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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.47 no.3 São Paulo July/Sept. 2013

 

RESENHAS

 

Pelos poros do mundo: uma leitura psicanalítica da poética de Flávia Ribeiro

 

 

Cintia Buschinelli

Membro Associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)

Correspondência

 

 

Autora: Silvana Rea
Editora: EDUSP, São Paulo, 2013, 265p.
Resenhado por: Cintia Buschinelli

Quem de nós, diante de uma obra de arte que ecoa em nossos sentidos em profundidade, ainda não se perguntou: como o artista criou esse objeto?

Suponho que a psicanalista Silvana Rea se fez essa pergunta inúmeras vezes. Não resta dúvida que sua curiosidade a dirigiu para um estudo reflexivo das publicações de diversas áreas de conhecimento que procuraram desvendar esse assunto tão misterioso1.

Imagino que essa questão permaneceu latente em seus pensamentos, e ela achou por bem sair de seu consultório, munida de sua prática psicanalítica, para acompanhar, corpo a corpo, a construção da obra de uma artista brasileira, Flavia Ribeiro.

O contato com a artista, frente a frente, durou cerca de dez anos.

Pelos poros do mundo, publicação primorosa que faz jus a seu conteúdo, sintetiza, como uma espécie de registro de uma viagem em direção a longínquas paragens, o encontro entre Flavia Ribeiro, uma artista em seu ambiente de trabalho, e Silvana Rea, uma psicanalista experiente em pleno exercício de sua prática.

Podemos retomar a mesma pergunta sobre a criação artística e endereçá-la agora à psicanálise: como se dá o processo criativo de um psicanalista?

Tal interrogação costuma ter presença marcante tanto na mente do psicanalista quanto naqueles que desejam conhecer os meandros de seu ofício.

Sabemos que essa pergunta já percorreu os tempos, foi investigada sob os mais diferentes ângulos, mas não abandonou ainda o lugar dos mistérios a serem desvendados.

Pois então, Pelos poros do mundo oferece um belíssimo exemplo de como se dá o trabalho de um psicanalista. Portanto, teremos a oportunidade de matar os dois coelhos de nossa curiosidade com uma única cajadada na leitura do livro de Silvana Rea.

Vejamos como desde o início a autora introduziu a questão fundamental sobre o lugar no qual circunscreveu seu trabalho.

Ela deixa claro que seu olhar não será dirigido para a artista, no sentido biográfico, nem para a obra como objeto a ser analisado. Seu interesse se encontrará no espaço construído entre eles, onde obra e artista vão se constituindo em uma unidade.

A escolha por esse caminho está solidamente sustentada pela bibliografia estudada e pela experiência da autora, familiarizada com o cotidiano de sua clínica. Ela sabe que é no espaço construído entre analista e analisando, e neste caso entre obra e artista, que tudo acontece, ou seja, em sua poética.

... poética é um conceito que une artista e obra, se de um lado o artista não consegue produzir a obra sem uma poética declarada ou implícita, de outro, a obra solicita a poética na medida em que exige ser feita (p. 28).

Ao observador, alerta-nos Silvana, caberá desvendar a poética do artista.

O observador, a quem a autora se refere na circunstância desse trabalho, é ela mesma. Mas, está claro que esta experiência de espectador de uma obra de arte está aqui indicada também como uma sugestão: você que tem o olhar dirigido às artes plásticas, busque a poética do artista.

Somos, então, levados a concluir, no decorrer da leitura do livro, que conheceremos também a poética da psicanalista, a experiência amalgamada desse encontro entre ela e a artista, descrita em inúmeros planos desse trabalho.

Silvana justifica o lugar que escolheu para se posicionar diante desse trabalho como curadora psicanalítica.

Chama nossa atenção, sobretudo, a maneira original que este estudo é apresentado. Entre os inúmeros alertas sobre como não reduzir a arte a supostas interpretações psicanalíticas, o coração desse trabalho está localizado em um inusitado diálogo construído pela psicanalista por meio das palavras da artista. Não me refiro ao diálogo comum, aquele em que duas pessoas trocam palavras entre si. Neste caso, em particular, encontramos as palavras da artista seguidas do pensamento da psicanalista, que as ilumina de modo a descondensá-las, reconstruindo-as e, principalmente, ampliando aquele universo onírico com sua compreensão. Notamos que é nesse momento que somos introduzidos nesse universo, pois os pensamentos da psicanalista não são dirigidos à artista, mas a nós, leitores. Podemos assim ocupar o lugar do terceiro analítico de Ogden, aquele que reconhece o produto de uma intervenção psicanalítica.

Não encontraremos jamais a opinião da psicanalista sobre o discurso da artista, mas a produção de pensamentos que abrem novos caminhos reflexivos. Exatamente o que esperamos de uma voz psicanalítica.

À guisa de exemplo, diz a artista:

Essas pulseiras têm a ver com aquele trabalho lá embaixo, na entrada do ateliê. Chamei de Pulso. Esfera, círculo, aro, pulso ... algo que envolve o punho ... (p. 146).

Depois de mais algumas considerações da artista sobre esse trabalho, encontramos as seguintes palavras da psicanalista:

Sim, porque o trabalho Pulsos refere-se ao corpo da artista, já que trata de argolas de bronze preto fundido ou prata, que podem ser usadas como pulseiras. Mas, também a faz pensar em outros corpos, uma vez que agora a proposta é mais explícita para que o espectador vista o trabalho no próprio corpo. Os Pulsos referem-se também, ao conhecimento do corpo do outro (p. 146).

Esse é apenas um dos diálogos que se encontram à nossa disposição nas páginas desse livro. Vejam que com extrema naturalidade Silvana Rea amplia o significado daquilo que ouviu e observou, acrescentando, a nós leitores, um novo sentido às palavras da artista. É a psicanalista trabalhando.

Vale a pena acrescentar que a cuidadosa edição desse livro, impresso em um papel suave ao toque e ilustrado com as obras da artista, nos introduz sensorialmente na viagem onírica proposta pela autora. O universo psicanalítico e o das artes plásticas se entrelaçam de forma harmoniosa, sugerindo que seus fios se originam em território comum.

Pelos poros do mundo é leitura obrigatória para aqueles que desejam conhecer o expressivo e perspicaz pensamento de uma psicanalista, construído nas entrelinhas da vivência criativa de uma artista plástica.

 

 

Correspondência:
Luis Claudio Figueiredo
Cintia Buschinelli
Rua Alcides Pertiga, 82
05413-100 São Paulo, SP
cintiab@uol.com.br

 

 

1 Boa parte dessas reflexões estão à nossa disposição nas páginas desse livro.

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