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Revista Brasileira de Psicanálise

versión impresa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.47 no.4 São Paulo oct./dic. 2013

 

TRABALHOS PREMIADOS

 

Por que ainda ler Freud?1

 

Why still read Freud?

 

¿Por qué aún leer Freud?

 

 

Berta Homann Azevedo

Psicanalista, membro filiado do Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) e presidente da Associação dos Membros Filiados do Instituto de Psicanálise da SBPSP

Correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo problematiza por que ainda ler Freud e reconhece duas grandes tendências no entendimento da história do movimento psicanalítico que têm efeitos diversos no interesse pela leitura da obra freudiana. A autora afirma a importância de uma leitura implicada e revitalizada de Freud como fundamental para a psicanálise contemporânea.

Palavras-chave: metapsicologia; Freud; psicanálise contemporânea.


ABSTRACT

The following article approaches the question about why Freud is still worth reading and recognizes two trends in the understanding of the history of the psychoanalytic movement which have different effects on the interest in Freud's writing. The author considers a revitalized reading of Freud as being fundamental to contemporary psychoanalysis.

Keywords: metapsychology; Freud; contemporary psychoanalysis.


RESUMEN

En este artículo se habla sobre por qué aún leer Freud y se reconocen dos tendencias principales en la comprensión de la historia del movimiento psicoanalítico que tienen efectos diversos en el interés por la lectura de la obra de Freud. La autora afirma la importancia de la lectura involucrada y revitalizada de Freud como clave para el psicoanálisis contemporáneo.

Palabras clave: metapsicología; Freud; el psicoanálisis contemporáneo.


 

 

Estimulada a produzir um texto acerca das repercussões de um seminário teórico de Freud no espaço de formação analítica, eu me vi refletindo sobre o ato mesmo de ler Freud. Pareceria óbvio que para o vir a ser psicanalista a leitura de Freud fosse indispensável. No entanto, com um pouco de observação e inserção nas instituições formadoras de psicanalistas, percebe-se que esta é uma temática mais complexa e que merece desdobramentos. Não se trata apenas de ler ou não Freud - apesar de, em si, essa já ser uma questão pertinente. É que o espírito com que se entra nessa experiência modifica radicalmente o resultado.

 

Ainda vale a pena ler Freud?

Esta pergunta, dificilmente formulada de maneira explícita, será tomada como eixo de reflexão neste artigo. Trata-se de uma questão aparentemente simples se empreendermos uma visada superficial, mas que pode tornar-se complexa quando levada a sério.

Em uma primeira abordagem do problema, a resposta afirmativa aparece como automática: sim, Freud é o pai da psicanálise, e nós psicanalistas devemos lê-lo. A concordância a respeito de que os seminários de Freud devem fazer parte de uma formação analítica não implica, entretanto, um trânsito contínuo pela obra freudiana na atuação clínica de muitos de nós.

Seria possível dividirmos esquematicamente duas posturas diante dos movimentos históricos dentro da psicanálise. Uma delas, que poderíamos nomear de histórico-genética, considera o desenvolvimento da psicanálise na perspectiva dos avanços sucessivos ao longo do tempo. Desse ponto de vista, entende-se que há uma sofisticação da teoria que se dá de maneira linear, de forma que os autores mais recentes se prestam melhor a responder aos problemas clínicos atuais. Seguindo este modo de ver, poderíamos pensar, por exemplo, em uma evolução das teorias de Melanie Klein em relação às de Freud, e um progresso ainda mais significativo das teorias de Bion em relação às de Klein.

A lógica que deriva desta visão aponta para uma leitura de Freud que ganha um caráter de conhecimento histórico, pouco afinado às questões problemas da contemporaneidade, e o que se passa a buscar nas linhas do texto são, portanto, referências de um pensamento já superado, úteis para a compreensão das origens do que se tem hoje, mas não capazes de estimular inquietações ainda atuais. Tal como em uma faculdade de psicologia, em que nos primeiros semestres os alunos acompanham disciplinas relativas à história da psicologia para depois adentrar nas teorias ainda válidas para o trabalho atual, uma leitura histórica desse tipo torna o contato com o autor menos indispensável, e frequentemente vem acompanhada de uma expectativa de que os grandes autores que fizeram escola depois de Freud já tenham depurado o que há de relevante nele e nos ofereçam uma leitura mais atual e selecionada do que o pai da psicanálise trouxe de contribuição.

A segunda postura identificada não segue um desenvolvimento histórico linear, mas considera que o pensamento psicanalítico se movimenta com avanços e recuos. Falando a partir desse ângulo, Laplanche afirma que o movimento do pensamento psicanalítico se dá "por repetição e ruptura, por banalização e reafirmação, por circularidade e aprofundamento" (1988, p. 52).

Se entendermos que cada processo ocorre não apenas respondendo às demandas de seu tempo, mas também reagindo ao movimento precedente, vindo a ser substituído por outro que possivelmente resgatará do primeiro valores a serem adotados de forma ressignificada, no après-coup, não consideraremos as novidades como respostas definitivas nem a origem como superada. Somente com a abertura provocada por uma visão deste tipo é possível compreender o enunciado de Laplanche, que indica que "os momentos inovadores são também retorno à fonte" (1988, p. 52).

Esta mesma divisão de estilos de leitura é observada também em relação à leitura dos escritos de Freud. Pode-se pensar que as formulações mais tardias, por terem surgido de um Freud mais experiente, devam receber mais crédito que aquelas decorrentes de suas primeiras aproximações com seu objeto de pesquisa. Como alternativa a essa visão, temos uma perspectiva para a qual avanços e recuos operavam no próprio Freud, e este, ao longo do tempo, recuperava temáticas tangenciadas nos primórdios de sua teoria. É possível ver no "Projeto" (Freud, 1950[1895]/2001), por exemplo, o esboço de ideias muito sofisticadas que vieram a ser formuladas mais tarde por Freud ou resgatadas por autores posteriores que lhes deram potência. Na esteira desses pensadores de um Freud não linear, encontramos Monzani (1989), que em seu profundo conhecimento da obra freudiana, oferece ao leitor a imagem da "espiral" e do "pêndulo" para marcar o movimento conceitual presente nesta obra.

O "pêndulo" refere-se ao jogo de forças que polarizam a teoria freudiana e ilustra a oscilação que é possível encontrar em relação aos pesos atribuídos a certos fatores - pesos que variam ao longo da obra de Freud. O pensamento pendular é aquele que avança com oscilações, enfatizando ora um aspecto, ora o seu contrário, muito embora acabe por finalmente integrar tais elementos. O exemplo melhor trabalhado pelo autor diz respeito ao conceito de sedução, que é a princípio afirmado como um acontecimento real, na sequência temporariamente abandonado para o desenvolvimento de seu oposto - a ideia de algo fantasiado pela criança - e, ao final, resgatado na concepção da mãe como primeira sedutora.

Já a "espiral" nos oferece a imagem de um autor que não constrói seu pensamento linearmente, em uma continuidade ininterrupta, abandonando velhos conceitos e se aproximando de uma teoria fechada. Trata-se de um movimento complexo, que recupera, de maneira ressignificada, em cada volta da espiral, temáticas e conceitos já antes considerados em sua obra. O movimento espiralado aponta para questões que são abordadas, esquecidas e, enfim, retomadas, agora em um nível distinto daquele em que foram tomadas originalmente.

 

Freud: um clássico

Não pretendo derivar dessa aposta no retorno à fonte freudiana a conclusão de que tudo o que é antigo vale a pena ser resgatado. A máxima de que os autores clássicos são aqueles que permanecem atuais dá a medida do lugar atribuído a Freud neste artigo: um daqueles autores que têm muito a contribuir para as inquietações contemporâneas, não por estarem na origem de uma disciplina, mas por se mostrarem prenhes de perguntas ainda pertinentes e oferecerem ferramentas para a construção de novas respostas. O que torna Freud um clássico, portanto, e digno de leitura, a meu ver, não é o fato de ser ele o pai da psicanálise, mas sim o de trazer em sua pena o ar fresco do constante rejuvenescimento, que resiste a uma apreensão totalizante e bem-acabada que sufoca. Seu texto sobrevive às condições históricas das quais deriva, influenciando a posteridade e permanecendo aberto e inacabado.

No livro Por que ler os clássicos, Italo Calvino se propõe a definir os clássicos e discutir a importância de sua leitura, chegando a uma definição que vai na mesma direção da que é apresentada aqui: "Os clássicos são livros que, quanto mais pensamos conhecer por ouvir dizer, quando são lidos de fato mais se revelam novos, inesperados, inéditos" (2007, p. 11).

Quando se trata de um clássico, não falamos, por conseguinte, de um convite ao estagnado, à imobilidade. A marca própria do que é clássico é justamente o oposto, é a juventude que resiste e a novidade que insiste em se fazer presente, permitindo uma apropriação singular a cada leitura.

Em uma apresentação de seu método de transmissão da obra de Freud, Cecilia Orsini (2012) destaca um conjunto de ferramentas úteis para acompanhar o leitor em seu mergulho na obra de Freud. A articulação entre tais ferramentas que acompanham o leitor e o necessário mergulho a ser feito pelo próprio leitor fica sensivelmente expressa na imagem recuperada por ela de Marilena Chauí, acerca da relação entre o aluno, o professor e a obra. Chauí (2001) afirma que o professor, assim como em uma aula de natação, pode apenas acompanhar o aluno na água, mas não pode enfrentar por este o embate com ela. Tal embate terá de ser feito diretamente com a água.

No método proposto por Orsini (2012), o professor-leitor de Freud não se oferece para fornecer uma versão definitiva do autor. O professor-leitor, nesse caso, sabe que não pode substituir o mergulho próprio do aluno-leitor e apenas transmite elementos que contribuam para seu contato com a obra. Mesmo as ferramentas propostas para auxiliar o chamado colega-leitor em sua expedição pela obra de Freud - dicionários de psicanálise, biografias de Freud, notas de James Strachey, comentadores e boas traduções - não substituem a própria experiência com o texto.

Uma leitura burocrática de Freud, que não passe pela experiência do corpo a corpo com o texto ou realizada para cumprir um compromisso de erudição, corre o risco de perder a dimensão do que há de mais radical na psicanálise: o poder do inconsciente e da sexualidade na vida psíquica.

 

Um sopro de ar fresco

Freud costuma ser, para mim, um fio condutor que oferece sopros de novidade ao que perde frescor com o tempo; que permite buscar brechas para construir saídas próprias. Atualmente minha principal inquietação clínica diz respeito à possibilidade de escutar o arcaico sem perder a dimensão da terceiridade. Em minha pesquisa de mestrado, estudei casos de histeria escutados no atendimento de pacientes diagnosticados - por neurologistas - com crises pseudoepilépticas. Neste período, fui surpreendida pela constatação da falta de interesse teórico e clínico pela histeria em grande parte dos psicanalistas, e pelo lugar atribuído a ela em certas instituições de psicanálise, como na em que eu me via inserida.

Em um capítulo do livro Crise pseudoepiléptica (Azevedo, 2011), aproveitei do caso de uma paciente cuja história fazia lembrar a Cinderela para perguntar se seria a histeria a Gata Borralheira do século XXI. Ela, que fora a princesa da clínica freudiana, após a morte dos pais que a consagraram, teria sido relegada às cinzas da cozinha.

Hoje percebo que, junto às cinzas da cozinha, estariam também as temáticas edípicas, aquelas que denunciam a existência inequívoca da sexualidade infantil. Nesse movimento de desmerecimento das descobertas inauguradas com os "Três ensaios" (Freud, 1905/2003), a sexualidade, sobretudo a edípica, vai perdendo seu papel como fundamento para a compreensão dos processos de subjetivação.

Em 1995, André Green lança um texto cujo título provocador pergunta: "Sexualidade tem algo a ver com psicanálise?". Essa genial questão reflete a impressão de um psicanalista experimentado de que, mesmo na psicanálise, a sexualidade teria perdido espaço; não seria mais tão reconhecida na clínica; estaria sendo substituída por explicações em termos de relação de objeto. Em sua avaliação, a frequência na clínica de pacientes borderlines, com patologias do narcisismo ou outras estruturas não neuróticas, poderia favorecer a ideia de que seus sintomas teriam pouca conexão com a sexualidade, precisando ser explicados por fatores independentes dela, como a falha na satisfação das necessidades de equilíbrio, tranquilidade emocional ou confiança interna. As fixações são entendidas, afirma Green, como reprodução de uma relação primitiva mãe-bebê aparentemente assexuada, e inclusive as fixações orais, muitas vezes evocadas, são tomadas mais à luz de uma fonte sagrada do que como fonte de prazer.

Nos "Três ensaios", que apresentam a recém-nascida teoria da sexualidade, Freud (1905/2003) já afirmava a prevalência, em sua época, do objeto encobrindo a pulsão em si. Era como se a pulsão ficasse justificada pelos atributos do objeto. De acordo com Freud, na Antiguidade a ênfase recaía, ao contrário, sobre a própria pulsão, que era celebrada entre os antigos.

É justamente a teoria das relações de objeto, desenvolvida por duas linhas principais -a de Fairbairn e a de Melanie Klein -, a responsável pela dessexualização da psicanálise, conforme Green (1995).

Fairbairn foi um psicanalista britânico conhecido por se opor sistematicamente à teoria das pulsões de Freud, que considerava mecanicista e pouco humanista. Como alternativa, passou a se referir a objetos e não a pulsões. A fase oral, por exemplo, poderia muito bem ser nomeada como fase do seio, segundo ele, já que é o objeto que tem importância para a criança, sendo a boca apenas o instrumento para uma estratégia particular de relacionamento com o objeto (Hinshelwood, 1992). Fairbairn substitui a busca do prazer pela busca de objeto, o que implica para Green uma dessexualização da teoria.

Em relação a Klein, as críticas de Green (1995) são feitas principalmente em duas direções. Por um lado, em Klein, a precedência da destruição fez com que a oposição prazer/desprazer perdesse cada vez mais espaço para aquela protagonizada entre objeto bom e objeto mau. Na obra kleiniana, portanto, a temática da sexualidade infantil progressivamente foi sendo substituída pela da destrutividade. Esta crítica, no que concerne à busca por ressexualizar a psicanálise, é legítima. Não é possível, porém, que nos furtemos de fazer a ressalva de que o estudo da destrutividade tem sido fundamental para a ampliação do campo analítico, com a inclusão das problemáticas introduzidas desde "Além do princípio de prazer" (Freud, 1920/2001), com a pulsão de morte. Neste quesito, tanto crítico quanto criticada aportaram contribuições fundamentais, ao buscar, no terreno clínico, fazer trabalhar esse conceito freudiano tão abstrato.

Já no âmbito da sexualidade - e nesse sentido dirige-se a segunda crítica de Green -, Klein parece dar ênfase maior à oralidade, em detrimento de outras formas de prazer. Em sua teoria, a dama da psicanálise elevou o seio à posição suprema, cuja influência estendia seu modelo para a fase genital, conferindo ao pênis um status de órgão de doação e alimentação que, nas palavras de Green, "o torna um seio" (1995, p. 222).

Vemos assim que, ao debater com a obra kleiniana, Green o faz destacando, por um lado, o desvio de atenção que toma espaço da sexualidade para dedicá-lo à destrutividade, e por outro, o privilégio dado à sexualidade oral. Neste ponto, o autor reclama a importância do pai tal como encontramos em Freud, que, na obra kleiniana, passa a uma posição secundária. O que ele parece estar reivindicando, portanto, é a importância da terceiridade e da temática edípica, que se mostram como estruturantes no pensamento freudiano e que perdem peso quando o interesse teórico repousa na relação mãe-bebê. A demanda pela importância do pai está ligada, então, à constatação científica de que o Édipo é estruturante e implica uma terceiridade, o que marca sua concepção de processo de estruturação psíquica.

Em um artigo sobre o pai na teoria e na clínica contemporânea, Fernando Urribarri (2012a), psicanalista argentino estudioso da obra de Green, nos oferece subsídios para pensar o complexo de Édipo tal como o entende André Green.

Para Green, todo sujeito, independentemente de sua estrutura, alcança o Édipo, já que a centralidade deste está no fato de a criança, mesmo antes de seu nascimento, ocupar um lugar no Édipo de seus pais. Ainda que inicialmente a relação principal do bebê seja com a mãe, a situação já é triangular, uma vez que o pai se inscreve como figura de ausência (Urri-barri, 2012a).

O que Green entende como questão na estrutura não neurótica não é a passagem da díade para a tríade, mas a transição de uma "terceiridade potencial (enquanto o terceiro está presente apenas na mente da mãe) à terceiridade efetiva, interiorizada e estruturante" (Urribarri, 2012a, p. 150). Com sua noção de outro do objeto, Green aponta para uma função terceirizante que não é exclusiva do pai, podendo ser ocupada por outra figura - por exemplo, alguém da infância da mãe. Com esse esquema triádico originário, Green dá abertura para um "reconhecimento de organizações triangulares, nas quais se inscreve um terceiro efetivo, onde existe separação primária e alteridade, mas não uma estruturação ou organização edípica (com reconhecimento estável da diferença entre sexo e gerações)" (Urribarri, 2012a, p. 151). A matriz triangular do psiquismo seria, então, a fantasia da cena primária, que, juntamente com o complexo de castração, comporia o núcleo da estrutura do complexo de Édipo.

A partir das leituras de Melanie Klein, é possível perceber que, embora herdeira de algumas das formulações de Fairbairn - que introduziu a questão das relações de objeto, varrendo da cena o pulsional -, ela não perdeu o elemento pulsional em suas próprias formulações. É difícil, portanto, sustentar que esteja ausente em Klein a pulsionalidade. Ela está viva em seus casos clínicos e em suas formulações teóricas acerca dos casos. Se tomarmos seu livro A psicanálise de crianças, encontraremos inúmeras referências à temática sexual. Ao trabalhar a deflexão da pulsão de morte e sua influência na relação da criança com seus objetos, por exemplo, Klein afirma:

... suas fantasias sádico-anais, que parecem formar uma ligação entre o estágio oral de sucção e o estágio oral de morder, têm um caráter bastante definido e contêm ideias de que ela toma posse dos conteúdos do seio da mãe por meio de sugá-lo e de esvaziá-lo (Klein, 1997, p. 150).

Vemos, assim, que mesmo a pulsão tendo recebido um lugar muito particular em Klein quando relacionada ao conceito da fantasia, tal elemento está presente e de uma forma bastante violenta, recuperando, inclusive, a dimensão pulsional da agressividade.

Por outro lado, há em Green (1995) uma crítica interessante sobre pensarmos nossos pacientes como bebês e equacionarmos o mais primitivo e profundo com o mais importante. Sua afirmação de que a relação mãe-bebê é frequentemente evocada de uma maneira assexuada é digna de ser considerada.

A leitura do primitivo como assexual e em oposição a um manejo que leve em conta a terceiridade tem implicações clínicas radicais. Não é o mesmo considerar ou não o Édipo como organizador psíquico, ter ou não uma terceiridade na escuta. A sexualidade se faz presente, por exemplo, quando é possível reconhecer no arcaico a pulsionalidade que lhe é devida.

Afirma Freud em seu "Esboço de psicanálise":

Este primeiro objeto se completa depois na pessoa da mãe, que não só nutre mas também cuida, e desperta na criança várias outras sensações corporais, tanto prazerosas como desprazerosas. No cuidado do corpo, ela se torna a primeira sedutora da criança (1940[1938]/2O01, p. 188, tradução nossa).

Quando Freud afirma a sexualidade envolvida na relação arcaica com a mãe, ele nos aponta uma saída para a colocação do sexual e do arcaico em campos opostos. A vincula-ção com o materno, em Freud, não está, nem de longe, alheia ao sexual; ela, ao contrário, o desperta.

Tangenciamos, desse modo, três diferentes questões que busco aqui apenas pinçar, mas que merecem desenvolvimentos próprios. O desprestígio do interesse por Freud, da atenção às questões edípicas e do olhar para a histeria: três problemas separados, sem necessária relação entre si. Ou não. Talvez tais inquietações não estejam tão afastadas. Quem sabe o interesse investigativo pela histeria e pelos sofrimentos psíquicos frutos do recalcamento e dos enredamentos nas tramas edípicas tenha tido o mesmo destino do interesse pela leitura de Freud.

 

Freud revitalizado

Em uma apresentação realizada em 2012, em São Paulo, Fernando Urribarri expôs as ideias de Green e o incluiu em uma classe de psicanalistas que nomeou como pós-lacanianos, aqueles que seguiram o retorno a Freud, proposto por Lacan, sem necessariamente passar por Lacan para a realização deste resgate.

Urribarri (2012b) apresenta uma forma de ler Freud encontrada nesse grupo de psicanalistas que vai ao encontro da que eu tento formular neste trabalho, aquela da qual sinto falta: não a dos primeiros discípulos, que aplicavam os aportes freudianos com pouca liberdade de modificação; nem a degradada, que encontramos entre as chamadas escolas de psicanálise, que se apropria da parte que interessa da obra freudiana e nega valor a todo o resto; a leitura em questão é a que entende Freud como um grande autor, que mesmo quando se equivoca é muito interessante e pode ter seus impasses tomados como ponto de partida para investigação. Esta é a leitura que, segundo minha avaliação, tem a potência de revitalizar o que há de mais radical na psicanálise e fazer trabalhar a teoria e a clínica lado a lado.

Também em 2012, Urribarri (2012c) publicou um artigo em que aborda as transformações ocorridas na clínica psicanalítica contemporânea. Nele, apresenta-se um recorte proposto por Green (1975) que destaca três movimentos históricos sucessivos na evolução da teoria e da clínica psicanalíticas, cada um deles correspondendo a um modelo teórico-clínico específico.

Os três movimentos - freudiano, pós-freudiano e contemporâneo - são desenvolvidos por Urribarri à luz do conceito de contratransferência, e a leitura histórica complexa e não linear pode ser acompanhada na discussão de cada etapa. O segundo momento, nomeado de pós-freudiano, é aquele marcado pelas escolas de psicanálise, que, partindo dos impasses ligados ao movimento freudiano e permitindo aberturas em direções pouco exploradas, operaram, na sequência, um fechamento reducionista que dificultava a circulação de ideias.

Ao constituir-se como dogma, o modelo pós-freudiano, ao invés de dialogar ou articular-se ao modelo freudiano, tende a excluí-lo e a substituí-lo. Assim, o objeto substitui a pulsão como polo de referência conceitual. O self substitui o Ego. A destrutividade predomina sobre o sexual. As ansiedades prevalecem sobre o desejo. As angústias precoces sobre a angústia de castração. O afeto sobre o representativo. O pré-verbal sobre a linguagem. O diádico sobre o triangular. O arcaico sobre o edípico. A neurose fica esmaecida após a referência à psicose. A figura da mãe obscurece a importância (estrutural) do pai. Uma perspectiva genética e evolutiva ignora o estrutural cancelando a dialética entre sincronia e diacronia (Urribarri, 2012c, p. 54).

O modelo contemporâneo me parece ser ainda um esforço diante da forte impregnação atual do segundo modelo. Esse esforço propõe uma leitura renovada de Freud, atribuindo valor à metapsicologia e ao método freudianos como fundamentos para a psicanálise. Não sugere, entretanto, um retorno ao primeiro modelo, negando as fundamentais contribuições que se deram desde então. Com relação aos aportes pós-freudianos, a tentativa seria de uma apropriação crítica e criativa em diálogo com autores contemporâneos de diversas correntes.

Há na proposta deste terceiro modelo uma busca fundamental por superar os impasses ligados ao fechamento dogmático das ideias - fechamento que reduz o fazer psicanalítico. Muito embora não pretenda um retorno ao primeiro modelo, o lugar de Freud e sua metapsicologia fica ali revalorizado, e constitui uma aposta na esperança de diálogo entre polos hoje colocados como opostos.

Os grandes autores que, depois de Freud, desenvolveram obras elaboradas a ponto de ganhar seguidores - Klein, Winnicott, Bion e Lacan - foram aqueles que se debruçaram de uma forma muito íntima e pessoal sobre a obra freudiana. Cada um deles construiu contribuições singulares justamente porque teve um encontro único com Freud, porque fez trabalhar a teoria a partir de suas próprias experiências e leituras singulares. Considero ser essa a maior prova de que o texto freudiano é um texto mais de aberturas que de fechamentos, um texto que inspira uma postura clínica e que oferece ferramentas teóricas que podem levar a ampliações no campo da psicanálise.

Por tantos motivos, alguns dos quais tentei examinar aqui, advogo por uma leitura implicada de Freud na formação psicanalítica. Certamente isso abrirá para uma movimentação mais rica na obra de outros autores que dele partiram. Se, parafraseando Green, me fosse indagado se ainda teria Freud alguma coisa a ver com a psicanálise, eu gostaria de poder responder que sim, que cultivamos na psicanálise uma leitura vívida de Freud que o vê não como superado, mas como fonte de inquietações.

"Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer", escreve Calvino (2007, p. 11). Freud certamente ainda tem muito a dizer.

 

Referências

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Correspondência:
Berta Hoffmann Azevedo
Rua Manoel da Nóbrega, 354, conj. 85
04001-001 São Paulo, SP
Tel.: (11) 3262-1825
bertaazevedo@hotmail.com

Recebido em 2.10.2013
Aceito em 29.10.2013

 

 

1 Texto vencedor do Prêmio João Bosco Calábria, conferido durante o XXIV Congresso Brasileiro de Psicanálise, realizado em Campo Grande, MS, de 25 a 28 de setembro de 2013.

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