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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.47 no.3 São Paulo July/Sept. 2013

 

RESENHAS

 

Versões de Freud: breve panorama crítico das traduções de sua obra

 

 

Emiliano de Brito Rossi

Doutor em Letras na Área de Alemão pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). Psicólogo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Psicanalista e Tradutor

Correspondência

 

 

Autor: Pedro Heliodoro Tavares
Editora: 7Letras, Rio de Janeiro, 2011, 146 p.
Resenhado por: Emiliano de Brito Rossi

O livro de que trata a presente resenha é fruto de um trabalho de pesquisa em nível de Pós-Doutorado, realizado pelo Professor Pedro Heliodoro Tavares junto ao Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução (PGET) da Universidade Federal de Santa Catarina. Esse esforço inaugura o projeto "As novas versões brasileiras da obra de Sigmund Freud - adaptações e recriações estilístico-conceituais", coordenado pelo Professor Walter Carlos Costa. O projeto continua em vigor, e tanto a realização da pesquisa quanto a publicação do livro contaram com o auxílio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

A motivação para a redação do trabalho foi a entrada em domínio público das obras do autor morávio no ano de 2009, setenta anos, pois, após seu falecimento. De início a empreitada seria levada a cabo em um intervalo de dois anos, prorrogáveis por outros dois. Entretanto, em função da aprovação do pesquisador em concurso público para provimento do cargo de professor na Área de Alemão da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, no ano de 2011, sua execução teve de ser abreviada e seu resultado veio a lume em tempo recorde, apenas nove meses após seu início.

As Versões de Freud revelam, desde a escolha desse título, o ânimo de seu escopo: permitir transitar de modo crítico pelas vertentes tradutórias que se nos dão a conhecer pelos caminhos de transmissão da psicanálise freudiana. Não se trata apenas de um percurso divertido, muito embora o seja em várias passagens, mas segue um itinerário que também visa a advertir os leitores quanto às perversões que se imiscuíram no decurso das traduções dos textos de Freud, na construção de seu vocabulário vertido a outras línguas e em seus estilos argumentativos. Tendo arregimentado verdadeiras tropas de adversários com seus escritos por vezes ainda hoje tidos como subversivos, Freud, autor diverso em função de sua idiossincrática versatilidade no uso da linguagem, teria sido traduzido por vezes, como nos mostram alguns trechos desse livro, de modo bastante controverso, chegando mesmo a ser adverso para aqueles que não conversam seu alemão. Entretanto, inversamente, o livro nos mostra ainda que o criador da psicanálise teve versões afortunadas, cada qual a seu tempo, modo e com seus méritos particulares, e cada uma pautada por uma linha ideológica determinada.

O jogo feito no parágrafo precedente com alguns dos termos aparentados ao étimo "versão" nada mais é que um arremedo do espirituoso texto constante das "orelhas" do livro de Tavares. Como nos instrui o autor, há uma ambiguidade presente no vocábulo "versão". Se por um lado poderíamos tomá-lo como sinônimo de "tradução", por outro deveríamos considerar seu sentido de perspectiva assumida perante algo a ser relatado, ou, nas palavras de uma das acepções retirada do Dicionário Houaiss, "cada um dos diferentes modos de contar ou interpretar o mesmo ponto, fato, história ou lenda etc" (Houaiss, 2001, p. 2850). O título escolhido para a obra, portanto, anuncia a dimensão equívoca, ou plurívoca, inerente à linguagem e, por conseguinte, à tarefa de tradução.

Antes de chegarmos às primeiras páginas do livro, gostaria ainda de ressaltar o cuidado editorial com um importante elemento paratextual: a capa. Nela veem-se figuras que fazem alusão a motivos egípcios. Além de remeter o leitor ciente do gosto nutrido por Freud pela antiguidade à sua curiosidade arqueológica, também traz explícita a referência aos hieróglifos e ao convite que eles fazem a um tipo de trabalho tradutório que se poderia descrever como intersemiótico, seguindo-se a delimitação do linguista Roman Jackobson (1959/1981, citado por Tavares, 2011, p. 30). A esse universo de reflexões estão intimamente ligadas questões postas pela teoria subjacente à interpretação de sonhos. A tradução, pois, seja da escrita ideográfica dos hieróglifos na escrita alfabética das línguas contemporâneas, seja de conteúdos latentes do sonho em expressão consciente num contexto analítico, serve de alegoria ou de leitmotiv para o desenvolvimento e para a concepção da teoria psicanalítica.

O livro traz em seu frontispício, como epígrafe, uma citação de Johann Wolfgang von Goethe, que figura, indubitavelmente, entre os autores favoritos de Freud, se é que não tenha sido o predileto. Esse trecho é o único em alemão e um dos raríssimos excertos em língua estrangeira que não vem acompanhado por tradução em português. Dentre as exceções consta um fragmento de carta escrita por Freud a Luis Lopes Ballesteros em espanhol e outro, igualmente epistolar, mas dessa vez dirigido a Ernest Jones em inglês. Vejamos, pois, a epígrafe, que, a meu ver, condensa de forma brilhante o modo de aproximação de Tavares em relação a seu objeto de estudo: "Du gleichst dem Geist, den du begreifst, nicht mir" (em Faust), que em português poderia versar: "Tu te assemelhas ao espírito que apreendes, não a mim". É certo que a tradução de begreifen por "apreender" é discutível, mas o sentido da crítica sutilmente subjacente ao trecho, remetido ao contexto da tradução, é nítido: mostrar o potencial criativo e, portanto, a singularidade de cada tradução, ou, dito de outra forma, mostrar o limite intransponível imposto a todas as traduções possíveis.

A estruturação da argumentação apresentada por Tavares é feita de tal modo que, precedidos por uma ambientação histórica, surgem paulatinamente os núcleos dos assuntos de que trata. Depreende-se a clareza e leveza do texto do fato de, apesar de lidar com temas tão delicados e por vezes bastante áridos, dirigir-se a um público abrangente, composto não somente por especialistas com profundo conhecimento em psicanálise e nos estudos da tradução, mas também por pessoas simplesmente interessadas na obra de Freud, sem que delas sejam exigidos conhecimentos prévios.

A divisão interna das Versões de Freud comporta três capítulos principais, precedidos dos agradecimentos e de um prefácio e sucedidos por uma conclusão em que o autor reúne o sumo de suas percepções sobre as traduções brasileiras dos textos freudianos, realizadas diretamente do alemão, acessíveis até aquele momento de 2011, ano de conclusão de sua pesquisa de Pós-Doutorado. Vemos, pois, que o livro tende a acompanhar uma ordem cronológica, partindo do material mais antigo e chegando até os dias atuais.

Assim sendo, no terceiro capítulo, para dizê-lo de modo aproximativo, são abordadas respectivamente: 1) a edição brasileira disponível antes da entrada da obra do fundador da psicanálise em domínio público, feita a partir do inglês e publicada pela editora Imago, devidamente acompanhada pelas críticas a ela dedicadas por Marilene Carone; 2) a nova tradução, direta do alemão, coordenada por Luiz Alberto Hanns, da mesma editora, amparada por comentários re-lativos a seu contexto de elaboração e a importantes trabalhos realizados pelo psicanalista, tais como o Dicionário comentado do alemão de Freud (1996), e a concepção de uma "espécie de princípio para uma Teoria da Tradução, por ele desenvolvida para tratar dos traços semânticos que atravessam o texto [freudiano]" (Tavares, pp. 100-101), além do destaque aos pontos altos da edição e àqueles sujeitos à crítica; 3) a tradução de Paulo César de Souza, igualmente do alemão, a cargo da Companhia das Letras, cuja abordagem é feita através da reunião de pontos importantes de sua trajetória como pesquisador e tradutor. Além disso, são igualmente ressaltados os méritos de seu trabalho, bem como expostas suas escolhas no que tange à versão de termos-chave e ao tratamento estilístico do texto freudiano, apontando criticamente para a influência de sua formação e de outros tradutores sobre as escolhas realizadas; e, finalmente, 4) a tradução empreendida por Renato Zwick, editada pela L&pm, que, em virtude do menor número de obras abrangidas, não permitiu o mesmo desdobramento de críticas alcançado pelos tradutores precedentes. A despeito disso, o percurso acadêmico de Zwick é igualmente delineado, suas diversas traduções de obras, principalmente filosóficas e literárias, são destacadas, e sua postura bastante original e ousada devidamente apreciada, inclusive com o cotejo de trechos traduzidos com o original, como também ocorre nos dois exemplos anteriores, e com o desvelamento de posturas do tradutor a partir de relatos obtidos através de publicações e entrevistas citadas no texto de Tavares.

Para chegar até esse ponto de suas reflexões, Tavares nos convida a atentar, no segundo capítulo, para as balizas mais importantes erigidas pelas empresas tradutórias levadas a efeito em terras estrangeiras. Trata-se dos legados respectivos da Standard Edition inglesa, de James Strachey; das traduções francesas de Marie Bonaparte a Jean Laplanche; bem como das traduções castelhanas do já mencionado Luis Lopes Ballesteros e de José Etcheverry, respectivamente publicadas na Espanha e na Argentina. Cada uma das edições comentadas tem seu contexto de surgimento revelado, bem como as características principais que delas se destacam. Daí derivam igualmente as principais críticas que o desenvolvimento das pesquisas na área da tradução da psicanálise nos permitiu avançar, cuidadosamente sintetizadas por Tavares1.

No início de seu percurso, o autor prepara o terreno a ser desbravado apontando o fato histórico da entrada da obra de Freud em domínio público e, com isso, a possibilidade de atualização e arejamento do fundamental debate sobre "os rumos do entendimento das propostas freudianas" (p. 17). Nessa etapa são apresentados os novos projetos editoriais surgidos no Brasil, foco de interesse do livro, bem como o modo de investigação a ser cumprido durante seu escrutínio. Indicam-se no primeiro capítulo, portanto, três questões centrais que norteiam a atenção voltada aos novos projetos brasileiros. Tendo em mente os desafios que se impõem a esses esforços criativos, e visando descobrir as diretrizes erigidas por cada um deles no intuito de pautar as escolhas tradutórias que vêm sendo feitas, percebe-se o estabelecimento de ênfases que recaem ora sobre a terminologia, ora sobre o estilo freudiano. O autor procurou revelar qual a postura adotada diante da opção pela 1) Adaptação ou recriação da terminologia; 2) Adaptação ou recriação de estilo; e 3) Adaptação ou recriação tendo outras línguas ou edições como interdiscurso (pp. 20-21).

A partir do estabelecimento desses três eixos de investigação podemos antever os aspectos fundamentais que serão sublinhados, tanto na caracterização das traduções para as três línguas estrangeiras abordadas, quanto para a reunião de percepções provenientes da análise das soluções encontradas pelos tradutores brasileiros. Ou seja, a partir do primeiro eixo voltar-se-á a atenção do leitor ao modo com que foram tratados os termos empregados por Freud, ora elevados por alguns tradutores à categoria de conceito, mesmo quando o próprio Freud não o tenha feito de modo explícito e com a precisão e rigidez que por vezes se encontram dedicadas ao estabelecimento de um tal arcabouço conceitual, bem como serão expostas as soluções encontradas em cada uma das versões, reunidas em tabelas comparativas, fomentando, destarte, o debate sobre quais opções existentes no vocabulário português, provenientes de áreas como a medicina, a filosofia, a psicologia etc, poderiam ser priorizadas (ou mesmo vêm sendo priorizadas).

Quanto ao segundo eixo, referente ao estilo freudiano, ou, melhor dizendo, aos estilos freudianos, como ressalta Tavares fazendo referência ao elenco de tipologias textuais igualmente reconhecidas em Freud por seus tradutores franceses (i. e. Laplanche, Cotet & Bourguignon, 1989, apud Tavares, pp. 29-30), as reflexões propostas nos conduzem à questão sobre o que fazer, diante da difícil tarefa de traduzir um autor "agraciado com o Prêmio Goethe, em reconhecimento ao seu talento como escritor ensaísta" (Tavares, p. 21). Se, por um lado, se reconhecem estratégias que tendem a sacralizar a preocupação com a terminologia e relegar ao segundo plano a fluência e a elegância de seus estilos, o que representaria um prejuízo à fruição do texto freudiano, por outro lado, percebe-se haver iniciativas que abdicam da infausta obsessão na perseguição de um purismo inexistente em Freud, correndo-se o risco, entretanto, de se permitir um afrouxamento da necessária coesão na articulação teórica. Encontrar um meio termo entre esses dois extremos talvez seja o grande desafio reconhecido pelo livro de Tavares, que procura, ao longo de suas páginas, "observar as estratégias de preservação ou reinvenção desse estilo" (p. 21) perpetradas pelas traduções visitadas.

Gostaria de fazer uma ressalva quanto ao uso do termo "preservação". Ao que me parece, a não ser que restrinjamos o uso de "estilo" às diversas tipologias textuais observadas em Freud (e é disso que se trata na obra de Tavares), não seria devido admitir a possibilidade de uma preservação, em traduções, do estilo do autor traduzido, mas somente a inevitável manifestação de novos estilos. Isso, caso consideremos alguns avanços do atual diálogo entre a psicanálise e os estudos da tradução, no que tange especificamente à abordagem do conceito de "estilo". A escrita tradutória, ou tradutora, como de resto qualquer escrita, implica a expressão de singularidades. Da mesma maneira não se poderia pensar em um "estilo" que fosse compartilhável, sendo suas expressões aquilo que mais se aproximaria do registro da singularidade2.

Com respeito ao terceiro e último viés investigativo, trata-se do reconhecimento de elementos intervenientes nos trabalhos que vêm sendo realizados, necessário, pois, para se chegar às considerações sobre as atuais traduções brasileiras concebidas diretamente do idioma alemão. É inevitável perceber a ampla influência exercida pelas escolhas tradutórias anteriores, provenientes das tradições inglesa, francesa e espanhola, sobre os novos projetos em curso no Brasil. Assumidamente, conforme nos revelam entrevistas feitas por Tavares com os três tradutores brasileiros responsáveis pelos trabalhos em andamento, existe entre eles uma predileção por esta ou aquela tradição de recepção anterior. No caso de Renato Zwick, a maior dívida admitida é perante a edição castelhana de Etcheverry, mesmo que o tradutor lhe reserve algumas críticas e, além disso, declare a importante influência exercida pelo brilhante estudo de Paulo César de Souza, As palavras de Freud, fruto de sua tese de doutorado e recentemente publicado pela Companhia das Letras (2010). Cabe notar, com Tavares, que é nas traduções de Zwick que encontramos em menor grau a marca da influência de outras línguas (p. 130). No que tange a Souza, Tavares nos revela que sua predileção declarada é pela edição inglesa de James Strachey, a qual o tradutor acompanha em escolhas polêmicas, como, por exemplo, na manutenção da tão criticada, especialmente a partir de Jacques Lacan, versão de Trieb por "instinto". Luiz Alberto Hanns, por sua vez, expressa sua admiração pelo estilo e fluidez do texto de Ballesteros, "ainda que estabeleça uma proximidade terminológica maior com a edição francesa de Laplanche, Cotet e Bourguignon" (p. 102), além de ter conservado o uso do aparato editorial de Strachey.

A síntese deveras resumida de reverberações aqui no Brasil de tendências estrangeiras surgidas anteriormente ao início do trabalho de tradução direta que presenciamos nos dias de hoje, apresentada no parágrafo anterior, não me parece fazer jus ao alentado desenvolvimento que a acompanha e contextualiza em Versões de Freud. Tampouco a exposição estanque e linear das principais influências identificadas nos projetos tradutórios brasileiros me parece corresponder ao esforço feito por Tavares de elucidar as imbricadas relações (de reação, dissenso, retomada, aproximações, afastamentos etc) estabelecidas ao longo de muitos anos entre as várias tradições envolvidas e entre os protagonistas em jogo.

Partindo da constatação de que "as línguas não são tão somente um repertório acumulado de signos substituíveis e analógicos", não sendo, pois, códigos, mas sim cosmovisões (p. 22), Tavares inicia sua breve exposição sobre "Freud e a língua alemã". Admitindo em nota de rodapé que "em sua versão original, este livro trataria tanto do modo peculiar como Freud fez usos de recursos da língua alemã para a formulação de suas ideias e de sua obra escrita quanto das principais versões de sua obra" (p. 21), o autor reconhece que em função da abreviação do tempo disponível para levar a cabo o projeto inicial, teve de optar pela restrição à segunda parte. Ainda assim, nos é fornecida uma "pincelada" da primeira parte. De início, uma consideração psicana-lítica quanto à língua "materna". Senão, vejamos:

Chama-se língua materna muitas vezes o idioma nacional que supomos familiar, mas que sempre nos é estranho até a naturalização de sua imposição. A língua mãe, familiar (heimlich), esta seria a protolinguagem ou baby talk3 desenvolvida entre mãe e criança, excluindo os demais de seu entendimento ou compartilhamento. Se seguirmos a proposta freudiana, estaríamos mais próximos de chamar paterna antes que materna a língua da cultura em que nos inserimos. As línguas nacionais, com suas regras e leis sintáticas, sempre são paternas, já que, freudianamente falando, caberia ao paterno a interdição, a regulação e o limite (destaques e nota do autor, p. 22).

Nesse trecho podemos ver, de forma sintética, apontamentos para uma concepção geral de linguagem que subjaz fundamentalmente à psicanálise. É, portanto, um ponto de partida para a reflexão sobre as diversas línguas em diálogo no exercício da tradução. Faz-se necessária, além disso, para se tratar desse tema, a consideração de aspectos referentes aos traços peculiares de cada idioma. Vejamos adiante qual a forma encontrada por Tavares para reportar-se a algumas das características do idioma alemão e de seu uso particular por Freud.

Com o exercício de transitar por uma malha de imagens entrelaçadas por seu parentesco etimológico, como no jogo, com o étimo "versão", que dá o tom do livro, creio que se pretenda desvelar uma das características mais marcantes, sem ser exclusiva, da língua alemã: a abertura à formação de palavras, seja através da justaposição de afixos (prefixos, sufixos) a um radical, seja através da derivação de "novas" palavras através da reunião de dois étimos preexistentes (Komposita).

Após apontar a proximidade da linguagem freudiana em geral em relação ao uso da língua alemã por falantes leigos, como, p. ex., em Deckerinnerung (lembrança encobridora), proximidade essa que só se faz possível em virtude dos recursos corriqueiros disponíveis nesse idioma, e contrapor o universo germanófono à necessidade imposta por outros idiomas da criação de neologismos ou do uso de termos eruditos, como em Halbkugel (halb = meia / Kugel = esfera [ou simplesmente: bola]) para o nosso hemisfério, de origem grega, ou, num exemplo do recurso recorrente em Lacan aos neologismos, como em parlêtre (falaser4), cuja ideia poderia ser expressa de forma semelhante pelo alemão Sprachwesen (ser da/de lingua[gem]) (Tavares, pp. 24-25), bem como prover alguns exemplos de formação de palavras por justaposição de afixos, característica que nesse idioma chama a atenção por sua abundância, o autor expõe alguns dos recursos utilizados por Freud em suas construções teóricas, tais como: "o gênero neutro e sua impessoalidade e indeterminação" (recurso inexistente em português), "a possibilidade de transformar qualquer classe de palavras em substantivo", "as nuances dos verbos modais... bem como de partículas que matizam os graus de certeza junto ao leitor" e "a criação do suspense pela resolução do período com o verbo ao final da frase" (p. 26).

Tendo aproximado o leitor do universo germanófono e de algumas características marcantes da escrita freudiana, as Versões de Freud veem-se prontas para confrontar as ideologias e as escolhas tradutórias subjacentes a "nada menos que seis versões estrangeiras e quatro nacionais" (p. 15), constituindo-se, desse modo, como um trabalho de vulto inédito no Brasil, mesmo que constrangido pelo limite de tempo.

Do breve panorama apresentado, pois, poder-se-iam, no curto espaço de uma resenha, destacar seletivamente alguns pontos de relevo. Foi a partir de uma tradução, a saber, para o inglês, que os escritos de Freud puderam pela primeira vez, em caráter póstumo, reunir-se em uma coleção de obras "psicológicas" ditas "completas". Se sua importância histórica na difusão das obras de Freud pode ser comparada àquela da Vulgata de São Jerónimo com respeito à disseminação do cristianismo, ela também exerceu grande influência quanto ao que foi excluído de seu arcabouço, como, p. ex., o fundamental estudo sobre as afasias5.

Não obstante esse papel na seleção do material privilegiado pelas obras "completas", é com relação à ideologia subjacente às escolhas terminológicas que surgem as principais críticas. Segundo nos conta Tavares, o início das publicações de críticas às traduções inglesas se dá com o livro Freud and man's soul, de Bruno Bettelheim, em 1983. Esse autor não só centraliza sua crítica em torno da tradução de Seele (soul / alma) por mind (mente), mas, assim fazendo, indica a política ideológica fomentada por Jones e Strachey, que através do privilégio do uso de termos de origem clássica, grega e latina, visaram dotar o texto freudiano de "uma pretendida clareza objetivista" (Tavares, p. 44). Para Ornston (citado por Tavares, p. 44), "O problema é que a síntese fria de Strachey às vezes torna Freud conciso e abstrato, justamente nos contextos em que sua ambiguidade se aproxima de nossos problemas reais e é portanto clinicamente útil".

Décadas antes do livro de Bettelheim, continua Tavares, é em Jacques Lacan que encontramos o principal crítico à tradução inglesa. "É Lacan, aliás, quem levanta a maior bandeira contra o que se tornou o ponto mais criticado na tradução supervisionada por Jones: o uso de instinct para verter o Trieb freudiano" (p. 45). Após trazer a definição do conceito apresentada por Freud, Tavares nos mostra um parágrafo apresentando a posição assumida por Lacan, referente a esse conceito-chave, buscando afastar-se da concepção "biológico-corporal" relevada pela escolha inglesa.

Para finalizar, após dedicar mais algumas páginas às condições de estabelecimento da versão freudiana de Strachey e Jones e às diversas críticas a ela dirigidas, Tavares nos apresenta a nova tradução inglesa a cargo do psicanalista e literato Adam Phillips. Em reação à preocupação com a "standardização" de Freud, este se propõe fazer o contrário: "omitir de Freud toda a precisão e padronização em busca de sua face literária" (p. 51).

Tendo abarcado de modo assimétrico as partes envolvidas no estudo de Tavares, vejo-me constrito a interromper abruptamente esta resenha. De modo geral creio ter delineado "panora-micamente" o que o leitor pode esperar das Versões de Freud. A grande vantagem da limitação de minha exposição é a criação de certo suspense que, espero, convide à leitura do livro. O último adendo seria um elogio à escrita de Tavares, por meio de uma citação: "Parlare oscuramente lo sa fare ognuno, ma chiaro pochissimi"! (Galileo Galilei).

 

Referências

Bettelheim, B. (1983). Freud and man's soul. London: The Hogarth Press.         [ Links ]

Freud, S. (no prelo). Sobre a concepção das afasias - um estudo crítico (E. B. Rossi, trad.). Belo Horizonte: Autêntica.         [ Links ]

Frota, M. P. (2000). A singularidade na escrita tradutora - linguagem e subjetividade nos estudos da tradução, na linguística e na psicanálise. Campinas: Pontes.         [ Links ]

Hanns, L. A. (1996). Dicionário comentado do alemão de Freud. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Houaiss, A.; Villar, M. S. et al. (2001). Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva.         [ Links ]

Marín-Dòmine, M. (no prelo). Traduzir o desejo: psicanálise e linguagem (E. B. Rossi, trad.). Belo Horizonte: EduFMG.         [ Links ]

Silveira Jr., P. M. (1983). A tradução: dados para uma abordagem psicanalítica. Rio de Janeiro: Aoutra.         [ Links ]

Souza, P. C. (2010). As palavras de Freud. São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Emiliano de Brito Rossi
Rua 100, 92, Setor Sul
74080-140 Goiânia, GO
Tel.: (62) 7815-8356
rossiemiliano@yahoo.com.br

 

 

1 Além disso, esse capítulo dedicado ao comentário das traduções estrangeiras também abrange a nova edição inglesa realizada pela editora Penguin Books sob os auspícios de Adam Phillips.
2 Para aqueles que se interessarem pelo aprofundamento nas questões relativas à singularidade da escrita tradutora e ao "estilo", recomenda-se a leitura dos livros de M. P. Frota (2000) e de M. Marín-Dòmine (no prelo).
3 O psicanalista Jacques Lacan, tratando de semelhante noção, denominou lalangue esta forma especial de linguagem.
4 Ou "falesser" / "falente", como propõe M. D. Magno, (citado por Silveira Jr., 1983, pp. 53-54).
5 Freud, S. Sobre a concepção das afasias - um estudo crítico (no prelo).

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