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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.47 no.3 São Paulo jul./set. 2013

 

ARTIGOS TEMÁTICOS: LEGADOS

 

A multiplicidade das configurações sexuais

 

The multiplicity of sexual configurations

 

La multiplicidad de las configuraciones sexuales

 

 

Rosine Jozef PerelbergI; Tradução Claudia Berliner

IMembro titular da Sociedade Britânica de Psicanálise (SBP), com função didática

Correspondência

 

 


RESUMO

Joyce McDougall afirma que a sexualidade humana é na sua origem traumática, traumatismo que está ligado ao reconhecimento da diferença entre os sexos. A configuração edipiana, seja na sua dimensão homossexual ou heterossexual, confronta o indivíduo com a impossibilidade de possuir os dois sexos, como também de possuir seus pais. Este artigo sugere que a distinção entre "pai assassinado" e "pai morto" é crucial na internalização da diferença sexual. A fantasia de "um pai espancado" e suas transformações emergem na análise de certos pacientes homens e expressam a apropriação do pai morto (pai simbólico). Quatro casos clínicos são descritos. A autora formula a hipótese de que alguns casos clínicos demonstram a incapacidade de elaborar a perda do pai simbólico e apresentam erotização desta perda.

Palavras-chave: pai morto; pai assassinado; pai espancado; cena primitiva; foraclusão; fantasias primárias; perversão; diferença sexual.


ABSTRACT

Joyce McDougall states that human sexuality is traumatic in its origin, a trauma which is related to the acknowledgement of the difference between genders. The Oedipal configuration, whether in its homosexual or heterosexual dimension, confronts the individual with the impossibility of possessing both genders, as well as that of possessing his parents. This article suggests that the distinction between “murdered father” and “dead father” is crucial in the understanding of gender difference. The fantasy of “a beaten father” and its transformations appear in the analysis of certain male patients and express the appropriation of the dead father (symbolic father). Four clinical cases are described. The author formulates the hypothesis that some clinical cases show the incapacity to elaborate the loss of the symbolic father, and show erotization of this loss.

Keywords: dead father; murdered father; beaten father; primitive scene; foreclosure; primary fantasies; perversion; gender difference.


Resumen

Joyce McDougall afirma que la sexualidad es traumática en su origen, un traumatismo que está relacionado con el reconocimiento de la diferencia entre los sexos. La configuración edípica, ya sea en su dimensión homosexual o heterosexual, confronta al individuo con la imposibilidad de poseer los dos sexos como también de poseer a sus padres. Este artículo sugiere que la distinción entre “padre asesinado” y “padre muerto” es crucial en la interiorización de la diferencia sexual. La fantasía de “un padre golpeado” y sus transformaciones aparecen en el análisis de ciertos pacientes hombres y expresan la apropiación del padre muerto (padre simbólico). Se describen cuatro casos clínicos. La autora formula la hipótesis de que algunos casos clínicos demuestran la incapacidad de elaborar la pérdida del padre simbólico y presentan el erotismo de esta pérdida.

Palabras clave: padre muerto; padre asesinado; padre golpeado; escena primitiva; forclusión; fantasías primarias; perversión; diferencia sexual.


 

 

Joyce McDougall relata a seguinte sessão com uma criança de cinco anos, depois das férias de verão:

Ele entra correndo no consultório, num evidente estado de excitação, para me anunciar um acontecimento inusual: "Durante as férias, fomos para um acampamento onde todas as crianças tomavam banho juntas, peladas!". "Você quer dizer as meninas e os meninos juntos?", pergunta JMD. Um pouco surpreso, o menino grita: "Não seja boba! Como vou saber? Eu já te disse, elas estavam sem roupa!" (1989, p. 205).

Joyce McDougall afirma que a sexualidade humana é, nas suas próprias origens, essencialmente traumática. Essa dimensão traumática está ligada ao reconhecimento da alteridade e à descoberta das diferenças entre os sexos, descoberta esta que dá origem a um longo processo de elaboração. A bissexualidade e as diferentes posições na cena primitiva estão no cerne da elaboração da sexualidade pelo ser humano. Seja na dimensão homossexual ou heterossexual, a configuração edipiana confronta a criança com a impossibilidade de ter os dois sexos e com a impossibilidade de possuir os pais.

Por que a sexualidade humana deveria ser traumática? Segundo Freud, o que torna a sexualidade dos seres humanos especificamente humana é o recalque, ou seja, que a sexualidade deve sua existência a nossas fantasias incestuosas inconscientes. O desejo é sempre uma transgressão. A impossibilidade de satisfação se expressa pelo tabu do incesto, que proíbe certa categoria de indivíduos de se tornarem parceiros sexuais.

O trabalho de Joyce McDougall se situa no que foi denominado de época pós-moderna, devido a sua compreensão da multiplicidade de formas que a sexualidade pode adquirir. Ela sugere o termo "neossexualidades" para caracterizar a enorme variação de práticas sexuais. Sugere também que há várias heterossexualidades, bem como diversas homossexualidades e sexualidades autoeróticas. Estas últimas transcorrem, geralmente, na solidão. Essas práticas podem ser consideradas "formas desviantes de masturbação; como só a fantasia se revela insuficiente, é preciso instaurar cenários, encontros e cenas eróticas imaginados" (1996, p. 220)

O que caracteriza a posição de Joyce McDougall é sua profunda compaixão por seus pacientes. Como indica Jason, um paciente apresentado detalhadamente em As múltiplas faces de Eros, o que foi particularmente benéfico (durante seu longo tratamento com ela) "foi sua contratransferência e a impressão de que você investia muito de si mesma em nosso trabalho. Eu tinha a impressão de que você entendia meu sofrimento" (1996, p. 267). McDougall nos demonstra que as sexualidades ditas perversas, como o fetichismo, as práticas sadoma-soquistas, o voyeurismo e o exibicionismo são estratégias para sobreviver psiquicamente. Sugere inclusive a existência de uma "pulsão para sobreviver psiquicamente" (p. 120). Por trás dos atos sexuais compulsivos e aditivos, esconde-se uma angústia sufocante. Uma identidade sexual confusa, uma raiva infantil, um sentimento de morte interior podem ser transformados em jogo erótico. A erotização dos conflitos arcaicos pode ser uma defesa contra as angústias psicóticas. Os sintomas são resultado de esforços infantis para encontrar soluções para a dor mental e o conflito psíquico.

Joyce McDougall descreve o caso de seu paciente, o Professor K, que em seus devaneios sonhava que batiam nele. Nessas cenas, uma criança era punida pela mãe, uma mulher apanhava do marido, uma amante apanhava do amante (1978, p. 28). A vítima inocente apanhava publicamente "diante de uma multidão" ou "diante do outro" (p. 28). McDougall sugere que o Professor K projetava na sua namorada sua própria excitação com a ideia de apanhar, a fim de se identificar com o seu suposto êxtase. As marcas de chicotadas eram um símbolo de castração, uma castração gozosa que ele dominava. Podemos acrescentar que o Professor K exprimia sua identificação masoquista, feminina.

Reconheci a mesma apresentação do Professor K na análise de vários pacientes homens inseridos em uma configuração psíquica de um pai castrado e de uma mãe assustadora, sentida como possuidora do falo. Esses pacientes tendem a adotar uma posição passiva e masoquista em suas relações sexuais e na transferência com seu analista. Parte essencial do tratamento deles é o desenvolvimento de uma fluidez com relação ao caráter fixo de sua posição passiva e a adoção de uma posição ativa.

Em comunicações recentes, sugeri que a fantasia bate-se num pai torna-se uma conquista importante na análise de certos homens, pois exprime a constituição de sua escolha sexual e de sua identificação masculina; através da construção dessa fantasia nas vicissitudes da transferência e da contratransferência, os pacientes são capazes de elaborar simbolicamente sua agressão contra o pai e encontrar seu próprio senso de tempo na cadeia de gerações.

Lacan foi o primeiro psicanalista que deu um estatuto conceitual à expressão "pai morto", empregada por Freud em "Totem e tabu", estabelecendo uma equação entre o pai simbólico e o pai morto. Essa linha de pensamento foi desenvolvida por Rosolato (1969) na sua distinção entre o pai idealizado e o pai morto. Stoloff (2007) detalha o desenvolvimento progressivo, na obra de Freud, do conceito de função paterna, mas é Jacques Hassoun quem propõe a distinção conceitual entre o "pai assassinado" e o "pai morto" que irei explorar nesta comunicação. A passagem de um ao outro inaugura o direito e a genealogia (Hassoun, 1996, p. 17). A passagem do pai assassinado ao pai morto representa a tentativa de regular o desejo e de instaurar o sacrifício da sexualidade. Em função disso, alguns parentescos ficam excluídos do campo das trocas sexuais, fato que constitui uma indicação crucial do começo da cultura.

Sugiro que a fantasia bate-se num pai pode ser frequentemente encontrada na análise dos pacientes homens no momento da transição entre essas duas configurações, isto é, no momento da transição do pai assassinado para o pai morto. A primeira - o pai assassinado - está presente em uma estrutura perversa, sádico-anal, em que o pai não tem lugar simbólico; a segunda - o pai morto - indica a constituição de um pai simbólico. Nas configurações de "pai assassinado", os pacientes acham difícil, às vezes impossível, dar sentido ao papel do pai na cena primitiva. Exemplos dessa configuração são pacientes que cometem violências reais contra outros homens, em uma tentativa de eliminá-los (Perelberg, 1999). Do outro lado, há os pacientes encerrados em seus devaneios e fantasias de apanharem. Essas fantasias tendem a ter uma forma estática e masoquista, e exprimem a posição de impotência desses pacientes perante o pai, assim como a incapacidade de mobilizar sua agressividade. Inspirada no trabalho de McDougall, descreverei as configurações perversas que exprimem uma foraclusão na relação com o pai e, muitas vezes, uma recusa das diferenças entre os sexos. Esses pacientes têm pouca ou nenhuma capacidade de mobilizar sua agressividade e de internalizar a função paterna. Sugerirei, em contrapartida, que alguns pacientes são capazes de alcançar a fantasia bate-se num pai durante sua análise, e isso se torna uma apropriação simbólica de seu pai e da função paterna.

Nos seus artigos metapsicológicos, Freud introduz o conceito de fantasias originárias (Urphantasien), presentes desde o início, mas que só podem ser "reativadas" na vida de cada indivíduo a posteriori (Freud, 1917[1915]/1955, 1916-1917/1955, 1918/1955; cf. Laplanche & Pontalis, 1968; Steiner, 2003; Perron, 2001; Perelberg, 2006). Laplanche e Pontalis (1968) consideram essas fantasias originárias experiências estruturantes. Green (2002) propõe a noção de disposição para a reaquisição, expressão derivada do texto do Homem dos Lobos (cf. Perelberg, 2009); as fantasias originárias são reatualizadas através das experiências individuais. Quais são essas fantasias originárias? Freud sugere que são a castração, a sedução e a cena primitiva. Mais tarde, isso também pode incluir o complexo de Édipo, que implica o filicídio, o parricídio e o incesto. Gostaria de sugerir que a fantasia bate-se num pai é uma transformação das fantasias de castração, de sedução e da cena primitiva.

Essa fantasia e suas transformações emergem em alguns pacientes homens como resultado do trabalho de análise; desenvolvem-se ao longo da transferência e se tornam uma apropriação potencial do pai (simbólico). Essa fantasia não significa necessariamente que seja no pai que se bate explicitamente. É uma construção derivada de associações livres e de sonhos, no contexto da transferência, alcançada no trabalho de interpretação; trata-se da inscrição do pai na psique. No presente artigo, apresento configurações clínicas que, a meu ver, manifestam dificuldades na elaboração dessa fantasia e as diferentes soluções encontradas.

O Sr. C se envolveu várias vezes em ataques verbais andando de bicicleta, o que o colocava potencialmente em situações perigosas, durante as quais sentia uma violência e uma frustração intensas. Na sua vida cotidiana, era passivo, incapaz de encontrar um emprego ou de se sentir viril na relação com a mulher. O Sr. C se lembra de uma infância desprovida de emoções, bem como da violência do pai e da depressão da mãe. Junto com os dois irmãos, de quem é próximo, foi mandado muito pequeno para um colégio interno, no nordeste da Inglaterra. O colégio lhe parecia sinistro. Nos seus devaneios, o Sr. C queria ser uma mulher, vestida com roupas suaves, e esses devaneios lhe proporcionavam a experiência de um mundo em que o conflito não existia. Transformava-se em uma mulher.

O Sr. C se sentia constantemente torturado por imagens de sua mulher tendo casos com outros homens. Em seus devaneios, contudo, ele mesmo se tornava uma mulher, para tentar recriar uma união feliz com seu objeto primário. Essa felicidade era um substituto de sua experiência de uma mãe depressiva, ausente, às vezes violenta e de quem ele tinha medo na infância. Ao se travestir, tentava controlá-la tornando-se ela, mas ao mesmo tempo, desaparecia nas suas roupas íntimas e vestimentas. Por trás disso, havia um perigo potencial de suicídio encenado nesse desaparecimento, expresso nas situações vulneráveis a que se expunha na rua. Vários anos de análise foram necessários para que o Sr. C pudesse experimentar um sentimento de raiva contra seu pai/sua analista. Nesse momento, teve um sonho em que era capaz de exprimir a violência contra outro homem de maneira mais simbólica.

Foi um sonho que apareceu em um trecho crucial de sua análise, durante as férias de verão, quando foi capaz de experimentar um sentimento de raiva contra a analista, porque ela ia embora e, portanto, o frustrava, e porque lhe impunha o enquadre da análise. Paradoxalmente, esse sonho, que anuncia o aparecimento da fantasia bate-se num pai, sugere também uma esperança para o futuro, graças a sua elaboração simbólica, que permite passar de uma posição passiva para uma posição ativa.

O Sr. D, um homem de uns 50 anos, sempre viveu isolado. A partir da adolescência, contudo, sua vida esteve dominada por sua compulsão de se masturbar. Na idade adulta, essa compulsão se tornou mais frequente, e no momento em que veio pedir uma análise, precisava manter seu pênis em ereção o máximo de tempo possível. Masturbava-se acessando sites pornográficos na Internet, principalmente sites de natureza heterossexual.

A situação analítica confrontava-o, precisamente, com a situação aterrorizadora que precisava evitar. O tratamento analítico não é possível sem a passivação confiante com que o analisante se entrega ao analista, nas palavras de André Green. O medo de desintegração no encontro com o outro tornava essa situação intolerável para o Sr. D. Uma das maneiras que encontrou para dar conta dessa situação impossível foi faltar a suas sessões. Inventava todo tipo de desculpa, que tornavam difíceis sua vinda, e mantinha contato com a analista por meio de mensagens e telefonemas - à distância, portanto.

A primeira vez que conseguiu vir a três sessões na semana, contou o seguinte acontecimento: não sabia se era a lembrança de um fato real ou um devaneio, mas era o material de um sonho repetitivo durante sua infância. Estava em uma praia onde o movimento da maré podia ser súbito e, por conseguinte, perigoso. De repente, a maré subiu com toda sua força e o arrastou. Lutava com a água para respirar e pensava que ia morrer. Sua mãe lhe dissera que tudo isso tinha realmente acontecido na sua infância. O pai ria e dizia que a mãe estava louca. Esse pai, que era salva-vidas nas férias, tinha ensinado os filhos a nadar quando eram muito pequenos jogando-os na piscina. O Sr. D lembra de seu terror dessas experiências. A experiência de dúvida do Sr. D era, então, muito viva; perguntava-se se suas vivências eram reais ou não, se sua mãe era louca e se seu pai tinha realmente querido matá-lo quando ele era bebê. Era possível entender a posteriori por que, durante muito tempo, foi imprescindível para o Sr. D ficar à distância da maré de suas sessões. A necessidade absoluta de manter o pênis em ereção à noite era um requisito para se manter vivo.

Por meio das vicissitudes dos processos de transferência e de contratransferência, foi possível compreender pouco a pouco que o Sr. D transformava seu medo da morte psíquica em excitação. Tentou organizar seu medo profundo do outro e da diferença em um jogo sadomasoquista sobre o qual sentia ter o controle. O paradoxo é que estava dominado por um eu ideal tirânico. Na situação analítica, uma relação intrapsíquica se externalizou em uma relação interpessoal com a analista, que agora é quem ficava impotente e excluída das sessões a que o Sr. D não vinha. A cada vez que o Sr. D renunciava a sua ereção, via-se confrontado com a experiência de não ser capaz de sobreviver. Expressava, assim, sua angústia e seu terror da castração. Como McDougall indica em relação a seus pacientes, a masturbação no Sr. D tinha "a ver tanto com sua integridade narcísica quanto com sua sexualidade" (1978, p. 73).

O Sr. C e o Sr. D tinham uma vida sexual limitada ou inexistente com suas parceiras, pois eram incapazes de mobilizar seu sentimento de agressão como pulsão de vida. Os múltiplos exemplos acumulados no correr dos anos de meu trabalho me permitiram formular a ideia de que a fantasia bate-se num pai e sua transformação durante o processo analítico é crucial na análise dos pacientes homens, e é a expressão de uma apropriação no nível simbólico dos sentimentos contraditórios e das fantasias em relação ao pai. O espancamento do pai acontece antes que o assassinato simbólico possa ocorrer em uma verdadeira elaboração da estrutura edipiana. Esta implica uma ressexualização do pai, uma expressão do desejo pelo pai no complexo de Édipo negativo, antes que um processo de sublimação possa ocorrer.

Isso me leva a identificar outra dimensão presente nas análises desses pacientes. Eles parecem lutar contra um núcleo melancólico que não pode ser elaborado. Esse núcleo de melancolia é o assassinato do objeto primordial para sempre perdido, mas que, de certo modo, nunca está completamente perdido, pois o sujeito estará sempre na expectativa de reencontrá-lo. É esse objeto que o paciente nunca teve que ele tenta encontrar em seu sadismo e na sua crueldade contra esses objetos.

Freud afirma:

Se o amor pelo objeto - um amor que não pode ser abandonado apesar do abandono do objeto - encontra refúgio no narcisismo, o ódio recai sobre esse objeto substitutivo, insultando-o, humilhando-o, fazendo-o sofrer e encontrando nesse sofrimento uma satisfação sádica (1917[1915]/1955, p. 251).

A fantasia bate-se num pai é uma tentativa de encontrar o objeto perdido, como mostra a análise de um paciente chamado Mauro. Em outro trabalho, expus a progressão durante uma semana de trabalho analítico com esse paciente. Essa semana começa com um sonho em que ele procura o pai, mas só encontra máscaras vazias, que o fazem pensar em Star Wars. Em seguida, nesse mesmo sonho, encontra um homem no banheiro que lhe mostra o pênis. Esse sonho deve ser entendido como a busca do pai, embora o que Mauro encontre sejam uniformes vazios com máscaras vazias. O pai que é encontrado em seguida no sonho é um pai perverso. Esse pai erotizado toma o lugar do vazio em um processo que, como sugiro, é um processo de erotização da ausência. No sonho que ele conta durante a sessão da sexta, um homem apanha de vários homens. É um sonho que parecer ter saído de "Totem e tabu". Há uma elaboração simbólica durante essa semana de análise, através da transferência e da interpretação de seu sonho, que lhe permite chegar à construção da fantasia bate-se num pai. Comparo esse caso com outros exemplos de casos clínicos aqui relatados e outras análises de estruturas mais perversas, de predominância masoquista, em que o pai parece ter estado ausente de maneira mais radical.

 

Jano de rosto único

Para ilustrar de forma mais precisa essa ideia de um núcleo melancólico erotizado, quero voltar-me agora para uma sessão mais recente com o Sr. A. Esse jovem foi vítima de abusos sexuais repetidos durante a infância, cometidos por um amigo da família. Tinha um pai ausente e uma mãe negligente e, nesse momento preciso de sua análise, morava com um parceiro, um homossexual soropositivo.

No começo de sua análise, o elemento sadomasoquista estava presente no processo de transferência com o analista, no qual apenas uma das duas posições estava disponível - a pessoa que maltrata ou a pessoa maltratada. Progressivamente, o paciente foi capaz de se referir a "sentimentos sem nome - inomináveis". Em uma sessão dessa fase, o analista notou que o Sr. A fazia referência a imagens de objetos cortados em dois: uma garrafa de água-de-colônia que ele põe na sua bolsa e metade do líquido vaza; um terno, de que só comprara uma parte (o paletó, mas não as calças); o "conhecimento pela metade que tinha de algo que precisava saber" O analista lhe aponta isso.

Mais tarde, durante a sessão, o Sr. A faz referência ao homem que abusou sexualmente dele quando criança. O analista estabeleceu um vínculo entre essas associações, e comentou a experiência de seu desenvolvimento interrompido. Enquanto o analista que eu supervisionava me lia o relato da sessão, veio-me a imagem de um Jano de rosto único, de quem se teria subtraído o outro rosto, o rosto que olhava para o futuro1. Pensei também nas máscaras vazias do sonho de Mauro e que isso vinha seguido de um encontro com o homem perverso no banheiro.

A resposta do paciente foi fazer referência a uma fantasia sexual que tivera na véspera e que ele mesmo achara escandalosa. A fantasia era a seguinte: pensara em dizer algo de natureza sexual a uma mulher num bar, que a deixaria chocada. Isso era sem dúvida uma alusão à transferência e uma resposta à interpretação precedente do analista, para tentar chocá-lo com um material de natureza sexual, que ocuparia o lugar do que ele tinha acabado de lhe dizer sobre sua perda. A função dessa erotização era preencher o lugar da metade que faltava. Isso aconteceu na última semana de análise, antes de uma pausa, e o paciente, no contexto da transferência, tinha efetivamente cortado a semana em duas, como se fosse faltar à segunda parte da semana.

As análises do Sr. C, do Sr. D, assim como a do Sr. A, nos permitem identificar as seguintes características, presentes na estrutura psíquica inconsciente dos pacientes que têm dificuldade de alcançar a fantasia bate-se num pai e que apresentam configurações seja de polaridade de violência real contra outros homens, seja de uma submissão masoquista:

a. Predominância da configuração de um pai assassinado (oposta a uma configuração em que o pai morto predomina);

b. Incapacidade de fazer o luto e presença de uma estrutura melancólica na qual a ausência, a perda e os sentimentos sem nome são erotizados.

Durante uma análise, somos confrontados com a emergência das fantasias sexuais geradas pela cena originária em sua forma pré-genital e arcaica. As soluções sexuais encontradas por cada um desses pacientes são tentativas de resolver conflitos psíquicos tão dolorosos quanto insuportáveis. McDougall nos indica que, quando estes são postos em palavras e expressos na transferência, essas visões infantis da cena primitiva podem ser elaboradas psiquicamente. "A imaginação erótica emerge da sombra mortífera em que se escondia" (1996, p. 22). Quando a erótica deixa de estar impregnada pela angústia de castração, de destruição e de morte, a versão da cena primitiva internalizada "torna-se um conhecimento psíquico adquirido que dá à criança adulta o direito de possuir seu corpo, sua sexualidade, seu lugar na configuração familiar" (1996, p. 22).

 

Referências

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Correspondência:
Rosine Jozef Perelberg
Byron House
112ª Shirland Road
London W9 2EQ
rperelberg@perelberg.com

Recebido em 18.6.2013
Aceito em 2.7.2013

 

 

1 Jano era o deus romano dos começos, das passagens e das portas. Estava associado ao começo do dia e ao primeiro mês do ano, por isso chamado de janeiro. Como uma passagem na qual se pode entrar por duas direções, Jano é representado com dois rostos, um olhando para o futuro e o outro para o passado. Diz a lenda que ele recebera do deus Saturno o poder de ver simultaneamente o futuro e o passado, em recompensa por sua hospitalidade. O templo de Jano no Fórum romano tinha duas séries de portas orientadas para o leste e para o oeste. Essas portas permaneciam abertas durante uma guerra e fechadas em período de paz.

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