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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.47 no.4 São Paulo out./dez. 2013

 

ARTIGOS

 

O Um e o Múltiplo: sobre a presença do objeto nas transformações em alucinose1

 

The One and the Multiple: about the presence of the object in the transformations in hallucinosis

 

El Uno y el Múltiple: sobre la presencia del objeto en las transformaciones en alucinosis

 

 

Lia Fátima Christovão Falsarella

Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Ribeirão Preto (SBPRP) e membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)

Correspondência

 

 


RESUMO

Neste trabalho, a autora, tomando por base algumas vinhetas clínicas e a teoria das Transformações, de Bion, examina algumas questões relativas à presença do objeto nas transformações em alucinose, cotejando o vértice do analisando, sob o domínio de alucinose, com o vértice da analista como presença real na sala de análise. O trabalho divide-se em duas partes, em que são considerados, sempre sobre base clínica, conceitos essenciais à teoria de transformações em alucinose, apreciando, além de Bion, a contribuição de outros autores. Alguns argumentos de natureza poética também foram utilizados para o incremento da realização das situações em foco.

Palavras-chave: transformações; alucinose; objeto.


ABSTRACT

In this paper, the author, taking as a basis some clinic fragments and the theory of Transformations by Bion, studies some matters related to the presence of the object in the transformations in hallucinosis, comparing the analyzand's vertex under the control of hallucinosis, with the analyst's vertex, as an actual presence in the analysis room. The work is divided in two parts in which essential concepts to the theory of transformations in hallucinosis are considered, always on a clinical basis, showing, besides Bion, the contributions of other authors. Some poetical arguments were also used to further the realization of the situations in focus.

Keywords: transformations; hallucinosis; object.


RESUMEN

En este trabajo, la autora, tomando como base algunos casos clínicos y la teoría de las Transformaciones, de Bion, examina algunas cuestiones relacionadas con la presencia del objeto en las transformaciones en alucinosis, cotejando el vértice del analizado, bajo el dominio de alucinosis, con el vértice de la analista, mientras la presencia real en la sala de análisis. El trabajo se divide en dos partes donde son considerados, siempre con base clínica, conceptos esenciales para la teoría de transformaciones en alucinosis, apreciando, además de Bion, la contribución de otros autores. Algunos argumentos de naturaleza poética fueron también utilizados para el incremento de la realización de las situaciones en foco.

Palabras clave: transformaciones; alucinosis; objeto.


 

 

Ou seja: aquela grande arte é a de tecer, tramar, fazer ligaduras, articulações que cubram com mediações ou intermediários a distância entre o Um e o Múltiplo: a tarefa outorgada pelos Deuses aos mortais é justamente a de tornar relacional o que deixado em si mesmo pairaria como absoluto: impensável, inefável, inatingível, alógon
(Pessanha, 1993, p. 112, grifo do autor).

 

Introdução

Bion (1965/2004) propõe, inicialmente, Transformações como parte de uma teoria da observação para a experiência emocional em curso na sessão de análise. Para além do conteúdo, ocupamo-nos da transformação sofrida, da etapa de crescimento que revela e do uso da comunicação, elementos que determinam a dimensão em que se desenvolve.

O modelo pode ser o daquela imagem das árvores refletidas na superfície de um lago, sujeita a distorções pelas turbulências atmosféricas. Invariantes são apreendidas através de T (processo total): O (experiência, "coisa em si") → Tα (processo de transformação) →Tβ (processo terminado). Tal como as alterações no reflexo da paisagem na superfície do lago, decorrentes de mudanças atmosféricas, podemos considerar as transformações de O na personalidade, apreendidas na comunicação resultante (Tβ).

Transformações em alucinose extrapolam distorções, já que se tem em Tβ um produto alucinado. Considerarei, portanto, alucinose não apenas como um domínio que se opõe ao pensamento, em que a mente opera como músculo e o pensamento equivale a coisa, mas também como uma transformação específica, como podemos encontrar no capítulo décimo da obra de Bion citada acima, em que a identificação projetiva é colocada sob vértice inoperável, e o produto alucinado "surge de uma predeterminação e demanda satisfação de a) uma evacuação da personalidade e b) da convicção que é elemento de sua própria evacuação" (Bion, 1965/2004, p. 151).

A palavra "objeto" foi introduzida na filosofia pelos escolásticos do século XIII. Desde então, tem permanecido fundamental o sentido de objeto como o término ou limite de uma ação, seja de que natureza for. Para Fichte, no século XVIII, tomaria a seguinte forma: "O eu põe a si próprio como limitado pelo não eu e o não eu não passa do objeto" (Abbagnano, 1970, p. 694, itálico do autor).

Para a psicanálise, porém, o objeto é sempre concebido com relação ao sujeito. É quando aquele "transborda do objeto natural", como diz Baranger (1980/1994, p. 280), e carrega de complexidade noções mais seguras como eu - não eu. Desde Freud, a psicanálise vem introduzindo sucessivas rupturas em limites tão precisos. Com o inconsciente, "o que acreditávamos ser o protótipo da unidade e da identidade consigo mesmo, aparece agora como irremediavelmente dividido e alheio a si mesmo" (Baranger, 1980/1994, p. 281). Elevando-se a complexidade do sujeito, eleva-se a complexidade do objeto correlativo. Logo mais, outra grande ruptura: o narcisismo, continua Baranger, introduz a possibilidade de um "roque"2 entre sujeito e objeto. Nessas alturas, estávamos ainda na primeira tópica freudiana. Baranger conclui pela impossibilidade de termos uma única e bem-acabada definição de objeto; nem mesmo se superpõem os conceitos ao longo da obra de um mesmo autor.

Vale lembrar a tendência da psicanálise contemporânea para uma metapsicologia do vínculo, até a assim nomeada "terceira tópica", cuja inspiração remete especialmente a Bion e Winnicott. Essa "clínica do entre dois" (Brusset, 2006) reúne um grupo numeroso de autores de diferentes escolas e modelos teóricos, e marca a tendência mencionada, na qual a psicanálise não se encontra isolada. Acontece com a psicanálise como com qualquer outra área: as teorizações não evoluem independentes das tendências que direcionam as ideias gerais na cultura, sugere Brusset.

Em Bion, a questão relacional é central. Os vínculos de L (amor), H (ódio) e K (conhecimento) ou -L (menos amor), -H (menos ódio) e -K (menos conhecimento) perpassam as bases de toda a sua teoria. O objeto se faz, necessariamente, implícito. Mesmo quando consideramos a possibilidade de o objeto ser ultrapassado ou não ser alcançado, o modelo no qual nos exercitamos continua sendo o vincular.

A necessidade de me debruçar sobre essas questões encontrou ensejo no trabalho com um analisando, pessoa das mais educadas, sério no conduzir sua relação comigo, envolvido com a análise; é delicado nas suas colocações, cuidadoso com as questões do pagamento; parece sentir-se privilegiado pela descoberta da análise em sua vida. Esse mesmo analisando me deixa, frequentemente, com um difícil sentimento de incompetência, de raramente corresponder ao que ele almeja, de ser mais uma decepção em sua vida e de que, a qualquer momento, pode deixar a análise. Essas duas correntes coexistem e se tensionam nos meus sentimentos.

 

Primeira parte

Os fragmentos de clínica que relato nessa primeira parte desenrolam-se ao longo de muitos e demorados meses, em que nosso trabalho parece lento, tendendo à imobilidade e ao silêncio.

Fragmento I

Tudo se repete como em um ritual: aguarda calmamente na sala de espera; entra meio em bloco; uns olhos claros, algo sonolentos; deita-se cuidadoso; pousa mansamente as mãos ao longo do corpo; parece sentir a textura do divã e permanece assim, muito quieto. Tudo parece ser disposto com muito cuidado. Após longo silêncio, fala pausadamente, buscando as palavras que parece depurar: "Estava na sala de espera tentando me perceber..." Menciona algo como uma "agitação lá fora" e continua: "Então, é difícil...". As palavras parecem perderle em vagas distâncias: "O que observo é um corpo... pra variar, tenso". O tom de voz é baixo e a frase termina quase indistinta. Na época, anotei: "Minhas palavras, sejam quais forem, caem como corpos estranhos e lhe servem de âncoras; fica retido no estranhamento delas. Não consigo evitar o receio de lhe causar impacto".

Fragmento II

Desta vez, está um pouco atrasado e recebo-o antes que ele se sente na sala de espera. Deitado, quieto, muito imóvel, parece-me incomodado. Fala reticente de "atraso... agitação...". Havia passado por um trecho empoeirado da estrada, está "suado...". Sinto estranhamente sua imobilidade e, junto, o incômodo, a aspereza, o calor; e ele lento, buscando demoradamente as palavras. Então, diz sentir-se "incomodado... empoeirado..." o que apreendo também como um sentir-se inadequado e até grotesco. Digo: "É, não dei tempo nem pra você se sentar, organizar-se como é seu costume ou 'deixar baixar a poeira', como se diz". Ele sorri, descontrai-se momentaneamente e volta a encapsular-se no silêncio.

Fragmento III

Fala de seu atraso, que tem sido frequente nesses tempos: "Parece aquilo de sempre... Devo organizar-me melhor" Continua pausadamente: "Para vir, devo pegar dinheiro... pôr combustível... abastecer... dinheiro para o pedágio... Com essas coisas que me atrasei! Manhã cheia... correndo... acabo me sobrecarregando". É lento, repetitivo e uma vaga irritação perpassa tudo isso. Intercalam-se silêncios. Diz algo no sentido de "aproveitar o tempo" ali comigo, mas chegou "muito agitado" e, nesse estado, "não sei dizer o que estou sentindo". Digo-lhe:

Pelo contrário, eu o vejo podendo falar de si e, justamente, dessa sua tendência em enredar-se em exigências que o aprisionam. Não vem, simplesmente, abastecer-se comigo; precisa abastecerle antes de tranquilidade, de clareza, de entendimento para o que sente. É uma ideia que tem de como deve estar aqui comigo. Hoje, o esquema não deu muito certo, o que o irrita, mas nos coloca mais próximos.

Em um ímpeto, responde: "Poderia chegar aqui e dizer que me sinto agitado, cansado, com medo e ir dizendo...". Mas logo se recolhe no silêncio costumeiro.

Fragmento IV

Boceja muito durante as sessões - geralmente, quando falo com ele. Ao observar-lhe essa coincidência, ele insiste que seu sentimento é de conforto, que aqueles bocejos sem controle, que o fazem lacrimejar e estremecer, dão-lhe uma sensação de relaxamento. Diz que, ali comigo, "é diferente"; sente ser necessário "deixarpara lá a rotina, a correria"; prepara-se para a sessão como para um "momento especial". Mas percebo e digo-lhe que esse movimento me exclui, a mim, sua analista, presença real. Os bocejos, contudo, sucedem-se. Vai ele entrando, entre um bocejo e outro, em um estado que aparenta perfeita calma e plenitude, e encapsula-se em uma espécie de gozo consigo mesmo, em um silêncio sem brechas para mim. Observo-lhe isso e ele responde com bom humor: " Você não tem utilidade agora!" Fico ali como uma espécie de guardiã daquele estado. Mas isso se esgota; aparece o enfado, uma profunda amargura por "essa vida insossa" diz ele. E eu lhe digo: "O problema é que você entra, mas não sabe sair a tempo".

Comentários: divisões e alucinose

Tomarei essas vinhetas como um conjunto do qual destaco, inicialmente, um aspecto que me parece o mais emergente: a divisão que, persistentemente, aparece em vários níveis.

A divisão nos processos mentais foi examinada por Freud em um pequeno artigo de 1938, intitulado "A divisão do ego no processo de defesa", que veio no rastro do "Fetichismo", de 1927, e que pode, para os fins desse trabalho, ser lido em conjunto com "A negação", de 1925. Neste último artigo, Freud chama a atenção para o teste de realidade, cujo objetivo primeiro e imediato não é "encontrar na percepção real um objeto que corresponda ao representado, mas reencontrar tal objeto, convencer-se de que ele está lá" (1925/1974, p. 298, itálicos do autor). Creio podermos vislumbrar, aqui, uma forma narrativa das bases para todo o domínio do alucinatório. Mais adiante ele continua: "Contudo é evidente que uma precondição para o estabelecimento do teste de realidade consiste em que objetos, que outrora trouxeram satisfação real, tenham sido perdidos" (p. 299). No "Fetichismo" (1927/1974), o grande objeto, cuja renúncia é ludibriada, é o "falo materno", o completo, o perfeito, o não castrado ou absoluto. Já em "A divisão do ego no processo de defesa", Freud volta a "essa maneira de lidar com a realidade, que quase merece ser descrita como astuta" (1938/1974, p. 311). São suas palavras para um sofisticado processo que não implica simplesmente alucinação do objeto faltante, mas algo mais sutil como um "deslocamento de valor" (p. 311). Mais uma vez, parece abrir-se uma janela para o imenso campo do alucinatório.

A divisão, sempre de índole organizadora, está nas bases desses processos. Na situação que examino, é um recurso predominante. Podemos identificá-la em vários níveis.

No espaço: o ritual em que transforma sua vinda e, na chegada, uma espécie de antis-sepsia na sala de espera, em que a agitação, a turbulência, a poeira, o medo ficam de fora. Ali, nessa divisão geográfica, é lugar especial, possivelmente de ordem, de perfeita harmonia e descanso. Com isso, ele predetermina que lugar é esse, como deve ser o clima entre nós, o que deve entrar ou não nesse campo.

No ego: "Estava na sala de espera tentando me perceber...". Esta é uma fala inicial frequente, quase um chavão, que denota uma divisão na personalidade. Entra para a sessão o observador de si mesmo, e a maneira como isso se dá, nessas sessões, sugere a usurpação do lugar da analista.

Na fala: as palavras, tanto as dele quanto as da analista, são tão depuradas, tão demoradamente escrutinadas, que é como se temesse que, inadvertidamente, alguma escapasse com um traço de emoção e viesse perturbar o campo, criando turbulências indevidas. A divisão é entre a palavra e o conteúdo veiculado; entre a palavra e a emoção. Isso nos leva, muitas vezes, a ficarmos retidos no silêncio.

Entre mente e corpo: "O que observo é um corpo tenso" diz ele, como se entre o sujeito que observa e o corpo tensionado não houvesse continuidade. Toda a depuração que faz parece se descarregar no físico, resultando um corpo tenso e imobilizado, uma espécie de depósito lacrado e alienado. Pouco ele discorre sobre isso, a não ser quando sobressaltado por algum temor hipocondríaco. Mas sei que fica, muitas vezes, aprisionado por ali, nas "sensações".

No objeto: temos, desde Freud e Klein, a ideia de que não é possível dividir o ego sem dividir o objeto e vice-versa. Ora, o paciente procurou-me para obter ajuda analítica para dificuldades suas. Mas, aos poucos, ele parece convencer-se de que ele mesmo deve providenciar essa análise, criá-la ao seu modo: um lugar agradável, especial, "nirvânico" como muitas vezes lhe digo. Com esse intuito, tenta prover para si mesmo "tranquilidade, clareza, entendimento", tudo o que, em princípio, fora buscar comigo. Eu, analista real, não tenho "utilidade", como ele diz. Ele provê a si mesmo a análise de que acredita precisar. Poderíamos pensar em um "roque", como diz Baranger (1980/1994), em que o ego ocupa o lugar do objeto.

Desse vértice, a analista, como presença real, torna-se um problema, representa o risco de que toda essa construção mágica, como viemos a nos referir frequentemente, se rompa e, com muito sofrimento, ponha em movimento o aleatório da vida e das relações. A analista real torna-se, nesse âmbito, uma espécie de rival.

Aqui, a divisão organiza a situação de forma perversa, falsa. A dificuldade, como diz Bion (1965/2004), é tolerar a necessidade de que dois objetos se unam de forma criativa. Nega-se que a unidade psíquica seja o par, tal como proposto em Aprendendo da experiência (Bion, 1962/1980). Um continente em busca de contido ou uma preconcepção em busca de realização são modelos substituídos por predeterminação e evacuação. Nesse domínio, que penso ser o da alucinose, a característica violência das funções primitivas faz diminuir o interesse pelo objeto, pela verdade e pela vida (Bion, 1992/1996). Isso determina que os produtos (Tβ) de alucinose sejam categorizáveis na coluna 2 da Grade. Por mais sofisticados que sejam, são como simulacros; o uso é o de evitar contato com realidade dolorosa.

Um acréscimo de grande valia e utilidade para a investigação desse campo é o desdobramento da Grade, proposto por Cecil Rezze (2008), em uma Grade Negativa3, a partir da coluna 2, servindo essa à categorização dos elementos de alucinose, que ocupariam os alvéolos a partir da fileira -C. Poderiamos encontrar aí, então, elementos bastante sofisticados.

A realização correspondente pode se dar por uma sensação peculiar e incômoda do analista em tais situações, como a de não haver pontos de contato, como a de um pairar alguns centímetros da superfície, do real. Quando se rompe esse simulacro, ambos, analisando e analista, podem experimentar alívio e uma sensação confortável de algo que "dá liga", que o analisando também costuma reconhecer.

Bion diz, no capítulo quinto de Transformações: "Tolerar frustração envolve se conscientizar da presença ou ausência de objetos, e daquilo que, posteriormente, uma personalidade desenvolvida vem a conhecer como 'tempo' e 'espaço' (conforme descrevi a 'posição' onde o seio costumava estar)" (1965/2004, p. 71). A divisão, reconhecível em todos esses níveis, tem a função de prover e sustentar um simulacro de realidade, um mundo perfeito, pleno, nirvânico. Granel et al (2004) falam de como se estabelece uma franca inversão do tempo, em uma lógica em que a satisfação da necessidade aparece antes que a necessidade e assim fica anulada qualquer possibilidade de frustração, configurando-se um triunfo sobre o objeto, o espaço e o tempo, desaparecendo esperas e distâncias.

Em alucinose, sob o domínio da intolerância à frustração e da voracidade, compreendo que o estado emocional em relação ao objeto é o de estar suspenso entre o imperativo de ser - algo como uma determinação preexistente, talvez um D3 na grade negativa (-D3) (uma demanda voraz de algo que nunca deixou de existir), porque se nega a ausência, o lugar onde o seio estava - e a impossibilidade de vir a ser, porque o lugar da possível existência não há, seja porque é negada a ausência, seja porque, se considerada existente, é hostil e voraz.

A clínica correspondente é o silêncio. O analisando recolhe-se nesse estado, com aparência de perfeita calma e plenitude; silêncio sem frestas, de onde reconhece, com humor, a inutilidade da analista. Recorro, para a realização desse estado, às poéticas palavras de Haquira Osakabe em seu texto sobre O livro do desassossego, de Fernando Pessoa: "manifestação de uma carga espantosa da recusa da vida e da espantosa impossibilidade de conceber outra vida possível" (Osakabe, 2005, p. 430).

Enquanto a analista aguarda, como guardiã que de fato é, a situação se esgota. Fracassa a tentativa de negar o "desassossego". Sobrevém o enfado, a profunda amargura por "essa vida insossa" Bion faz notar o fracasso dessa satisfação obtida com as próprias criações. Do vértice do sujeito, "ele fica inteiramente independente de qualquer coisa ou pessoa que não seus produtos; consequentemente, fica além da rivalidade, inveja, avidez, mesquinharia, amor ou ódio; mas a evidência de seus sentidos desmente suas predeterminações; ele não fica satisfeito" (Bion, 1965/2004, p. 151).

 

Segunda parte

Seguem três fragmentos clínicos, comentados separadamente, mediante os quais continuo considerando a presença do objeto.

Fragmento I

Deita-se e começa a contar, daquele seu jeito meio vago, dúbio, cheio de reticências, que, na sala de espera, lia uma reportagem sobre a África, um daqueles países em guerra civil, "coisas terríveis...". Seria bom para afastá-lo da sua rotina, comenta. Mas pensou também que "isso da África poderia já não ser mais assim. Só uma ilusão!". De toda forma, serve para afastá-lo "do trabalho, do dia a dia... Aquela coisa de ser levado, forçado pela rotina" diz ele.

Penso que procura um lugar que não existe, um jeito de ficar em suspenso. Ele prossegue entrando nesse clima de rechaço, de enfado e já não sei os limites disso. Então, faço uma pergunta, para me localizar, que tem a ver com sua falta na última sessão. Ele me dá uma resposta lacônica e volta aos bocejos, ao silêncio e ao clima de enfado. Eu pergunto a seguir: "E hoje, por que veio?". Ele se surpreende e sorri: "Bom, eu venho porque tenho esperança. É bom para mim, não de imediato... Mas é bom para mim! Acho que na segunda-feira não acreditei que fosse sair daquele enfado..." Esse despertar é efêmero, e logo mergulha de vez em uma inércia pegajosa.

Boceja incontrolavelmente, espreguiça-se tanto que chega a estremecer sobre o divã; de quando em quando, entre um bocejo e outro, faz largos círculos com ambas as mãos ao redor dos mamilos. Um sentimento de desânimo, de fracasso e inadequação invade-me nessa hora. Fico ali, enquanto ele mergulha naquela espécie de torpor masturbatório, até que digo algo assim: "Você massageia sua sonolência...". E ele completa com uma frase que, algum dia, foi dita por mim: "Deve haver algo de prazeroso nisso, senão eu não me sentiria tão atraído por essa inércia". Fala naquela posição de observador de si.

A situação prolonga-se; arrisco sair do meu constrangimento e digo, em um tom bem-humorado, usando, por minha vez, uma expressão dele: "Só se apelarmos pra sua benzeção: 'passa morte que estou forte!'. Porque é mesmo uma situação mortífera!". Ele sorri e emenda:

Isso me traz boas lembranças... Outro dia senti um cheiro agradável, não sei bem do quê... que me fez lembrar uma benzedeira lá da minha cidade. Pessoa muito boa! Deram, recentemente, o nome dela a uma creche. Ela benzia tudo... Já muito velha, meio caduca... E ela benzia adoidado! Ninguém entendia nada, mas ela benzia... Aquela pessoa alta, muito magra... Uma imagem: muito magra mesmo, uma roupa transparente, o sol batendo por trás... Puro osso! E ela benzendo... esclerosada, caduca... A meninada ria... Uma coisa meio cômica!

No primeiro momento, fico meio atordoada por duas imagens superpostas: uma lembrança cálida, boa, reconhecida e/ou uma situação cômica, ridícula, um fantasma denegrido. É o fim da sessão, mas aquilo é comigo, sem dúvida!

Comentários: transformações autísticas e alucinose

Bem mais tarde ele vai dizer: "Tenho substituído o mágico pelos afetos". Mas aqui, quando o apreendo procurando um lugar que não existe, a projeção a longínquas distâncias africanas ainda é salvaguarda de uma proximidade intolerável. Nessa posição, tempo e espaço são suspensos como dimensões progressivas; hipérbole é defesa: "coisas terríveis" se passam na longínqua África, mas lá é melhor que aqui. Nessas distâncias inalcançáveis nada pode ser vivido nem destituído.

Há um momentâneo vir à tona antes de submergir de vez, quando responde minha pergunta, meio que pego de surpresa, e fala, muito honestamente, das suas esperanças e desesperanças com a análise; logo em seguida ele mergulha, profunda e demoradamente, em um mundo corpóreo, em um primitivo mundo de sensações táteis, musculares, cenestésicas, em um absoluto isolamento do externo, parece-me. Eu, como outro, objeto real situado fora dele, já não existo. Observando-o naquele ritmo de bocejos e espreguiçamentos, os quais se alternam com movimentos em que ambas as mãos fazem largos círculos ao redor dos mamilos e convergem para o centro do peito, tem-se a impressão de uma descarga ali mesmo na musculatura, nas articulações, em uma espécie de autofruição.

Chamam-me a atenção os círculos duplos, sincrônicos, em movimentos convergentes e repetitivos. Seriam, talvez, algo da natureza de um rito, controlável, a busca de uma "forma mágica", no dizer de Tustin, que se relaciona à "experiência de sentir-se contido - circundado - por um ambiente sustentador que gira em torno ... O círculo é expressão deste sentimento de contenção e contentamento eternos" (Tustin, 1990, p. 132). Em termos mitológicos, o círculo remete-nos à perfeição, muitas vezes, com um tom de fatalidade.

Todas essas faixas, laços alados e inúteis ..., da conexão de tudo com tudo, que sozinha dá sentido à vida ... Mas não podemos vê-las sempre, e nem devemos, porque ficaríamos paralisados e prisioneiros ... Em raras ocasiões as faixas se torcem e se entrelaçam conosco até que sua ponta livre se enrole noutra extremidade livre. Ficamos então suavemente assediados pelas faixas, que formam um círculo. E aquela é a coroa, a perfeição (Calasso, 1990, p. 197).

Granel et al (2004) atentam também para o aspecto bidimensional de círculos, linhas e outras figuras geométricas que pertencem à espacialidade bidimensional inicial. A essa noção de espaço corresponderia uma noção de tempo aplainada, sem profundidade, na qual existe movimento mas não progressão. Tustin também insiste na questão da bidimensionalidade de objetos e formas autísticas: importa a impressão que deixam na superfície do corpo; não têm, diz ela, "significado em termos de objetos reais, tridimensionais no mundo exterior" (1990, p. 238). Impera a noção irrealística de viver para sempre, "através da ilusão de ligação contínua carnal com um 'ser' eterno" (p. 235).

O predomínio dessas formas sensoriais remete-me a transformações autísticas, conceito desenvolvido por Célia Korbivcher, inspirado nas noções de Tustin sobre autismo e barreiras autísticas em personalidades neuróticas. Nos estados autísticos, diz Korbivcher, "não há a noção de objeto interno, nem de objeto externo, uma vez que a sua representação a nível psíquico não se constitui" (2001, p. 943). E mais adiante: "ela se recolhe num estado encapsulado, gerando um objeto a partir de sensações obtidas no próprio corpo, entretendo a sensação de continuidade corporal com o objeto externo" (p. 948).

Voltando ao material que estou examinando, penso que, nesses dois movimentos, tanto o de lançar-se a distâncias africanas quanto o de mergulhar em sensações corpóreas, o estado é o do "onipotente↔desamparado" (Bion, 1965/2004, p. 69). A presença real do objeto é tida para negá-la. Embora contrastantes, creio que sejam verso e anverso de processo análogo. O domínio me parece o mesmo: o da alucinose, do Um, da rivalidade com O. Enquanto no movimento hiperbólico a projeção para além ultrapassa o objeto real, nas transformações autísticas Tβ permanece aquém do objeto e pode derivar de predeterminações que se realizam em formas inseparáveis das sensações que produzem.

Porém, na sessão, algo se movimenta a partir daí, talvez pelo jogo que espontaneamente vamos realizando, em que ele tem as minhas falas, e eu, as dele. É como se eu houvesse, de forma lúdica, aberto a guarda, vamos dizer assim, para ele manifestar, com todo o requinte, sua dor, sua revolta, sua decepção e seu ódio, agora, comigo. A benzedeira caduca, benzendo adoidado é mais que uma metáfora: é expressão contundente de perda dolorosa, de ruptura da perfeição do círculo. Todo o processo é projetivo. Nesse momento, há um dentro e um fora, algo em direção a, um continente e um contido. Penso que podemos falar, nesse terceiro movimento, de transformações projetivas. A analista, como objeto externo, é alcançada para conter dor e ódio.

Fragmento II

Começa a sessão, como frequentemente, dizendo que estivera se observando na sala de espera. Lera uma entrevista com um filósofo, algo sobre como lidar bem com situações da vida... Depois, segue contando - parece animado - de um encontro que teve, que foi muito bom, "esplêndido". Demora-se em alguns detalhes dessas situações, com comentários positivos. Quando faço menção de dizer algo, ele principia com os bocejos incontroláveis e mergulha em silêncio... Mais adiante, confessa uma "indiferença", e o silêncio se estende até quase o fim da sessão. Nada me ocorre que possa dizer-lhe, além do que algumas vezes já lhe dissera: do repúdio à minha presença, o que, pela minha experiência, não alteraria muito a situação. Deixo-me assim, então, meio entregue à fatalidade, procurando não me constranger tanto com o habitual sentimento de incompetência que nessas horas costumava me invadir. Até que me surge a situação tal como a comunico: "Hoje, você veio aqui apenas para se exibir e me desdenhar". Reage impactado: "Como assim?" Prossigo: "Você veio provido da sabedoria do seu filósofo, do encontro 'esplêndido' que já teve. O que você vai querer comigo? Sobra-me o desdém dos seus bocejos". Vivo essa situação como extrema. Preocupa-me como teria sido ouvida e não tenho tempo, naquela sessão, para investigar isso. Mas, a seguir, sua pontualidade e uma disposição inusitadas fazem-me acreditar ser esse um bom caminho.

Comentários: hipérbole e transformações em alucinose

Creio que aqui se apresentam transformações em alucinose com toda sutil violência. Esse modo frequente de o paciente começar sua fala, dizendo observar-se a si mesmo, já evidencia uma divisão propícia. Ele é observador de si; de certa forma, a posição da analista já é usurpada. A capacidade de o analisando observar algo de si pode ir na direção de transformações em conhecimento (vínculo K), caso permita correlações, e isso se relaciona à possibilidade de admitir dois objetos unindo-se criativamente. Nesse caso, contudo, não só a união não é possível, como a posição é de triunfo sobre o objeto tal como se apresenta em uma dada realidade, a analista como um objeto externo. Aliás, estas dualidades, dentro-fora, eu-não eu, sofrem reduções a um só termo; não há essa bipolaridade. No dizer de Bion: "coloca-se identificação projetiva em um vértice tal que ela fica inoperável; assim, uma parte da personalidade do paciente vai ocupar o lugar do analista para negar aquele vértice ao analista" (1965/2004, p. 149). Creio que o temor, nesse caso, é exatamente ao movimento aleatório da vida e do acasalamento.

Temos, pois, nas bases da dinâmica da alucinose, a rivalidade; em última instância, rivalidade com O. Em direção a O significa aproximar-se de um vértice do qual se reconhece estar separado e com o qual se tenta estar em uníssono. Rivalizar com O é triunfar sobre essa distância, sobre qualquer busca. O paciente começa a sessão provido daquilo de que precisa. Ele, provedor de si mesmo, não busca - traz consigo a sabedoria, as regras do bem viver e a plenitude do encontro esplêndido.

Em alucinose, em um domínio em que impera a violência das funções primitivas, a mente opera como músculo e o pensamento equivale a coisa. A realidade de que se cerca o paciente e dentro da qual se coloca imantado no longo silêncio que se segue é produto de evacuação alucinatória. A mente opera em hipérbole, a projeção não é projeção para dentro de algo, o que pressupõe a necessidade de um dentro e um fora, um eu e um não eu, a possibilidade de um acasalamento e, portanto, a possibilidade de um tornar-se O (→ O). Em hipérbole, a projeção tem um vigor que pode chegar à violência, guarda relação com "o significado primevo da hipérbole como um 'ultrapassar, no arremesso' a alguém, significando rivalidade" (Bion, 1965/2004, p. 175). De modo que, em relação à analista, pessoa real do mundo externo, as demandas do paciente ultrapassam-na, vão além dela. Penso que isso se relaciona a uma sensação, comumente vivenciada pela analista, de não haver interlocução possível; simplesmente não há o que dizer.

Podemos ir um pouco mais, realizando isso ainda com o modelo de hipérbole, tão aproveitado por Bion nesta como também em outras direções. Em hipérbole, a distância a que se projeta o objeto equivale, diz Bion, usando os termos irônicos de Berkeley, aos espectros de quantidades idas ou, de outro modo: se distância = ψ (ξ); ξ, que seria o elemento insaturado, é na verdade quantidade que não existe. A distância "poderia ser, onde a quantidade estava ou onde vai estar, mas não onde está" (Bion, 1965/2004, p. 176).

Podemos então dizer que a distância se reduz a ponto (. ), a preconcepção é substituída por predeterminação, o objeto é alucinado. Não há outro, dentro e fora, ou outro dentro do qual se projeta algo. O objeto, em alucinose, é predeterminado, fruto de evacuação alucina-tória e com a convicção de que é evacuação sua, da sua "crença que existe, ou deveria existir, ou vai existir (mesmo que tenha que ser criado por ele mesmo) um objeto ideal que existe para se auto-satisfazer" (Bion, 1965/2004, p. 157).

Fragmento III

Após breve silêncio e aquele seu ritual de acomodar-se cuidadosamente, ele começa falando, no seu tom de observador, do "dia ensolarado" do "céu azul" de ter vindo "pela estrada sonhando com uma praia..." E continua, agora, algo reticente e sonhador: "A areia... Ah! A areia... Um peixinho... Esse céu azul é instigante..." - essa última frase vai quase sumindo. Aguardo, e como ele não prossegue, digo, em um tom que penso ser acolhedor: "Instiga seu desejo e sua imaginação...". Não responde, emudece e aquele enorme silêncio é cortante. Então, comento: "Parece que não sou bem-vinda nos seus sonhos. Você faz um corte e se retira para o silêncio". Responde como quem saísse das profundezas da letargia e parece enormemente decepcionado: "Impacto com a realidade! Me sinto idiota... Não há praia mesmo..." Digo: "Não há praia e também não pode sonhar junto de mim. Só usufrui disso sozinho. Se me apresento, isso fere você. Dói o que não é você. Você faz um corte e se retira para um emburramento". Porém, nossa conversa dessa vez continua...

Comentários: Um →Múltiplo

Em alucinose, por mais sofisticados que pareçam, os produtos mentais equivalem a elementos β - não se prestam a sonhos nem ao ciclo contínuo de transformações. Transformações em alucinose encerram-se em si mesmas, prestam-se a mais transformações em alucinose, a menos que penetremos as "frestas" (Rezze, 2003). A questão é "como se", ou seja, dependente do uso da comunicação.

O paciente sonha com um dia ensolarado, um céu azul e uma praia... Mas trata-se de uma vivência que não suporta ser compartilhada. A situação rompe-se quando eu me apresento. Ele fala no impacto que ocasiona minha fala e se retrai como que ferido: "Não há praia nenhuma mesmo..." como se eu o humilhasse com a simples introdução de estarmos às voltas com "seu desejo e sua imaginação" Ou seria tão só a minha fala e não o conteúdo dela? Como diz Giuffrida,

... iludir a frustração ou modificá-la dependerá não apenas da tolerância do sujeito à frustração em si mesma, mas também, e talvez principalmente, da sua consciência de que o objeto presente é outro, isto é, não é aquele cuja expectativa estava "desenhada" em sua mente (2001, p. 40).

A transformação matemática de alucinose, diz Bion, pode ser expressa por 1 + 0 = 1, em um domínio em que se extraiu a qualidade zero de zero. Ou seja: a ausência é negada, o lugar onde o seio estava é despojado de existência, de tal modo que o 1 resultante é elemento coluna 2. Aqui, 1 é compreendido "como significando que um objeto é desprovido de dimensões porque ele tem dimensões que têm que ser incapacitadas de transformação" (Bion, 1965/2004, p. 149). Essa é uma matemática própria da violência das funções primitivas.

O Um, Tβ, produto e objeto da alucinose, objeto despojado de dimensões, incapacitado de transformações, categorizável na coluna 2 da Grade, exprime resistência → O.

Ora, o analisando viaja centenas de quilômetros para estar naquele encontro comigo; pontualmente me aguarda; cumprimenta-me, afável; narra cenas agradáveis da sua observação e do seu imaginário: "dia ensolarado" "céu azul"... Aparentemente, são ofertas em minha direção. Porém, tudo indica que a situação não se presta a ser compartilhada, parece não haver essa direção para mim. Creio, mesmo, que não há direção, não há algo em busca de. A vivência parece encerrar-se em si mesma; colocada à distância hiperbólica de uma praia ideal, um tempo e lugar ideais; de tal forma que minhas palavras ou, talvez, tão somente minha voz, desencadeiam um corte e a rivalidade é francamente estabelecida: "Impacto com a realidade! Me sinto idiota", lamenta. Meu aparecimento em cena ameaça sua hegemonia, ameaça seu "reinado", como às vezes lhe digo.

"Instiga seu desejo e sua imaginação" é minha fala em K (conhecimento). Do todo, um aspecto é ressaltado e proposto como hipótese definitória. É tal como se eu dissesse: podemos conversar por esse vértice. Nomear, numerar é estabelecer ligações, é apoderar-se de uma conjunção constante, de um grupo e ligá-lo. "O processo de vinculação constitui uma parte do procedimento pelo qual algo é 'do infinito vazio e sem forma arrebatado'; este processo é K" (Bion, 1965/2004, p. 165). Ou, nos termos do filósofo:

Relativizado o Um, por sua intrínseca relação com o Múltiplo; relativizado o Mesmo, pelo indissolúvel liame que o prende ao Outro; relativizado o Ser pela inevitável vinculação ao Não-Ser (enquanto alteridade), a própria essência eterna perde a singeleza e adquire complexidade onto-lógica: torna-se misto, mistura essencial e modelar (Pessanha, 1993, p. 108).

Ligar assegura coesão e limita a irrestrita liberdade, o que, nesse momento, é sentido como um desnudamento violento. Talvez, possamos realizar por aí a equação proposta por Bion de 0 + 0 = 0°, sustentada em "suprimentos irrestritos de nada" (1965/2004, p. 148), estado de completa liberdade da restrição imposta pelo contato com realizações de qualquer tipo. É a mais absoluta impossibilidade do vir a ser onde, talvez, o silêncio seja a resposta.

O Um, eternidade, finitude (pois se limita, inexoravelmente, a ser somente aquilo que é), imutabilidade, indivisibilidade, homogeneidade, é negação do grupo, da relação, do outro, do vínculo, de transformações em K, que possibilitariam o sentido de dentro e fora, objetos internos e externos, introjeção e projeção, continente e contido, todos associados a K. Transformações em K que poderiam conduzir a Transformações → O, onde tento estar em uníssono com um vértice do qual reconheço que me separei; diferente da posse voraz, da rivalidade com O que conduz, inevitavelmente, à imobilidade.

No entanto, finalizando esse fragmento, observo: Porém, nossa conversa dessa vez continua..., assinalando na direção de recompor o ciclo contínuo de Transformações → Infinito ou do Um → Múltiplo.

 

Referências

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Correspondência:
Lia Fátima Christovão Falsarella
Rua Prudente de Morais, 1570, sl 203
14015-100 Ribeirão Preto, SP
Tel.: (16) 3636-0946
liafcf@gmail.com

Recebido em 26.11.12
Aceito em 30.8.2013

 

 

1 Trabalho apresentado em reunião científica da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Ribeirão Preto, em 23 de abril de 2008, e da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, em 25 de abril de 2009.
2 "Roque" é uma interessantíssima figura de linguagem usada por Baranger - ao que tudo indica, extraída do jogo de xadrez, em que a torre é colocada na casa vizinha à do rei, e este na casa do outro lado da torre. As duas peças giram, trocam de lugar, por assim dizer. Isso só é possível sob certas condições, e visa a proteger o rei, que é a peça central do jogo.
3 A proposta de uma Grade Negativa foi desenvolvida e discutida por Cecil Rezze ao longo de seu trabalho "Turbulências nos conceitos ao tentar criar uma Grade em -K", originalmente apresentado em reunião científica da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, em 25 de maio de 2005, e publicado em Roma em 2008.

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