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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.47 no.3 São Paulo July/Sept. 2013

 

ARTIGOS TEMÁTICOS: LEGADOS

 

O afeto no pensamento clínico de André Green

 

Affection in André Green's clinical thought

 

El afecto en el pensamiento clínico de André Green

 

 

Dominique CupaI; Hélène RiazueloII; Tradução Claudia Berliner

IMembro da Sociedade Psicanalítica de Paris (SPP). Professora de psicopatologia psicanalítica da Universidade Paris x Nanterre
IIMembro do Instituto de Psicanálise da Sociedade Psicanalítica de Paris (SPP)

Correspondência

 

 


RESUMO

André Green instala os fundamentos de seu pensamento sobre o afeto a partir de uma crítica nocional dos textos freudianos e pós-freudianos, mostrando, assim, sua preocupação em se inscrever numa história, sem deixar de insistir no aspecto estrutural da questão. Procura, também, propor uma alternativa ao modelo lacaniano, explorando os recursos consecutivos à exclusão, por Lacan, do afeto no seio de sua teoria. As autoras retomam os principais componentes do afeto segundo Green, em particular seu aspecto insconsciente, para em seguida mostrar que seu trabalho de pensamento clínico lhe permite precisar o funcionamento do afeto. Foram escolhidos três exemplos importantes no pensamento clínico de André Green: a alucinação negativa da mãe, a paixão e os estados de indiscriminação afeto/representação.

Palavras-chave: afeto; pensamento clínico; inconsciente; alucinação negativa; paixão; estados de indiscriminação.


ABSTRACT

André Green establishes the foundations of his thoughts on affection from a critique of the notions of Freudian and Post-Freudian texts, showing, as such, his concern in fitting into a story, while insisting on the structural aspect of the matter. He also proposes an alternative to the Lacanian model, exploring the resources consecutive to the exclusion, by Lacan, of affection in the heart of his theory. The authors resume the main components of affection according to Green, specially its unconscious aspect, in order to show that his work in clinical thought allows him to specify the functioning of affection. Three important examples of André Green's clinical thought were chosen: the mother's negative hallucination, passion and the cases of indiscrimination of affection/representation.

Keywords: affection; clinical thought; unconscious; negative hallucination; passion; states of indiscrimination.


RESUMEN

André Green instala los fundamentos de su pensamiento sobre el afecto a partir de una crítica nocional de los textos freudianos y pos freudianos, mostrando, de esta forma, su preocupación para inscribirse en una historia, sin dejar de insistir en el aspecto estructural del tema. Busca también proponer una alternativa al modelo lacaniano, explotando los recursos posteriores a la exclusión, por Lacan, del afecto en el seno de su teoría. Las autoras retoman los principales componentes del afecto de acuerdo con Green, en particular su aspecto inconsciente, para, en seguida, mostrar que su trabajo de pensamiento clínico le permite precisar el funcionamiento del afecto. Fueron escogidos tres ejemplos importantes en el pensamiento clínico de André Green: la alucinación negativa de la madre, la pasión y los estados de indiscriminación afecto/representación.

Palabras clave: afecto; pensamiento clínico; inconsciente; alucinación negativa; pasión; estados de indiscriminación.


 

 

Além disso, o analista não escuta apenas com sua orelha - ainda que fosse com a terceira -, escuta também com o corpo inteiro. É sensível não só às palavras, mas também às entonações da voz, às suspensões do relato, aos silêncios e a toda a expressão emocional do paciente. Sem a dimensão do afeto, a análise é uma empresa vã e estéril. Sem partilhar das emoções do paciente, o analista se reduz a um robô-intérprete, que faria melhor em mudar de ramo antes que seja tarde demais
(Green, 1992, p. 42).

Essa recomendação indica toda a importância que André Green concede ao afeto. Ela não é apenas teórica; está também no cerne de sua concepção da prática analítica. Ademais, representa muito bem o homem que ele foi: "o homem do afeto", como o chamou Duparc (1996).

O debate epistemológico central da psicanálise na França nos anos de 1960 e 1970 foi entre história e estrutura. Green participou dele (1963, 2000). "Nossa abordagem será histórica e estrutural numa perspectiva crítica" (1973, p. 21, itálicos do autor), escreve ele, tomando posição nesse debate e definindo, dessa maneira, o método que utilizará em toda a sua obra. Portanto, Green vai instalar os fundamentos de seu pensamento no afeto a partir de uma crítica nocional dos textos freudianos e pós-freudianos, mostrando, assim, sua preocupação em se inscrever numa história sem deixar de insistir no aspecto estrutural da questão. Trata-se também, muito claramente, de propor uma alternativa ao modelo lacaniano, explorando os recursos consecutivos à exclusão, por parte de Lacan, do afeto no seio de sua teoria.

O presente trabalho deixará de lado a abordagem histórica proposta por Green, centrando-se na sua própria teorização, e essencialmente em seu pensamento clínico sobre o afeto. Para Green, o pensamento clínico é um ponto de vista no qual a transferência e a contratransferência estão incluídas; seu campo de observação está muito rigorosamente limitado ao tratamento analítico.

 

O afeto, um conceito fundamental: definições do afeto segundo André Green

O afeto constitui, portanto, um dos eixos centrais da reflexão de Green, para quem ele é um dos pilares essenciais do aparelho teórico psicanalítico. O modelo teórico em que o afeto se insere provém, em Freud, de uma clínica psicanalítica das neuroses de transferência. A clínica atual é bem diferente: funcionamentos psicossomáticos e estados-limite confrontam o psicanalista com afetos de que a metapsicologia freudiana não dá conta. Partindo dessa nova clínica, haverá a adaptação de um novo modelo teórico às neuroses clássicas e não se correrá, então, o risco de modificar o conjunto da teoria e da prática psicanalíticas? São essas as perguntas que Green se faz no início de sua primeira obra sobre o afeto: O discurso vivo (1973).

A pesquisa de Green começa em função desta primeira definição:

Portanto, para deixar as coisas claras, designaremos por afeto um termo categorial que agrupa todos os aspectos subjetivos que qualificam a vida emocional em sentido amplo, compreendendo todas as nuanças que a língua alemã (Empfindung Gefühl) ou a língua francesa (emoção, sentimento, paixão etc) reúnem sob esse termo. Afeto deverá, portanto, ser entendido essencialmente como um termo mais metapsicológico que descritivo (1973, p. 20).

Green distingue duas subdefinições do afeto, aparentemente contraditórias. Primeiro, com Freud, o afeto designa um montante, uma quantidade de excitação. É uma afetação energética no sentido de que a carga de afeto (tal como uma carga elétrica) é distribuída pelas marcas mnêmicas. Podem-se identificar dois destinos do montante: ou ele se esgota e retorna ao estado não ligado, ou então é submetido à ligação, que exige, previamente, a redução quantitativa em prol da conservação do prazer, isto é, da qualidade. A natureza qualitativa do afeto é, pois, distinta de seu aspecto quantitativo, mas quantidade e qualidade não podem ser separadas.

Em segundo lugar, Green vai mais longe, o afeto pode ser definido diferenciando-se uma descarga orientada para o interior do corpo, que compreende percepções de movimentos internos e sensações de prazer-desprazer, que conferem ao afeto sua especificidade. Divide-se em duas vertentes, uma corporal e outra psíquica, que, por sua vez, está dividida em dois: uma atividade de auto-observação da mudança corporal, resultante de uma atividade especular sobre o corpo, e um aspecto qualitativo puro: o prazer-desprazer. O afeto aparece, portanto, como uma experiência corporal e psíquica, na qual a primeira é condição da segunda. A experiência corporal se dá por ocasião de uma descarga interna, a qual revela o sentimento de existência do corpo, que sai de seu silêncio.

O afeto permite que o sujeito tome consciência de seu corpo na medida em que é proprietário de um objeto, objeto este que lhe escapa. A quantidade está em jogo aqui, mas a ela é preciso acresentar a referência à qualidade, a gama do prazer-desprazer, pois, sem esta, falta a essência da experiência afetiva. O afeto se desenvolve, se transforma, prazer e desprazer se confundem, inibem um ao outro, substituem-se etc.

O princípio de prazer-desprazer como dicotomia primeira é concebido por Green como princípio de simbolização primária, que possibilita uma primeira categorização da experiência afetiva e, portanto, como um tempo de estruturação1.

É importante notar aqui que, para Green, a diferença essencial entre representação e afeto decorre sobretudo de seu modo de ligação. As representações se ligam entre si por concatenação, e o afeto, por difusão. Portanto, o afeto só pode se ligar à cadeia das representações na medida em que tenha algum valor representacional.

 

O afeto toma a palavra

É a André Green que devemos o destaque para a representância do afeto. O autor constata que, se o afeto tem uma orientação interna, ele também está orientado para o outro. É a um só tempo mensagem para o interno, como vimos anteriormente, e mensagem que pode ser endereçada.

Green concorda com a teoria lacaniana da cadeia significante, cujo processo de estruturação é produtor de sentido, cada significante remetendo a um outro significante. A linguagem remete, pois, à língua do linguista, composta de elementos homogêneos. Para o psicanalista, porém, a linguagem não é só isso: Green insiste na dimensão de heterogeneidade do inconsciente e de suas manifestações. Nisso, discorda de Lacan.

Assim sendo, Green prefere o termo "discurso". Este é, para ele, o lugar "onde a concatenação recebe as impressões provenientes de significantes heterogêneos (pensamentos, representações, afetos, atos, estados do corpo próprio), de investimentos energéticos variáveis, que exprimem estados de tensão qualitativa e quantitativamente diferentes e que tendem à descarga". Green introduz no discurso o afeto como significante, forma semântica primária, e a energética dos investimentos, que lhe dá sua vivacidade afetiva: o discurso é "vivo". A energética afetiva faz o discurso viver, ela o nutre, mas também o desorganiza até a ininteligibilidade, o indizível do retorno "da matéria corporal" na linguagem. Assim, o afeto é, na bela formulação de A. Green, "a carne do significante e o significante da carne" (1973, p. 332).

 

O afeto inconsciente

Green insistia muito nesse aspecto polêmico do afeto. A questão de saber o que é um afeto inconsciente é delicada, pois, quando inconsciente, o afeto perde sua "qualidade", que, no entanto, é o essencial do que permite reconhecê-lo. Em outras palavras, o afeto inconsciente é inconcebível para a consciência, porque a qualidade do afeto só pode ser compreendida em relação à consciência. Green se apoia no texto da Metapsicologia, em que Freud escreve:

Devemos considerar, além da representação, uma outra coisa que representa a pulsão e que experimenta um destino de recalcamento que pode ser totalmente diferente do da representação. Para designar esse outro elemento do representante psíquico, tem sido adotado o nome de montante de afeto (1915/1968, pp. 54-55)2.

Já não parece possível, então, diz Green, afirmar que só o representante psíquico é afetado pelo recalcamento - seu montante de energia psíquica também é.

Na sua teoria do funcionamento pulsional, Green propõe que o inconsciente seja constituído por uma espécie de "células" feitas de afetos que se ligam a representações de coisa, que lhes dão uma forma. Assim, por exemplo, o representante psíquico (sede) vai se ligar à representação de coisa e dar um representante da representação (bebida fresca) e o afeto de prazer. O recalcamento pode se opor a esse investimento.

Para Green, o inconsciente é o lugar onde se dá a afinação entre afeto e representação de coisa, afeto que será parte integrante da roteirização inconsciente das fantasias originárias, sendo o inconsciente "essa outra cena" onde "se estabelece a relação entre afeto e fantasia" (1973, p. 234).

Passemos ao pensamento clínico. Eis três exemplos paradigmáticos de clínica do afeto trabalhados por Green. A alucinação negativa e a alucinação negativa da mãe, assim como a paixão e a indiscriminação do afeto são aspectos centrais da clínica da vida afetiva, segundo Green.

 

O afeto, a alucinação negativa e a alucinação negativa da mãe

A alucinação negativa da mãe é uma conceituação greeniana intimamente ligada à da estrutura enquadrante. Em O discurso vivo (1973), Green vincula alucinação negativa e afeto partindo do estádio do espelho, tal como proposto por Lacan.

Na esteira de Lacan, ele lembra que, no estádio do espelho, o encontro com a imagem é acompanhado de um afeto, a famosa "assunção jubilatória" da criança.

A clínica da experiência do espelho, tal como se apresenta na alucinação negativa do sujeito, mostra uma ausência de imagem ali onde esta deveria aparecer. A única coisa visível é o enquadramento do espelho sobre o qual nenhuma marca se inscreve. O sujeito vive sua própria ausência, e a falta de imagem afeta o narcisismo. Essa ausência de representação do sujeito está associada a um aumento do afeto de angústia, vinculável à angústia da perda de objeto. O afeto é vivido com uma intensidade máxima, sem poder se apoiar em nenhuma representação, pois o espelho só devolve seu reflexo. Essa moldura vazia evoca um outro vazio, o vazio do Outro.

Nessa experiência, o afeto de angústia traduz o esforço do Eu para conseguir a qualquer preço uma representação de si, uma imagem para além do espelho, do outro lado do espelho. O sujeito tenta recuperar sua própria imagem perdida e o impossível reencontro suscita a angústia. Aqui, a clivagem entre representação e afeto é total, assim como a cisão entre a representação de si interna e sua ausência de projeção no espelho. Por isso, na alucinação negativa, o afeto possui, sozinho, todo o poder da representação. Ocupando lugar de representação de si, ele é ao mesmo tempo constatação do que falta no seu lugar e surgimento do horror que acompanha essa constatação.

A função da alucinação negativa de um ponto de vista histórico-genético é retomada por Green em seu trabalho sobre a "alucinação negativa da mãe" (1983, pp. 125-128, 245-247; 1993, pp. 280-289; 2002a, pp. 291-293). Ela permite um aprofundamento da alucinação negativa da imagem no espelho. Trata-se, então, do objeto materno como estrutura enquadrante do Eu contendo a alucinação negativa da mãe. Com efeito, quando da separação primária entre a mãe e seu bebê, a mãe se apaga como objeto primário, cedendo lugar aos investimentos próprios do Eu que o constituem. O apagamento produz a alucinação negativa, que mobiliza o Eu em busca de representações. Nem por isso o objeto materno desaparece. Ele se torna "estrutura enquadrante" sobre um fundo de alucinação negativa do objeto primário. As representações-afetos da mãe veem-se, assim, profundamente modificadas. Já não são essas "representações-enquadres" portadoras de um misto mãe-bebê e ligadas a afetos representantes da necessidade vital da mãe; já não são essas quase alucinações afetivas dos estados de satisfação e de desamparo. Tornam-se representações da mãe, da criança, diferenciadas.

Contudo, notemos que o objeto materno só pode se transformar em estrutura enquadrante quando é suficientemente amoroso e, portanto, suficientemente sólido para ser continente dos conteúdos representativos. O enquadre garante a presença da mãe na sua ausência, ele sustenta uma ausência que pode, então, ser preenchida pelos investimentos eróticos e agressivos de representações do Eu e de representações de objeto. A estrutura enquadrante da mãe desempenha, assim, o papel de uma matriz primordial dos investimentos. Advento do sujeito possibilitado pela diferença mãe/filho, ela mesma possibilitada pela Lei do pai e pela diferenciação dos afetos primários ligados ao corpo da mãe e dos afetos secundários ligados à Lei do pai.

De um ponto de vista estrutural, a alucinação negativa é inicialmente considerada por Green (1990) uma "representação da ausência de representação", que se revela clinicamente por um excedente de afeto. Trata-se de uma condição que torna possível a representação. Assim, a alucinação negativa da mãe torna possíveis as condições da representação. Delimita, com efeito, um espaço vazio, como numa banda de Moebius, cuja formação dá conta precisamente do mecanismo do duplo retorno em operação, tal como Green o descreve na formação do Eu.

 

A loucura privada ou o afeto representante da paixão

Para André Green (1990), a paixão está do lado do "padecer", do "suportar" e do "sofrer"; "a alma é afetada" e "o corpo abalado" (itálico nosso).

Freud não trabalhou a paixão, não foi até a insânia passional que surge brutalmente com a pulsão; ele minimizou a loucura pulsional. Por exemplo, não viu a loucura transferen-cial de Dora, que a levou a passar ao ato.

Para Green, a paixão é alienação do sujeito a seu objeto, sendo o objeto da paixão único e insubstituível. Escreve ele:

Único e insubstituível: esses dois adjetivos que surgem naturalmente sob a pena quando se fala do objeto de amor, ou do objeto da paixão, Freud os utiliza a cada vez que tenta descrever a primeira relação da criança com sua mãe (1990, p. 164).

A mãe é insubstituível e única para a sobrevivência e os primeiros prazeres da criança, sendo que os cuidados maternos constituem o apoio do bebê, que vai se metaforizar em paixão quando o objeto que se tornou condição necessária e suficiente da vida já não tem condições de garantir essa função de satisfação das necessidades vitais. Green afirma, então, que

... os objetos da paixão devem ser procurados do lado dos objetos parciais - tomados do corpo da mãe ou do corpo do sujeito - ou dos objetos totais: as imagos parentais. As angústias arcaicas são efeito das paixões narcísicas, ali onde nenhuma diferenciação é possível entre Eu e objeto, ali onde amor e destrutividade afetam de um só fôlego o Eu e o objeto (1990, pp. 169-170, itálico do autor).

Em outras palavras, os primeiros objetos da pulsão são os objetos da paixão, com a criança padecendo da falta de objeto, loucura interna, privada. Loucura pelo objeto, mas também loucura do objeto, loucura das pulsões do objeto. Na esteira de D. W. Winnicott, Green descreve uma loucura materna, cujo objeto, seu filho, é "único e incomparável". Basta olhar uma mãe sensível, quase alucinatoriamente, aos "sinais de seu filho", logo, aos afetos de seu bebê, para descrever a paixão da mãe. Amor materno que flutua entre os excessos de gratificação e os excessos de frustração, e que, assim, dá ou deixa de dar a seu pequenino a possibilidade de regular sua própria atividade pulsional. É o pai que garante a evolução dessa paixão, pela separação da qual é o artífice.

Na psicose, a paixão materna se manifesta por uma atividade pulsional intensa, e o papel enquadrante, continente, de espelho que ela deveria cumprir não consegue compensar o afluxo pulsional. Nesse caso, a criança tem de lutar em duas frentes: a de sua própria loucura interna, atividade pulsional interna, mas também contra as excitações pulsionais externas.

No próprio cerne de seu trabalho "Passions et destins des passions" [Paixões e destinos das paixões] (in Green, 1990), Green introduz uma nova definição do afeto. De fato, a pulsão, toda pulsão, tem por único objeto-fonte o objeto passionalmente investido que é a mãe. A paixão constitui a carga, proveniente do corpo da criança em estado de "passivação", submetido aos cuidados maternos, montante de afeto ligado a essa dependência definitiva da mãe. O afeto se torna "representante da paixão" (1990, p. 189). A paixão afeta o sujeito, mas o afeto é ele próprio paixão, representante da paixão, afeto-fonte, representação do primeiro encontro. Nem é preciso dizer que, nesse caso, o afeto conserva todo o seu valor de simbolização - que ele conserva seu estatuto tópico inconsciente.

Green vai propor considerar os diferentes quadros clínicos como sistemas de transformação da paixão inconsciente, como loucura partilhada pela mãe e pelo filho, modelo este que permite trabalhar ao mesmo tempo do lado das estruturas neuróticas e do lado das estruturas psicóticas.

A paixão está presente em toda transferência. Ao reconhecê-la, mesmo nas neuroses mais banais, momento mais ou menos passageiro mas crucial, estamos mais capacitados para transformá-la pela análise, ou seja, para que Eros possa prevalecer sobre Thanatos.

Isso exige que o analista não feche mais a porta para essa loucura, que ele consinta em acolhê-la e em compartilhá-la analisando-a. Para isso, é preciso reconhecer todo o alcance do afeto. Ou seja, abrir terreno para os afetos em seus aspectos menos ordinários e menos racionais, mais contraditórios e mais complexos. Submeter-se à carga da paixão da transferência é sem dúvida extenuante, é o preço a pagar, pelo analista, para o andamento da análise. Nem é preciso dizer que a contratransferência está aqui na linha de frente (1990, p. 177, itálicos do autor).

 

Os estados de indiscriminação afeto/representação

Em "Sobre a discriminação e a indiscriminação entre afeto e representação", que foi objeto de uma apresentação em Santiago em 19993, Green interroga a clínica dos estados não neuróticos a partir da dificuldade de discriminar, nesses pacientes, o que se relaciona com as representações e o que se relaciona com os afetos. Os afetos percebidos pelo paciente e, contratransferencialmente, pelo analista parecem indiscerníveis, e isso associado a uma confusão de afetos tingida de ambivalência. A transferência é ao mesmo tempo exigente e temida, e as reações negativas concernem tanto às manifestações diretas quanto às resistências. O paciente oscila entre um estado de paralisia do pensamento e de incomunicabilidade do que sente, sem conseguir nem verbalizar nem identificar seus afetos, que, no entanto, o subjugam. Do lado do analista, Green evoca "estados emocionais pantanosos" ligados a esse universo representacional difícil de apreender, particularmente pobre de conteúdo. O sentimento de impotência domina e o analista tem a impressão de não tocar nem os aspectos inconscientes nem a história do paciente, pois o que é proposto a este último no tocante a seus afetos não tem qualquer repercussão.

Nesses pacientes, tudo se passa "como se, pelo relaxamento do controle dos pensamentos, das fantasias e dos afetos, a associação livre representasse um risco demasiado grande de acarretar seja uma desorganização importante, seja a queda em um estado de dependência sem saída" (2002b, p. 223), e os processos psíquicos organizados pelos processos primários não levam a uma diferenciação entre afeto e representação.

Retomamos aqui, em linhas gerais, as principais particularidades clínicas desses estados, partindo do quadro frequentemente esboçado por Green. Ao que tudo indica, o que os caracteriza é sobretudo o sentimento de transbordamento pelos afetos de angústia, de depressão, de impotência, de raiva e de inveja. O mais doloroso parece ser a impossibilidade de lutar contra essa invasão. O Eu se defende buscando a insensibilidade, que pode ir até a inafetividade. O que mais impressiona diz respeito às tentativas de bloqueio do processo afetivo como um todo, que põem em funcionamento uma defesa radical, "o imobilismo mental", morte psíquica, na qual qualquer vitalidade pode desencadear afetos destrutivos ou auto-destrutivos. Ante a possibilidade de um encontro, o corpo parece se apagar, com o sujeito se desencarnando progressivamente ou podendo ser invadido pelo afeto, sentindo-se ameaçado de explosão. As fantasias de prazer são vividas como "cataclísmicas", com um risco de desaparecimento dos protagonistas: se uma certa distância não for mantida, o sujeito perde o objeto perdendo-se a si mesmo. No entanto, a fantasia fusional predomina e o que a ela se opõe leva a uma ferida narcísica intolerável.

O irrepresentável pode invadir essas análises e os fenômenos de alucinações negativas estão muito presentes. Os afetos sem sentido e as representações que pedem um fundamento externo para serem validadas constituem o "aglomerado psíquico" no qual a indiferencia-ção representação/afeto é sinal de um sofrimento sem fundo. O "compartilhamento" afetivo (Parat, 1995) com o analista permite ao paciente, por meio das identificações, reconhecer seus afetos e conferir-lhes um sentido.

As passagens ao ato notáveis relacionam-se, sobretudo, com comportamentos de fuga e de evitação, com a atividade pulsional inconsciente passando pela satisfação masoquista atrelada ao objeto interno, de que o paciente não pode se separar. Green explica esse funcionamento por meio dos afetos destrutivos poderosos que constituem "como que o fundo duplo do trabalho psíquico" (2002b, p. 229). Essa destrutividade endereça-se ao objeto de que o paciente é, internamente, totalmente dependente. O paciente, consciente de sua des-trutividade interna, sente violentamente seus afetos negativos.

Nesses casos, o estatuto do objeto nunca tem uma forma aceitável, a transicionalidade não existe, e o paciente luta permanentemente contra um perigo de perda, seja a perda do objeto, de suas representações, de seus investimentos, ou a perda do investimento do próprio Eu. A compreensão desses estados pode se apoiar em elementos recorrentes, que remetem a uma mãe lutando para que o pai ocupe apenas um lugar insignificante na vida psíquica da criança, que tem medo da vitalidade da criança e antecipa sua sexualidade de maneira assustadora. O afeto, que garante a continuidade dos investimentos e "modula qualitativamente as expressões representativas" (2002b, p. 245), cai na indiferenciação provocada pela persistência das formas brutas de vínculo com o objeto e seu investimento pelas moções destrutivas.

A clínica proposta mostra, contudo, que esse funcionamento psíquico não discriminativo é uma manifestação de estados nos quais sujeito e objeto estão mal separados.

Nesses casos, a separação com o objeto primário não pode se efetuar, pois a criança não pode se conformar com suas próprias produções psíquicas - atividade onírica, fantasmática, jogo -, que a mantêm em contato tanto com os derivados de suas exigências pulsionais mais profundas quanto com as limitações da realidade. Green insiste na importância, para que essas formações intermediárias se instalem psiquicamente, de um investimento materno constante e sustentável, que sobreviva às diversas vicissitudes do jogo relacional e, em particular, à destrutividade. As variações de investimentos na unidade de tempo ou num tempo determinado, tais como propostas por Freud, podem então ser interpretadas como comportando para a criança a possibilidade de se reconhecer graças ao investimento materno, nos diferentes momentos dessas variações num tempo dado, oferecendo-lhe a possibilidade de ligar simultaneamente, nela mesma e em sua relação com o objeto, o núcleo que permite reunificar os diversos estados internos entre si e salvaguardá-los pelo interesse que continua a suscitar na mãe. A mãe está mobilizada em relação ao filho, devendo, ao mesmo tempo, antecipar sua separação, a fim de permitir a acolhida de outros objetos, em especial o pai. O afeto pode, então, ser definido como "um investimento de espera sob a forma da preparação antecipadora para o encontro com um objeto que, quando esse encontro não entra em ressonância com o investimento refletido do objeto, pode se transformar em desejo de evacuação" (2002b, p. 253, itálico nosso).

A criança pode renunciar ao objeto na medida em que o investimento sustentado deste lhe permitiu contar com suas próprias formações psíquicas, que substituem parcialmente as satisfações ligadas ao objeto primário. O jogo, no sentido winnicottiano, é paradigmático desse investimento do objeto por antecipação de seu encontro, criando-o a partir dos investimentos passados, o que remaneja a organização intrapsíquica e intersubjetiva.

 

Para concluir

Ao fim desta exposição, devemos admitir que estamos longe de ter transmitido toda a complexidade da elaboração de André Green. É preciso saber, entre outras coisas, que a reflexão de Green sobre o afeto alimentou-se de seu diálogo com neurobiólogos como Damasio, Vincent, Edelman ou Panksepp, cuja influência é nítida em seu pensamento.

Fiel a Freud, afirmando-se na continuidade de sua obra por meio de uma releitura sempre presente, Green aceitou o desafio de propor uma metapsicologia do afeto. Realizou uma verdadeira revisão da teoria psicanalítica ao expor a natureza, a função, o sentido e o sem sentido do afeto.

 

Referências

Duparc, F. (1996). André Green. Paris: PUF.         [ Links ]

Freud, S. (1968). La métapsychologie (J. Laplanche & J.-B. Pontalis, trads.). Paris: Gallimard. (Trabalho original publicado em 1915).         [ Links ]

Green, A. (1963). La psychanalyse devant l'opposition de l'histoire et de la structure. Critique, 194,649-662.         [ Links ]

Green, A. (1973). Le discours vivant. Paris: PUF.         [ Links ]

Green, A. (1983). Narcissisme de vie, narcissisme de mort. Paris: Les Éditions de Minuit.         [ Links ]

Green, A. (1990). La folie privée. Paris: Gallimard.         [ Links ]

Green, A. (1992). La déliaison: psychanalyse, anthropologie et littérature. Paris: Hachette.         [ Links ]

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Green, A. (2000). La diachronie en psychanalyse. Paris: Les Éditions de Minuit.         [ Links ]

Green, A. (2002a). Idées directrices pour une psychanalyse contemporaine. Paris: PUF.         [ Links ]

Green, A. (2002b). La pensée clinique. Paris: O. Jacob.         [ Links ]

Parat, C. (1995). Laffectpartagé. Paris: PUF.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Dominique Cupa
34/36 Rue Dieulafoy
75013 Paris
cupado@noos.fr

Hélène Riazuelo
200 Avenue de la République
92000 Nanterre, França
hriazuelo@u-paris10.fr

Recebido em 4.7.2013
Aceito em 30.7.2013

 

 

1 As distintas ordens definidas por Green, a quem parece heuristicamente interessante instituir, no continuum somatopsíquico postulado por Freud, cortes, mutações indicativas de diferentes estruturas de organização, são as seguintes: ordem de estrutura do soma: assimbólica; ordem de estrutura das pulsões: simbólica primária; ordem de estrutura do Eu: simbólica secundária. Essas diversas ordens são conjuntas-disjuntas.
2 NT: tradução da versão francesa. Em português dispomos de duas novas traduções dos Ensaios de metapsicologia: por Luiz Hanns, no vol. 1 das Obras psicológicas de Sigmund Freud, publicadas pela Imago - "O recalque", 2004, p. 182; e por Paulo César de Souza, no vol. 12 das Obras completas, publicadas pela Companhia das Letras - "A repressão", 2010, p. 91. Vale notar a grande diferença entre ambas as traduções e, destas, com a versão francesa.
3 Reeditado em La pensée clinique (2002b).

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