função desobjetalizante" através do desligamento (Green, 1986/1988, p. 65). Desse modo, o ataque se dá não apenas contra a relação com o objeto, mas também contra o ego e contra o próprio investimento que havia sido objetalizado, isto é, contra a capacidade de buscar ligações. A destrutividade da pulsão de morte manifesta-se, então, pelo desinvestimento (Libermann, 1999).

Como se pode depreender, para Green, além de conter um caráter psíquico, a noção de pulsão é inseparável do conceito de objeto. A existência deste último não se define apenas por sua presença no real. Para estar "somente fora e também dentro" (Botella & Botella, 2002, p. 46), ele necessita ser animado pela investidura do sujeito: "eu diria que não há objeto, qualquer que seja ele, que não esteja investido e animado pelas pulsões" (Green, 2002/2010, p. 45).

Mas Green vai ainda mais longe, mostrando-nos toda a complexidade de seu pensamento na articulação entre as teorias das pulsões e das relações de objeto:

A construção do objeto leva retroativamente à construção da pulsão que constrói o objeto. A construção do objeto não se concebe senão a partir de que é investido pela pulsão. No entanto, quando o objeto se construiu na psique, isto conduz à construção da pulsão a posteriori, uma vez que a falta de objeto origina a concepção da pulsão como expressão inaugural do sujeito. A partir de então, surge a possibilidade de conceber o desejo ou a tomada de consciência da animação pulsional que deu nascimento ao desejo e ao objeto (Green, 2002/2010, p. 52, itálico do autor).

Green pensa que a inevitável separação entre sujeito e objeto é acompanhada de mudanças no interior do Eu. A figura da mãe como objeto primário de fusão se apaga, dando lugar para que o Eu faça seus próprios investimentos libidinais. No entanto, a imagem da mãe não desaparece por inteiro. Permanece, neste novo momento, como uma representação de afeto que traz segurança a respeito do amor do objeto e também a possibilidade de suportar sua ausência. Com isto, abre-se a possibilidade de criação de um espaço interno:

O objeto primário torna-se estrutura enquadrante do Eu, abrigando a alucinação negativa da mãe ... O espaço assim enquadrado, constituindo o receptáculo do Eu, circunscreve por assim dizer um campo vazio a ser ocupado pelos investimentos eróticos e agressivos sob a forma de representações de objeto. Este vazio nunca é percebido pelo sujeito, pois a libido investiu o espaço psíquico. Desempenha então o papel de uma matriz primordial de investimentos futuros (Green, 1980/1988, p 274).

 

III. Sobre limites e estados limítrofes

O trecho acima mencionado encontra-se no texto "A mãe morta" (1980/1988), e reflete, também, um tema que Green vinha abordando desde "O analista, a simbolização e a ausência no enquadre" (1975/1990) e "O conceito de fronteiriço" (1977/1990), e que foi uma tônica ao longo de sua obra: as noções de limites, estados limítrofes e pacientes com organizações não neuróticas. E a meu ver, as contribuições de Green a respeito de limites psíquicos e estados limítrofes constituem um exemplo vívido de sua visão sobre a utilidade clínica do conceito de pulsão.

Em primeiro lugar, Green, em seu modelo da mente, propôs a noção de um aparelho psíquico com uma estrutura de duplo limite: um que separa o interno do externo e outro que divide as instâncias do mundo interno. Essa concepção nos remete ao conceito de espaços, de territórios. Mas, segundo Green, tratar de espaços sem levar em conta o movimento que anima o psíquico é como se referir a espaços sem vida.

Por isso, em "Conceituações e limites", a primeira de uma série de conferências realizadas no Rio de Janeiro, em 1986, sob o título "Metapsicologia dos limites", Green afirma que a associação entre os pontos de vista tópico e dinâmico implica a noção de espaços animados por movimentos que circulam deslocando fronteiras. Segundo ele, "Aí está todo o problema da pulsão... Todo o problema da pulsão é que se trata de uma excitação que se põe em movimento e transpõe um espaço" (Green, 1990, p. 17).

Penso que essa ideia de Green está em consonância com o papel do id na teoria estrutural de Freud. Diferente da primeira tópica, em que predomina um modelo de energias ligadas (Libermann, 2010), o id se constitui em uma fonte perene de emissão de energia, "um caos, um caldeirão cheio de excitações transbordantes" (Freud, 1933/1976, p. 68). Ele "pulsa" de forma contínua, demandando da estrutura psíquica um esforço constante para dar tramitação tanto às energias que se esforçam em prol da investidura quanto às que lutam pelo desligamento.

A exigência de trabalho da psique encontra uma interessante síntese nas ideias de Bernard Chervet (2009): frente às tendências de redução ao inorgânico (pulsão de morte) e de extensão ao infinito (Eros), intervém um imperativo processual, isto é, a realização de operações que encaminham a economia psíquica para a via progrediente, levando até a consciência.

Em se tratando de estruturas neuróticas, podemos considerar que existem fronteiras melhor consolidadas, com o conflito básico centrado na censura aos desejos; na sexualidade e na repressão como mecanismo psíquico estruturante que funda o inconsciente reprimido.

No caso de pacientes com estados limítrofes, há uma dificuldade de lidar com os conflitos naturais do processo de diferenciação sujeito-objeto, criados pelo desejo por um outro que nunca poderá ser totalmente controlado. As fronteiras (entre mundo interno e mundo externo e entre as instâncias intrapsíquicas) que asseguram a subjetividade do sujeito são muito lábeis. Há um temor à loucura, e a impossibilidade de pensar é uma forma de refúgio para uma identidade vazia, mas que é uma identidade. O sujeito não se sente em condições de enfrentar os conteúdos que vêm do mundo interno com um potencial de angústias de desestruturação.

Conforme André Green, frente a esses pacientes, "estamos como diante de uma espécie de placa giratória, onde o limite de um lado ou de outro está de acordo com a evolução da relação de objeto transferencial" (Green, 1990, pp. 20-21).

Aqui não se trata do "traço mnêmico que pede para ser reinterpretado" (Lesourne, 2002/2005, p. 142), ligado ao conflito sexual, cuja emergência traria um excesso desencadeador da angústia de castração e da consequente repressão.

Na zona dos estados limítrofes, o "excesso" decorre de uma problemática de sobrevivência psíquica, acompanhada pela angústia de desintegração da qual o sujeito se defende com mecanismos mais primitivos, como cisão e desmentida. De acordo com César e Sara Botella (2002), a questão aqui envolvida é a incapacidade de transformação:

Trata-se daquilo que a neurose infantil não pode fazer entrar em sua rede de investimentos e contra-investimentos, de representações e de conflitos; de uma zona de sofrimentos psíquicos que ultrapassa as possibilidades de figuração, remetendo assim a perdas de objeto não representáveis, não elaboráveis em um trabalho de luto; uma zona em que a violência dos afetos liberados desorganiza o psiquismo (p. 94).

O contato com essas abordagens metapsicólogicas sobre os pacientes limítrofes foi outro momento de encontro, de integração entre a clínica e a teoria, que tive com André Green.

Dessa integração que emana da obra de Green gostaria de destacar alguns aspectos que contribuíram para a compreensão e para minha prática analítica no atendimento a pacientes com organizações limítrofes.

Em primeiro lugar, nosso homenageado foi um dos psicanalistas que contribuiu para transformar o conceito de casos-limites, conceito este bastante influenciado pelas descrições psiquiátricas que consideravam essas situações como um limiar de doenças psicóticas. Aprendi com Green que pacientes com estados limítrofes não são pessoas que estão, necessariamente, à beira de uma psicose, e sim indivíduos com uma organização "não somente autônoma, mas relativamente estável" (Green, 1990, p. 12) que, na grande maioria dos casos, não desenvolverão uma psicose franca.

Um segundo aspecto a considerar é que Green ajudou-me a entender um comportamento desnorteante desses pacientes tanto nas sessões analíticas quanto em suas relações fora do setting. Frente à sensação permanente de que não são compreendidos, de que não se consideram acolhidos ou atendidos em suas necessidades, de seu lamento com a impossibilidade de fazer parte de outros aspectos da vida do analista, causava-me surpresa e desconcerto a rejeição evidenciada (quer pela agressividade, quer por uma angústia extrema) quando, em alguns momentos, havia uma mobilização afetiva no paciente ocasionada pela sensação de compreensão e de proximidade com o analista - reação esta que, em minha experiência, não se podia entender em sua totalidade no âmbito do sentimento inconsciente de culpa, contido no fenômeno da reação terapêutica negativa, descrito por Freud.

Para compreender essa questão, André Green propõe a expressão "dupla angústia contraditória" (Green, 1990, p. 13), que abarca tanto a angústia de separação quanto a angústia de intrusão3. Este é um drama vivido por esses pacientes: como encontrar a distância ideal que evite a sensação de abandono (e o luto intenso e interminável), por um lado, e por outro, a vivência de ser "invadido" pelo objeto, sentido como ameaçador à própria identidade do sujeito?

Em função da labilidade de seu senso de identidade, experimentam um dilema permanente: desejam uma aproximação que lhes dê a sensação de estar acompanhados ao mesmo tempo em que procuram um distanciamento que os proteja contra a ameaça de invasão que uma relação significa para eles.

Na relação psicanalítica, essa oscilação representa um desafio para o analista. No que se refere a nossa capacidade de acolhimento, sentimo-nos, muitas vezes, como em uma espécie de montanha-russa, em que um momento de aproximação pode representar apenas a antessala de um movimento em queda livre, acompanhado da sensação de uma ameaça à própria estabilidade psíquica.

A intensidade desse dilema pode ser avaliada se levarmos em conta o paradoxo em relação à presença ou não do objeto na realidade:

... especialmente em relação aos casos-limites não basta que o objeto esteja presente para que não haja angústia de separação - eu diria até que a angústia de separação atinge seu máximo quando o objeto está presente - e que, da mesma forma, a angústia de intrusão não se manifesta de modo predominante quando o objeto está presente, mas, precisamente, quando o objeto não está presente (Green, 1990, p. 13-14).

Esse paradoxo relaciona-se com a vivência interna da dualidade presença/ausência do objeto, a qual se estrutura nas relações primárias e está associada às experiências de separação que, nos pacientes limítrofes, estão ligadas à sensação de que só o negativo é real:

Depois de uma fase prolongada mais do que o devido, a ausência do objeto equivaleria a uma perda, ocasionando que seja indiferente que o objeto esteja presente ou não, uma vez que a realidade, a partir de então, será identificada com a negativização do objeto (Green, 2003/2005, p. 294, itálico do autor).

O processo de negativização do objeto descrito acima acarreta a formação de um espaço vazio que, a meu ver, podemos considerar como uma espécie de antítese da estrutura enquadrante citada alguns parágrafos acima.

Diferentemente do "campo vazio a ser ocupado pelos investimentos eróticos e agressivos ... nunca percebido pelo sujeito, pois a libido investiu o espaço psíquico" (Green, 1980/1988, p. 274), a negativização acarreta a formação de um espaço em branco diferente, fruto das tendências de desobjetalização, ou desinvestidura (que Green considera uma expressão da pulsão de morte), que poderá ser ocupado por sentimentos crônicos de vazio e, muitas vezes, de ódio à vida e aos outros, gerando outra característica associada aos estados limítrofes, a lógica da desesperança.

A dificuldade em manter laços afetivos acarreta uma insuficiência de representações na mente do indivíduo, gerando uma angústia intensa, que pode levar o sujeito a ocupar o espaço vazio com manifestações concretas. Existe permanentemente a possibilidade de um transbordamento, podendo a atividade simbólica, essencial à construção do psiquismo, ser substituída pelo alucinatório ou por manifestações voltadas ao corpo ou ao ato. O pensamento perde seu lugar!

 

IV. Considerações finais

André Green faz parte do movimento psicanalítico contemporâneo que, nas últimas décadas, tem proporcionado não apenas a compreensão de pacientes com estruturas não neuróticas, em que um ego frágil e fronteiras lábeis demandam uma grande parte da energia para enfrentar os limites entre o externo (objeto) e o interno (pulsão), como também o acesso a áreas mais primitivas do psiquismo de pessoas com estruturas neuróticas.

Na condição de participante ativo dessas transformações, André Green mostrou-nos, ao longo de sua obra, duas características que gostaria de destacar. Primeiro, o tributo permanente às fontes de seu pensamento, evidenciado, sobretudo, por seu grande reconhecimento e intensa ligação com a obra de Freud, mas também pelas inúmeras referências a outros autores, marcadas principalmente pela importância que atribui a Lacan, Bion e, em especial, Winnicott.

Segundo, a busca constante de formulações teórico-clínicas em consonância com a psicanálise contemporânea e a do porvir, busca essa que, aliada a sua notável independência intelectual, o moveu a valorizar, questionar, confrontar e propor outras compreensões de conceitos presentes tanto na obra de Freud quanto na de todos os demais autores que influenciaram seu pensamento.

As ideias de André Green sobre os estados limítrofes, fruto de seu enorme interesse pelos desafios da clínica, evidenciam um campo mais amplo do que a abordagem de uma condição psicopatológica.

A meu ver, a importância de sua obra situa-se em uma dimensão metapsicológica que abrange um modelo de funcionamento da mente com formulações originais e um método clínico que propõe novas formas de pensar o enquadre psicanalítico.

Do ponto de vista teórico, suas concepções a respeito da potência estruturante dos complexos de castração e edípico, bem como os conceitos sobre as formas de atuação das pulsões, o afeto, o duplo limite e a estrutura enquadrante, têm como base um elemento fundamental para Green: o indissociável par pulsão/objeto. O psiquismo não está baseado predominantemente no polo do sujeito, tampouco no vértice exclusivo do objeto. As vicissitudes da vida psíquica, decorrentes dos inevitáveis encontros e desencontros das pulsões e seus objetos, situam-se na interação entre o intrapsíquico e o intersubjetivo (Green, 2002/2010).

No que se refere à prática clínica, penso que vale a pena "escutar", por assim dizer, o próprio Green:

O pensamento clínico forja conceitos que reproduzem as razões do inconsciente, a diversidade de respostas reclamadas pelo avanço deste, suas transformações em "realizações" alucinatórias, em atuações, somatizações e racionalizações, sob o efeito de contrainvestiduras que põem em ação a desinvestidura etc. Convém referir a clínica não só àquele que sofre, mas também ao encarregado de escutar esse sofrimento, graças a uma sensibilidade particular: o analista. Implica, pois, examinar forçosamente as questões relativas à transferência e à contratransferência. Hoje em dia, a psicanálise propõe o problema das modificações e variações dos quadros clínicos sobre os quais se edificou a obra de Freud, seguida pela de seus sucessores, que introduziram enfoques diferentes dos dele (e, frequentemente, diferentes entre si), aportando inovações na maneira de compreender o discurso dos pacientes e dar-lhes respostas ignoradas por Freud. Mas o conjunto segue gerando sentido, ainda que seja difícil de reunificar (2002/2010, p. 14).

A formulação do que ele denomina "o pensamento clínico" evidencia sua preocupação em integrar a teoria e a clínica. Sua busca é por um modelo de enquadre psicanalítico que compreenda os movimentos pulsionais e a importância da interação paciente-analista (o intersubjetivo à luz do intrapsíquico), e que abarque as modificações da clínica, buscando maneiras diferentes de compreender uma ampla variedade de pessoas para quem, até recentemente, não se considerava indicado o tratamento psicanalítico.

Além disso, essas palavras nos mostram que, a par de sua cultura em psicanálise, e em muitas outras áreas do conhecimento humano, e de uma grande capacidade de formulação teórica, Green caracterizou-se, a meu ver, por uma profunda ligação com a clínica psicana-lítica. Segundo ele, as formulações teóricas podem chegar a um nível tal que as distancie da clínica. "Não obstante, sem dúvida se reconhece o pensamento clínico quando a elaboração teórica desperta associações que se referem a tal ou qual aspecto da experiência psicanalítica no leitor" (2002/2010, p. 13).

Nesse sentido, seus escritos carregam uma contradição interessante. Em que pese a inexistência quase total de exemplos clínicos, vários de seus textos, em minha opinião, emanam uma experiência clínica que permite visualizarmos muitas das situações vividas no atendimento cotidiano aos pacientes.

Para finalizar, gostaria de destacar as ideias de Jacques Derrida, as quais me parecem apropriadas para homenagear André Green e sua obra, através da qual ele nos mostra sua dedicação constante ao pensamento psicanalítico, a busca por ideias e práticas que contribuam para a continuidade e a renovação da psicanálise - enfim, uma postura permanente de tributo às origens e legado ao presente e ao futuro:

É-se responsável perante aquilo que vem antes de si, mas também ao que está por vir, e, portanto, perante a si mesmo ... Trata-se sempre de uma espécie de anacronia: ultrapassar em nome de quem nos ultrapassa; ultrapassar o próprio nome! Inventar seu nome, assinar de maneira diferente, de uma maneira a cada vez única, mas em nome do nome do legado, caso seja possível! (Derrida & Roudinesco, 2001/2004, pp. 14-15, itálico do autor).

 

Referências

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Correspondência:
Zelig Libermann
Avenida Taquara, 110/302
90460-210 Porto Alegre, RS
Tel.: (51) 3330-4878
zliber@terra.com.br

Recebido em 10.8.2013
Aceito em 27.8.2013

 

 

1 Como escrevi em um trabalho anterior, "embora estejamos habituados a pensar esses desenvolvimentos da psicanálise ligados predominantemente a autores pós-freudianos tais como Melanie Klein, Bion e Winnicott, para ficar com os mais conhecidos, considero que podemos encontrar também na obra de Freud delineamentos dessas zonas psíquicas 'aquém' da representação" (Libermann, 2010, p. 42).
2 Tradução minha, assim como nas demais citações de obras consultadas em espanhol.
3 Green assinala que o primeiro psicanalista a descrever a angústia de intrusão foi Winnicott: "se bem a angústia de separação era conhecida desde Inibição, sintoma e angústia, a de intrusão foi individualizada mais tarde. Winnicott descreveu o que chamou de angústia de invasão (impinging)" (2003/2005, p. 213).

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