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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.47 no.4 São Paulo out./dez. 2013

 

TRABALHOS PREMIADOS

 

O Amor como elemento estruturante da continência na situação edípica1

 

Love as a building element of continence in an Oedipal situation

 

El Amor como elemento estructurador de la continencia en la situación edípica

 

 

Giséle de Mattos Brito

Analista didata e docente do Grupo de Estudos Psicanalíticos de Minas Gerais (GEPMG) e membro efetivo e docente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)

Correspondência

 

 


RESUMO

A autora, por meio de instigante material clínico, busca refletir sobre o papel do amor como estruturante da continência na situação edípica. Como esse amor permeia a triangulação edípica já nos primórdios da relação da mãe com seu bebê? Como isso se apresentaria na sala de análise? Parte ela da teoria de rêverie (Bion), na qual chama a atenção ao amor da mãe pelo pai como um elemento que é transmitido ao bebê; amplia esse vértice, utilizando-se da teoria de Ogden; chama a atenção para o fato de que, nessa primitiva fase de desenvolvimento do complexo de Édipo, tanto na menina como no menino, a relação triádica ocorre entre o bebê e a mãe; "O pai é um objeto libidinal descoberto dentro da mãe". Ao aproximar essas teorias, a autora demonstra como a analista entra como o "outro" na relação para ser encontrada.

Palavras-chave: amor; continência; situação edípica; triangulação edípica; complexo de Édipo.


ABSTRACT

The author, through instigating clinical material, reflects on the role of love in the building of continence in the Oedipal situation. How does this love permeate the Oedipal triangle even at the beginning of the relationship between the mother and her baby? How would this present itself during analysis? The author takes the theory of Reverie, in which Bion draws attention to the mother's love for the father as an element which is transmitted to the baby. She extends this vertex by using Ogden's theory, which draws attention to the fact that, at this primitive stage in the development of the Oedipus Complex, both in the girl and in the boy, the triangular relationship happens between the baby and the mother. “The father is a libidinal object discovered in the mother”. The author links these theories to demonstrate how the analyst, to be encountered, enters as the “other” in the relationship.

Keywords: love; continence; oedipal situation; oedipal triangle; Oedipus complex.


RESUMEN

La autora, a través de un estimulante material clínico, procura reflexionar sobre el papel del amor como estructurador de la continencia en la situación edípica. ¿Cómo ese amor permea la triangulación edípica desde el origen de la relación de la madre con su bebé? ¿Cómo esto se presentaría en el consultorio del psicoanalista? Parte de la teoría de Reverie (Bion), en la cual llama la atención al amor de la madre por el padre como un elemento que se transmite al niño. Amplía ese vértice utilizando la teoría de Ogden. Pone de relieve que en esta primitiva fase de desarrollo del Complejo de Edipo, tanto en la niña como en el niño, la relación de tríada se produce entre el bebé y la madre. “El padre es un objeto libidinal descubierto dentro de la madre”. La autora aproxima esas teorías y demuestra cómo la analista entra como “el otro” en la relación para ser encontrada.

Palabras clave: amor; continencia; situación edípica; triangulación edípica; complejo de Edipo.


 

 

Há algum tempo, o amor desperta grande interesse como um tema a ser investigado. São várias as associações que faço - dentre elas: a posição amorosa da mãe na relação com seu bebê e a posição que o analista ocupa na sala de análise; a definição de Bion sobre a rêverie e o destaque assinalado por ele quanto ao amor da mãe pelo pai como um dos elementos presentes e consequente transmissão desse sentimento ao bebê.

Essas associações desembocaram em meu interesse em refletir como poderia ser compreendida tal configuração relacionada à estruturação da situação edípica. Poderíamos pensar no amor como elemento fundante na estruturação inicial da triangulação edípica? Como esse amor permeia a triangulação edípica já nos primórdios da relação da mãe com seu bebê? Como isso se apresentaria na sala de análise? Farei uso de material clínico para refletir sobre essas questões. Proponho-me a fazer um recorte e uma reflexão sobre o amor como estrutu-rante da continência na situação edípica.

 

O amor ligado à rêverie

Bion (1962), no Aprender com experiência, em reposta à pergunta por ele mesmo formulada: "Quando a mãe ama seu filho, o que ela faz com isso? À parte os canais físicos de comunicação, minha impressão é que seu amor é expresso pela rêverie".

Mais adiante:

Se a mãe que amamenta não permite a rêverie ou se a rêverie épermitida mas não é associada ao amor pela criança ou por seu pai, este fato é comunicado à criança, ainda que ela não o compreenda. As qualidades psíquicas serão transmitidas através de canais de comunicação que são os vínculos com a criança ... O termo rêverie pode ser aplicado a quase todos os conteúdos. Desejo reservá-lo apenas para aqueles conteúdos impregnados de amor e ódio (Grifo da autora).

O amor está associado à disponibilidade materna em acolher as identificações projetivas de seu bebê, sejam elas boas ou más, e impregnadas de amor e ódio para serem transformadas pela função alfa. Esse estado de mente receptivo a essas identificações projetivas é nomeado por Bion como rêverie. Introduz a ideia de que a dupla mãe-bebê terá maior ou menor capacidade de digerir as experiências emocionais, metabolizando-as no nível psíquico, desintoxicando-as da violência emocional com que as vivências são impregnadas. A introjeção se faz sob impacto emocional, impregnada de amor e ódio, necessitando da dupla tolerância à frustração. Isso para que a rêverie materna, sua função a, possa funcionar modulando a dor mental, as ansiedades catastróficas e tornando-as possíveis de serem pensadas e sonhadas.

Inúmeros analistas contemporâneos desenvolveram a ideia de que a rêverie materna é uma função amorosa, que possibilita a identificação do bebê com a função alfa materna, formando no bebê um continente para o desenvolvimento do pensar e do sonhar.

Sapienza e Junqueira Filho (1997) assinalam que, segundo as tradições míticas, a função do amor é principalmente "gerar uma cooperação entre os seres permitindo que cada um seja mais e, ao mesmo tempo, amplie sua reconciliação consigo mesmo" (p. 185). E isso se dá quando os elementos da dupla suportam, por um sentimento de fé, vivenciar uma entrega profunda um ao outro, vivenciar o sentimento de ser "só e ao mesmo tempo dependente" (Bion,1992). Essa interdependência permite um desenvolvimento da parceria. Aprendi com Sapienza que se há crescimento, este é sempre mútuo; portanto, quando a dupla amorosamente se desnuda, favorece encontro criativo e de desenvolvimento mental para ambos. Penso que talvez aí repouse a concepção de Bion de que "a unidade do homem é o par, o casal" (Supervisão A45). O sentimento de unidade passa pela profunda vivência de se sentir acompanhado, de se sentir junto (vértice intersubjetivo). Por outro lado, esse também é um modelo sexual, de interpenetração: Bion (1966) o representa através dos signos ♀ Continente e ♂ Contido como símbolos de feminino e masculino (vértice intrapsíquico). Esses dois campos se interpenetram, o intersubjetivo em direção ao intrapsíquico e vice-versa.

Sapienza e Junqueira (1997) destacam ainda a importância de que o amor na sessão não seja confundido com uma postura dadivosa no analista, em que tudo é permitido e aceito. Chamam a atenção para o fato de que esse é um campo que favorece inúmeras atuações. Como diz meu amigo Cassorla: "Amigo é aquele que nos diz que estamos com mau hálito". Estar junto não é ser bonzinho, é ser verdadeiro.

Chuster (1999) diz que se o analista ocupa o lugar da função alfa na tarefa de construção do simbólico, isso não "equivale a outra coisa senão a uma questão de amor" (p. 87). Chama a atenção para o fato de que a linguagem analítica somente se torna viável como linguagem de êxito. Language of achievement (Bion, 1970), ou seja, uma linguagem que, segundo Bion, "evolui de sua matriz com amor até ser transformada em consecução". Ainda, segundo Chuster: "O único autor em psicanálise que assume uma posição semelhante a Bion é Lacan, ele diz que o saber analítico é a 'carta de amor'". Nesse sentido, assinala que Bion coincide com Lacan: "a psicose é uma espécie de falência total no que concerne à realização do amor" (p. 88). É um colapso da rêverie, da função alfa e da possibilidade de entrada no simbólico para desenvolvimento de uma linguagem articulada.

Contart de Assis (2011), no belíssimo trabalho publicado na revista Ide, em edição especial sobre o amor, fala sobre o gesto amoroso do analista. Correlaciona o ouro do artista ao ouro do analista. O artista, quando faz sua obra, oferece um pouco de si ao outro, "oferenda do próprio coração como alimento para alma de quem o recebe" (p. 196). Assim também o analista, "quando faz uma notação, uma observação ou formula uma interpretação, por intermédio de imagens, metáforas e palavras", oferece seu coração. E indaga: "Será que podemos dizer que o ouro do analista é 'amar bastante'?" (p. 197).

Ah! Se o amor pudesse assim fluir... Seria maravilhoso. Mas, e as forças em contrário? Como diz Caetano Veloso em Quereres (1984): "Mas a vida é real e é de viés". Aprendemos com nosso maior mestre, Freud (1920), como a pulsão de morte se faz presente. Voltaremos a essa questão.

 

O amor ao pai e sua relação com a estruturação da situação edípica

Foi em Ogden (1992) que encontrei a mais primitiva fase de estruturação do complexo de Édipo. Embora ele não cite abertamente essa passagem na obra de Bion, quanto ao amor ao pai transmitido à criança pela mãe, de alguma forma isso está contido. Sem dúvida ele vai além, e de forma muito feliz discorre sobre essa primitiva configuração edípica.

Chama a atenção para que, nessa primitiva fase de desenvolvimento do complexo de Édipo, tanto na menina quanto no menino, a relação triádica ocorre entre o bebê e a mãe. "The father as libidinal object is discoverd in the mother" (p. 110). É uma descoberta do pai como objeto interno dentro da mãe. O pai é o principal representante do "outro" dentro da mãe. A mãe é um objeto transicional, conceituado por Ogden como "Pre-Oedipal mother" (p. 112). A mãe pré-edípica é um objeto criado - e descoberto por Winnicott (1951/1975) - pela onipotência do bebê, e vai mediar uma passagem não traumática entre os movimentos de relações de objeto interno para as relações de objeto externas. Os movimentos de amor e identificação, tanto no menino como na menina, passam pela identificação da mãe com o próprio pai. Ou seja, a mãe precisa ter conseguido estabelecer com o próprio pai uma firme relação de amor e identificação. É através dessa relação "that the little boy acquires a phallus" (p. 152).

Por outro lado, o bebê, segundo Ogden (1992), vivencia a mãe simultaneamente como: "father-in-mother and mother-in-father" (p. 153). A mãe é o pai que ajuda o filho a desenvolver sua potência, assim como é um objeto externo de desejo. É um paradoxo que permite a entrada no complexo de Édipo.

Penso que aí repousam os primórdios do desenvolvimento da triangulação edípica. A triangulação edípica envolve um complexo conjunto de relações objetais inconscientes. É interessante, pois Bion chama a atenção para o amor da mãe pelo pai da criança como um elemento que é transmitido à criança, e introduz o pai como um terceiro elemento. Por sua vez, Ogden chama a atenção para o amor da mãe por seu próprio pai como um aspecto importantíssimo na transmissão ao bebê de um significado simbólico que permita uma identificação e uma percepção de si.

Ainda segundo Ogden, uma identificação empobrecida da mãe com o seu próprio pai é sentida pelo bebê como ausência do outro, "a missing father-in-mother" (p. 165). A ausência desse terceiro elemento também é por Bion assinalada como tendo um impacto sobre o bebê, e como sabemos, abre enorme campo para fantasias e distorções inúmeras, tão bem assinaladas por Klein e Freud, tais como inveja, rivalidades, ciúmes.

Um aspecto importante assinalado por Klein (1931/1981) é que quando há desenvolvimento, o pênis se converte "no representante do ego do indivíduo" (p. 329). Aponta ela que o descobrir e o penetrar são atividades equiparadas e as correlaciona aos instintos epis-temofílicos e à potência sexual. Assim como também pôde observar uma conexão entre a diminuição da ansiedade e o aumento da capacidade de "conhecer seus próprios processos intrapsíquicos" (p. 328).

 

Fragmentos de material clínico

O paciente já me aguarda quando abro a porta da sala de espera. Cumprimentamo-nos. Ao se deitar, fica um pouco em silêncio e diz: "Eu sonhei que me via em uma casa grande. Parecia que havia uma festa e me encontrava com o prof. Y. Percebi um clima sedutor, homossexual, e comecei a me sentir mal, um mal-estar...".

Lembra-se, nesse momento, das fantasias que tivera ontem, ao chegar de viagem. Falou que saíra da sessão e fora para uma reunião em Curitiba. Ao voltar, experimentara uma sensação de liberdade, ao pensar que a mulher e os filhos não estariam em casa. À noite, em casa, aquela sensação de liberdade o levou a assistir um vídeo pornô, "com aqueles homens de pênis enormes e eretos desejando um ao outro"

Para e diz: "Eu já entendi que as fantasias homossexuais são uma pausa em meu sentimento de perseguição. A outra pausa é quando estou aqui e converso com você, sinto-me aliviado".

Percebo-me acompanhando-o e sentindo uma satisfação por sua capacidade de reflexão.

Ele diz: "É, engraçado, eu saí de um estado de apatia - sentia-me agarrado - para um estado agitado, ansioso" Em seguida, indaga: "São dois estados doentes, não é?"

Eu digo: "É. Diferentemente de quando está aqui, conversando comigo, refletindo sobre as percepções sobre você mesmo. Mas aqui o conhecimento é construído de forma suada, né? Você sonha, sente mal-estar, fica excitado; depois, se sentindo impotente, traz tudo pra trabalharmos juntos". "Dá trabalho" - digo -, "não tem mágica".

Ele diz: "É, mas na fantasia homossexual é fácil, só prazer."

Faz um pequeno silêncio e diz; "Um prazer alucinado".

Vejo-me novamente satisfeita com sua profundidade de percepção.

Repito: "É, um prazer alucinado".

Ele diz: "Gosto quando você me traz para a realidade, quando me mostra que o que construímos aqui é suado, dá trabalho. Dá mesmo, não é fácil vir, pagar. Engraçado, não sei por que estou me lembrando do T."

Conta-me uma travessura (que omito, por segurança) de um dos filhos. Começo a rir e digo: "Que graça!".

Ele diz: "É demais! Quando vejo que sou pai deles, sinto-me potente. Devo ter me lembrado dele aqui porque me sinto potente quando você mostra minha participação no nosso relacionamento. Sinto-me potente nessa hora".

Ficamos um pouco em silêncio. Enquanto pensava no sonho, no mal-estar, ele diz: "O problema é que esse sentimento não permanece dentro de mim por muito tempo. Quando vejo, já estou ansioso, bravo, arrogante, sem paciência".

Conta que conversara sobre sua impaciência com A. (chefe), naquela semana: "Ela me chamou a atenção para minha falta de serenidade. Eu me sinto assim, explodindo".

Lembra-se, nesse momento, do vídeo que colhera no YouTube: O cântico negro, de José Régio, declamado por Paulo Gracindo. Mostra-me no celular.

"Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces

Estendendo-me os braços, e seguros

De que seria bom que eu os ouvisse

Quando me dizem: "vem por aqui!"

Eu olho-os com olhos lassos,

(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)

E cruzo os braços,

E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:

Criar desumanidades!

Não acompanhar ninguém.

- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade

Com que rasguei o ventre à minha mãe

Não, não vou por aí! Só vou por onde

Me levam meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde

Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,

Redemoinhar aos ventos,

Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,

A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi

Só para desflorar florestas virgens,

E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!

O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós

Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem

Para eu derrubar os meus obstáculos?...

Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,

E vós amais o que é fácil!

Eu amo o Longe e a Miragem,

Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,

Tendes jardins, tendes canteiros,

Tendes pátria, tendes tetos,

E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...

Eu tenho a minha Loucura!

Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,

E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que me guiam mais ninguém!

Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;

Mas eu, que nunca principio nem acabo,

Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,

Ninguém me peça definições!

Ninguém me diga: "vem por aqui"!

A minha vida é um vendaval que se soltou,

É uma onda que se alevantou,

É um átomo a mais que se animou...

Não sei por onde vou,

Não sei para onde vou

Sei que não vou por aí

Ao término o poema, ele ainda repete a última estrofe. Observo, aguardo e digo: "É difícil abrir mão desse poder todo, não é? Ou melhor, da ilusão desse poder".

Ele diz: "Esse controle, esse controle me atrai. Veja como a fala dele é potente. A fantasia homossexual me dá isso, Gisèle".

Eu digo: "Pois é, mas aí você não está comigo. Você fica sozinho, desesperado, sem rumo".

Longo silêncio.

Ele diz: "Nós temos que trabalhar muito isso. Como é difícil pensar que, para ser potente, eu preciso do outro. Nós já vimos tanto isso, mas parece que temos que ver milhões de vezes mais".

Silêncio, novamente.

Sinto que naquele momento ficamos juntos, próximos, em um clima sereno - e então digo: "Sinto que estamos próximos agora".

Ele balança a cabeça.

Permanecemos em silêncio mais um tempo.

Digo, enfim, que estava na hora. Ao nos despedirmos, percebo-o emocionado. Ele se despede me agradecendo.

 

Discussão

Esse fragmento de material clínico levanta várias questões importantes. Estaríamos diante de um ataque ao vínculo (Bion, 1959/1967), que o levaria a necessitar ser autossufi-ciente, a dar à luz a si próprio? Nesse caso, estaríamos diante de um narciso que, por uma inveja primária, não suporta ter nascido de um par, de um casal? Necessita ser autossuficiente de forma arrogante, não precisar do outro. Ou, ainda, estaríamos aí diante de um ataque à pré-concepção edípica? Esses são vértices importantes da questão que poderíamos associar à presença da pulsão de morte e que me fazem um profundo sentido. Entretanto, procuro levantar neste trabalho outro vértice para nossa reflexão.

Não poderíamos pensar que este homem se encontra em uma situação dramática, em que urge para viver, como me chamou a atenção a colega Maria Helena Fontes? Urge encontrar um caminho psíquico para poder existir? Sinto que há uma explosão de vitalidade. Uma tentativa desesperada de ter a posse de sua individualidade; uma busca de ser ele mesmo, ainda que de forma onipotente e arrogante. Ele não deixa de reconhecer que sente alívio quando está comigo, fala de uma vivência de pausa em seu sentimento de perseguição. Estaria ele em busca deste pai dentro da mãe?

Há no poema um trecho: "Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém! / Todos tiveram pai, todos tiveram mãe; / Mas eu, que nunca principio nem acabo, / Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo".

Onde estariam os pais? Destruídos por seus ataques? Transformados em fantasia, em uma figura combinada (Klein, 1929)? Ou, poderíamos conjeturar, não encontrados? Onde estaria o amor da mãe pelo pai? Teria esse homem encontrado esse terceiro elemento dentro da mãe? Ele não principia e nem acaba. Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém! Fica sem mãe, sem pai, sem contorno. Filho do amor entre Deus e o Diabo me sugere ausência de pais. Porque não há amor entre Deus e o Diabo.

Ele diz: "É, mas na fantasia homossexual é fácil, só prazer..." Faz um pequeno silêncio e diz: " Um prazer alucinado".

Não poderíamos pensar que ele busca, de forma alucinada, por meio da fantasia homossexual, esse encontro com o pai dentro da mãe? É curioso porque ele diz que já compreendeu que a fantasia homossexual é uma pausa em seu sentimento de perseguição. Entretanto, no sonho, quando ele sente um clima sedutor entre ele e o professor, sente um mal-estar crescente. Ele sexualiza o pai? Nasci do amor entre deus e o diabo. É como se os pais não estivessem lá para serem encontrados. Onde estão os pais? Onde está o amor?

Quando o interrompo em sua apologia à potência, à fantasia homossexual, e ao controle, como descrito a seguir, ele diz: "Esse controle, esse controle me atrai. Veja como a fala dele é potente. A fantasia homossexual me dá isso, Gisèle."

Eu digo: "Pois é, mas aí você não está comigo. Você fica sozinho, desesperado, sem rumo".

Penso que, aí, a analista entra, de forma amorosa, como o outro na relação, como os pais, e aponta que nessa hora ele fica sozinho, desesperado e não está com ela. A analista entra com um limite firme para ser encontrada e com uma potência que o contém. O clima emocional da sessão muda completamente. Isso me sugere a vivência de contenção do choro de um bebê em desespero. Quando o bebê então é contido pela fala da mãe, por sua presença firme e segura, quando a mãe vai ao encontro de seu bebê, transformando o seu pavor em segurança.

A analista capta a mudança no clima emocional da sessão, e assinala ao seu paciente esse movimento: Sinto que ficamos próximos agora.

Sim, há um contorno que me faz pensar no par, no casal. Faz-me pensar na experiência profunda descrita por Bion (1970) de at-one-ment de estar-uno-a. Uma experiência em que analista e analisando vivenciam juntos o sentimento de existência. Há uma verdade compartilhada e vivida que aproxima, une, integra, porque possibilita uma reparação, uma restauração amorosa. É uma experiência que transcende o conhecer - não é conhecida: é sida. É vivenciada. Teria o analisando podido encontrar na experiência com a analista, nesse momento, um continente que represente a presença do casal? Do par? Um encontro entre casais?

Vejamos o que disse Bion em uma supervisão realizada em 1978, em São Paulo: "É um fato curioso. Não sabemos como isso surgiu, e realmente parece que não podemos fugir disso: a unidade humana é um casal! É necessário dois para se fazer um" (Supervisão A45).

Sim, estar-uno-a como é necessário dois para se fazer um - e nesse dois é que encontramos o terceiro. Esse é o drama, a triangulação edípica. Não podemos encontrar nós mesmos sem reconhecer nossos pais, ou ainda os pais de nossos pais dentro de nós. Como nos ensinou Klein, o descobrir está associado ao penetrar, ao conhecer e à potência sexual.

O paciente diz: "Sinto-me potente quando você me mostra minha participação no nosso relacionamento. Sinto-me potente nessa hora".

A potência está relacionada ao conhecer, ao sentir reconhecida sua participação, sua potência na relação com a analista. A analista aponta a existência de um phallus no paciente, aponta uma potência com a qual ele pôde se identificar, seria a father-in-mother and mother-in-father?

Como bem descreve Symington (2007), há um longo caminho a ser percorrido para se tornar uma pessoa. Em sua experiência, diz: "I know I never shall be. I am permanently in a state of becoming". Sim, tornar-se a pessoa que se é passa por poder encontrar nossa mãe, nosso pai e a vivenciar as profundas angústias presentes nesse encontro, que configura a situação edípica desde os primórdios do nascimento da mente e, em algum nível de percepção, de um terceiro elemento, ainda antes do nascimento. E assim, a cada dia, nos deparamos com novas pré-concepções em busca de realizações que possibilitem novas evoluções e crescimento.

Termino este trabalho com o poema "Casamento", de Adélia Prado, que em meu entender, descreve de forma poética esse encontro profundo, a experiência compartilhada de unidade vivida no par, o casal.

Há mulheres que dizem:

Meu marido se quiser pescar, pesque,

mas que limpe os peixes.

Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,

ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.

É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,

de vez em quando os cotovelos se esbarram,

ele fala coisas como "este foi difícil"

"prateou no ar dando rabanadas"

e faz o gesto com a mão.

O silêncio de quando nos vimos a primeira vez

atravessa a cozinha como um rio profundo.

Por fim, os peixes na travessa,

vamos dormir.

Coisas prateadas espocam:

somos noivo e noiva.

 

Referências

Bion, W. R. (1962). Learning from experience. In W.R. Bion, Seven servants. New York: Jason Aronson.         [ Links ]

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Winnicott, D. (1975). Objetos transicionais e fenômenos transicionais. In D. Winnicott, O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1951).         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Gisèle de Mattos Brito
Antônio de Albuquerque, 156/910
30112-010 Funcionários, Belo Horizonte, MG
Tel.: (31) 3225-3574
gisele-brito@uol.com.br

Recebido em 30.9.2013
Aceito em 15.10.2013

 

 

1 Texto vencedor do Prêmio Durval Marcondes, conferido durante o XXIV Congresso Brasileiro de Psicanálise, realizado em Campo Grande, ms, de 25 a 28 de setembro de 2013.

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