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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.47 no.4 São Paulo out./dez. 2013

 

INTERCÂMBIO

 

Relações sem objetos relacionados: notas sobre técnica analítica1

 

Relations without related objects: notes on analytic technique

 

Relaciones sin objetos relacionados: notas sobre técnica analítica

 

 

Leandro StitzmanI; Tradução Claudia Berliner

IPsicanalista. Coordena grupos de estudo sobre a obra de Wilfred R. Bion na Argentina, Chile, Brasil e Colômbia. Criador e membro da Comisión Organizadora de los Juegos Bionianos. Membro fundador da Red de Memorias del Futuro. Encarregado do site www.wrbion.net da FEPAL

Correspondência

 

 


RESUMO

O trabalho traz uma série de questões relacionadas com a importância da formalização de uma linguagem que possibilite o desenvolvimento da intuição, sem saturar de ideias preconcebidas e de preconceitos os fatos que se quer destacar mediante a formulação de uma interpretação psicanalítica. Nesse sentido, apresenta-se uma atualização de conceitos que permita a transformação de um enunciado teórico em um enunciado instrumental que favoreça a observação das relações sem objetos relacionados na constituição de uma personalidade. Partindo da Teoria das Transformações, de Bion, o autor propõe um tipo de interpretação composta por um continente modelístico e um conteúdo abstrato, que chama a atenção para as relações sem objetos relacionados subjacentes. Propõe e estuda uma técnica em que a interpretação deixa de ser um conteúdo para ser um continente insaturado. Para tanto, oferece uma ilustração clínica da técnica desenvolvida. O trabalho procura investigar as perguntas: o que um psicanalista faz? O que é interpretar? Qual é a linguagem adequada para a interpretação?

Palavras-chave: técnica; interpretação; observação; teoria.


ABSTRACT

This work presents a series of questions related to the importance offormalizing a language that enables the development of intuition without saturating with preconceptions and biases the facts around which attention must be drawn through the formulation of a psychoanalytic interpretation. To that effect, presented here is an update of concepts that allows for the transformation of a theoretical formulation into a working formulation that favors the observation of relations without related objects in the formation of a personality. Starting with Bion's theory of transformations, the author proposes a type of interpretation consisting of a modelistic container and an abstract content that draws attention to relations without underlying related objects. Proposed and studied is a technique in which interpretation loses the status of a content in order to become an unsaturated container. A clinical illustration of the developed technique is presented here. This paper attempts to investigate the following questions: What does a psychoanalyst do? What is interpretation? What is the proper language of interpretation?

Keywords: technique; interpretation; observation; theory.


RESUMEN

El trabajo trae una serie de cuestiones relacionadas a la importancia de la formalización de un lenguaje que posibilite el desarrollo de la intuición sin saturar de preconceptos y prejuicios los hechos que se quiere señalar mediante la formulación de una interpretación psicoanalítica. En este sentido se presenta una actualización de conceptos que permite una transformación de un enunciado teórico a un enunciado instrumental quefavorezca la observación de las relaciones sin objetos relacionados que intervengan en la constitución de una personalidad. Partiendo de la Teoría de las Transformaciones, de Bion, el autor propone un tipo de interpretación compuesta por un continente modelístico y un contenido abstracto que llama la atención sobre las relaciones sin objetos relacionados subyacentes. Se propone y estudia una técnica en la que la interpretación no es ya un contenido, sino un continente insaturado. A tal efecto, se ofrece una ilustración clínica de la técnica desarrollada. El objetivo del trabajo es investigar las preguntas: ¿qué hace un psicoanalista? ¿Qué es interpretar? ¿Cuál es el lenguaje adecuado para la interpretación?

Palabras-clave: técnica; interpretación; observación; teoría.


 

 

Deverias ao menos ter aprendido que o verdadeiro exercício de uma relação não está nos dois objetos relacionados, como a xoxota e o pau, mas em manter um dentro do outro ... O enfoque psicanalítico, embora valioso por ter ampliado o consciente mediante o inconsciente, viu-se viciado pelo fracasso em compreender a aplicação prática da dúvida, devido ao fracasso em compreender a função do "seio", da "boca", do "pênis", da "vagina", do "continente" e do "conteúdo" como analogias

(Wilfred R. Bion).

Somos como anões nos ombros de gigantes. Podemos ver mais, e mais longe que eles, não por alguma distinção física nossa, mas porque somos elevados por sua grande estatura

(Bernardo de Chartres).

 

 

Considerações menores

Falar de sexo é falar de relação sexual, em que relação é a palavra importante do enunciado. A psicanálise freudiana clássica afirma que toda relação é relação sexual; Lacan diz que não há relação sexual. Com o passar do tempo, essas definições foram se transformando em clichês psicanalíticos e ficando sepultadas no escaninho das citações-citáveis. A verdade, porém, é que além da força do slogan, não há muita realização clínica para esses enunciados.

Nesse sentido, entendo ser necessária uma atualização de conceitos que permita uma transformação de um enunciado teórico em um enunciado instrumental que favoreça a observação das relações sem objetos relacionados que intervêm na constituição de uma personalidade.

Quero apresentar uma série de questões ligadas à importância da formalização de uma linguagem que possibilite o desenvolvimento da intuição, sem saturar de preconceitos os fatos sobre os quais se quer chamar a atenção mediante a formulação de uma interpretação psicanalítica.

Ou seja: o que faz um psicanalista? Interpreta. O que é interpretar? Dizer o que se vê em uma linguagem adequada2. Qual é a linguagem adequada? Bem, disso se trata neste trabalho.

 

Abstração, notação e formalização

A matemática avançou profundamente no problema da notação. Ao se pôr a serviço da física ("a linguagem da física é matemática" ou "os físicos falam matemática"), pôde definir o estado de qualquer partícula por meio da expressão vetorial de diversas dimensões. Sem me alongar, para a mecânica quântica um observável é uma matriz de elementos matemáticos que determinam uma probabilidade de estados em uma notação particular. Sim, é isso mesmo: os observáveis da mecânica quântica são matrizes matemáticas em estados definidos por vetores.

Boa parte do poder da matemática reside em sua função de generalização e formalização abstrata que, de outra forma, teria de ser expressa em termos da linguagem articulada.

Mediante a construção de uma série de símbolos e operadores criados para representar elementos de realidade, a notação matemática pôde dar um grande salto, passando da simples enunciação numérica, que vai de Pitágoras a Descartes, para os sistemas pós-carte-sianos de representação.

Nesse sentido, é fácil perceber a diferença existente nos sistemas de notação, que vão de enunciados pictóricos, sintáticos, até enunciados algébricos, passando por enunciados geométricos.

Tal como se pode verificar no Quadro 1, as diferenças são substanciais e cada uma das distintas notações ou formalizações de um quadrado representa diversas dimensões dele.

A primeira evidência que se obtém é um progressivo aumento da abstração no eixo Pictórico → Algébrico (1 → 4), com a consequente perda de realização concreta.

Em outras palavras, 1 apresenta a imagem sem nenhum tipo de conceituação3. É a mostração de um fato de realidade que tem existência pelo que é.

O nível 2 apresenta o enunciado linguístico associado à imagem que aparece em 1, com a consequente necessidade de realizar uma evocação da imagem da figura a que fazemos referência.

De maneira similar, no nível 3 são apresentadas as características de conteúdo (área) e continente (perímetro) da figura exposta em 1 e nomeada em 2, mas sem suas relações. Isso significa que ainda tenho de evocar a imagem a que alude a formulação para poder realizar a passagem de concretização.

No nível 4, o panorama já é outro. São apresentadas as relações algébricas de um quadrado cuja medida (da quantidade) de lado é a unidade. A informação contida nesses quatro enunciados me permite claramente construir um quadrado determinado pelos quatro vetores normalizados nos pontos abcd. Fazendo operações muito simples, pode-se facilmente calcular sua área e seu perímetro com os dados aí fornecidos para qualquer quadrado dessa forma.

 

 

Ou seja: em 1 temos evidência de nossos sentidos para poder apreciar a forma a que estamos aludindo; 2 e 3 exigem certo tipo de conhecimento do código e demandam uma capacidade evocativa de nosso conhecimento prévio do que é um quadrado; e 4 apresenta uma formalização algébrica de um quadrado de lado 1 qualquer em qualquer lugar de qualquer espaço bidimensional sem necessidade de evocar nenhuma realização prévia4.

Todo bom sistema de notação deve servir para favorecer a passagem de 1→ 4, isto é, para favorecer os processos de abstração. Assim, a abstração é um passo na difusão que facilita a correlação entre a representação abstraída e outras realizações de experiências emocionais distintas entre si, e distintas, por sua vez, da realização original que deu lugar à abstração germinal. A concreção, ao contrário, seria um passo na difusão que facilita a correlação por senso comum e recebe o nome de desnudamento.

Em termos de observação e notação psicanalítica, todo bom sistema deveria prover as ferramentas necessárias para poder abstrair relações sem objetos relacionados5 dos conteúdos do paciente (C → H na Tabela6) que permitam, por sua vez, ampliar a visibilidade de novos fatos ensombrecidos da conjunção.

Em sua tese de doutorado, Parthenope Bion Talamo afirma:

Pode-se dizer, assim, que Bion prevê a possibilidade de utilizar formulações matemáticas para as teorias psicanalíticas num futuro, e que a análise já é uma disciplina suscetível de desenvolvimentos posteriores e formulações mais rigorosas no plano verbal. Nesse sentido, a formulação em termos matemáticos (algébricos) seria a culminação de um processo de desenvolvimento no qual não fosse preciso falar de uma aplicação da matemática à psicanálise, e sim de uma progressiva matematização desta última ... isto é, usando tipos de pensamentos e de conceitos matemáticos para reforçar os instrumentos teóricos analíticos (1974/1999, p. 67).

E é exatamente disso que trata esta seção do artigo.

A ideia não é aplicar a matemática à psicanálise (de fato, não é necessário nenhum tipo de conhecimento matemático para ler este trabalho, apenas o desenvolvimento de uma boa tolerância ao pensamento abstrato7), mas criar uma matemática psicanalítica.

Dito isso, vejamos algumas vantagens de utilizar a linha H para conceitos nucleares da teoria psicanalítica clássica.

 

H: relações sem objetos relacionados

Arrisco uma definição forte: a psicanálise é uma ciência das relações lutando para realizar o salto de um estado pré-cartesiano para um estado pós-cartesiano. Nessa luta, deve encontrar as ferramentas e as linguagens adequadas para poder expressar de maneira adequada problemas muito complexos e (muitas vezes) contraditórios. Esse é o mesmo salto que a astrologia realizou ao transformar-se em astronomia, ou a alquimia ao transformar-se em química.

Nesse contexto, existem três poderosas ferramentas clínicas às quais Bion dedicou seus últimos anos de investigação e os três volumes de um livro monumental chamado Uma memória do futuro (1991): pensamentos sem pensador, ações sem agentes e relações sem objetos relacionados.

Os pensamentos sem pensador (PsP) são conjunções constantes sem fatos selecionados que lhes outorguem significado, e habitam a coluna 1 da Tabela8.

As ações sem agentes (AsA) são o nome da realização clínica que recebem as ações efetuadas nos vínculos independentemente de seus agentes, e estão categorizadas na coluna 6 da Tabela9.

As relações sem objetos relacionados (RsOR) chamam a atenção para os vínculos que se estabelecem entre dois objetos, personalidades ou partes da personalidade independentemente deles, e são tipificadas na linha H da Tabela.

Essas três ferramentas demarcam o que se denomina o U do crescimento mental por sua distribuição na Tabela.

Os pensamentos sem pensador não têm significado, e sua cristalização mediante o colapso do diâmetro do Ps-D (cf. Stitzman, 2011 para maior detalhamento) depende do tipo de transformação predominante na personalidade ou parte da personalidade que impactem. Por exemplo, o pensamento sem pensador "As pessoas loiras são lindas", impactando na mente de Casanova, o levará a seduzir mulheres loiras; na personalidade de um cabeleireiro, a realizar tinturas dessa cor; na personalidade de Hitler, a exterminar todas as pessoas não loiras. Ou seja, o destino dos pensamentos sem pensador vai depender em grande parte do tipo de transformação que lhes encontre um fato selecionado.

As ações sem agente são as que ocorrem independentemente das personalidades que as executam. O próprio Bion diz que "essa questão talvez pareça óbvia, mas quando uma ideia se converte em ação é como se a ação conduzisse as pessoas que pensam igual por um caminho irreversível" (1994b, p. 131).

Não vou me deter mais nas duas primeiras ferramentas clínicas para passar direto para a terceira, que é o objeto principal deste trabalho.

Para compreender mais claramente o que são as relações sem objetos relacionados, tomemos um objeto qualquer, por exemplo, uma teoria.

As teorias estão situadas na linha F e se relacionam entre si seguindo as leis do sistema dedutivo científico situado na linha G. Pois bem, se subtraio os objetos dispostos em F das relações desenvolvidas em G, obtenho simplesmente as relações sem os objetos relacionados10.

Dito em símbolos: H = G - F.

A linha H da Tabela representa o Cálculo Algébrico, que é o nome genérico (na linha F) de relações sem objetos relacionados (na linha C).

O cálculo algébrico é um tipo de abstração e generalização baseado na álgebra. A álgebra é o ramo da matemática que estuda as estruturas, as relações e as quantidades (no caso da álgebra elementar). A maneira como a álgebra expressa essas relações é através do cálculo.

Por isso vale a pena determo-nos alguns instantes para estudar mais detidamente o problema.

O nível 1 descrito na seção anterior nos mostra um objeto, um pictograma que é o objeto. Nesse sentido, poderíamos ter:

 

 

Claro que temos aqui três figuras facilmente identificáveis por sua forma. Mas façamos algumas transformações a fim de ir de 1→4.

(i) Três figuras

(ii) 3 figuras11

(iii) 1 figura + 1 figura + 1 figura = 3 figuras

(iv) 1 + 1 + 1 = 3

(v) a + b + c = d

Ou seja, fomos do pictograma ao enunciado, do enunciado ao número e do número à relação.

Vejamos um exemplo prático disso. Tomemos qualquer uma dessas figuras, por exemplo, a terceira12.

Como bem sabem todos desde a época de Pitágoras, existe uma relação profunda entre os lados e os ângulos dos triângulos que possuem um ângulo reto (triângulos retângulos). Sem me alongar, a clássica equação pitagórica segundo a qual existe uma relação direta entre a medida do comprimento dos lados que contêm o ângulo reto (catetos) e o restante (hipotenusa).

O interessante é que é relativamente simples ver que essa relação existe em um triângulo dado. Ou em dois. Ou em três. E até em mil. Mas como demonstrar que essa relação existente é válida para todos os triângulos retângulos, apresentados em um plano euclidiano, que existiram, existem e existirão no universo? Utilizando o cálculo algébrico ou as relações sem objetos relacionados.

Como se chega a isso? De maneira extremamente simples. No Quadro 2 apresento uma das tantas demonstrações possíveis do Teorema de Pitágoras para os triângulos retângulos.

O fato que nos interessa neste momento é a vantagem de utilizar esse tipo de notação (o cálculo algébrico): o cálculo algébrico nos permite generalizar uma relação a tal ponto que deixem de ser importantes os objetos que relaciona, ou melhor dizendo, que estes sejam contingentes à relação.

Nos termos do exemplo anterior, ele nos permite expressar de maneira muito econômica um enunciado que se torna independente de qualquer cateto ou hipotenusa em particular, de qualquer medida de sua quantidade, mas que, ao mesmo tempo, é válido para todas.

Não é o objeto. Não é o número. O que importa é a relação que existe, tal como diz Bion na epígrafe deste trabalho.

Vejamos algumas implicações desse sistema na teoria psicanalítica clássica.

 

Algumas abstrações da teoria freudiana clássica (TSI e Cena Primária)

Entendo que a pulsão seja um conceito obsoleto da psicanálise. É um conceito empobrecido pela ausência de realizações clínicas e se origina de uma necessidade lógica da teoria. São evidentes as vantagens que sua contemplação teve no desenvolvimento do pensamento psicanalítico da primeira metade do século XX.

Um bom método para avaliar a vitalidade de uma ideia consiste em considerar a quantidade de ideias novas que esta gerou nos últimos (cinco? dez? quinze?) anos; e, realmente, a ideia de pulsão não parece gozar de muita vitalidade ultimamente.

Um dos grandes operadores clínicos13 da obra de Bion é o obsoleto. A tal ponto que, epistemologicamente falando, toda ideia (conceito, interpretação, teoria) deve conter em seu germe a capacidade de se tornar obsoleta.

Um claro exemplo disso é a sessão analítica. Bion cogita que o psicanalista não deve conhecer nem a história nem o futuro de nenhuma sessão. Mais ainda, o que "se sabe" do paciente não tem maiores consequências; é falso ou irrelevante. Se tanto o paciente quanto o analista "conhecem" algo, está obsoleto. Se "é conhecido" por um deles, mas não pelo outro, intervém a defesa indicada na categoria 2 da Tabela. O único que importa da sessão é o desconhecido. Não se deve permitir que nada distraia a intuição disso.

Se uma ideia não consegue se tornar obsoleta, transformando-se em um vestígio , colapsa até a dimensão de resto sem valor , convertendo-se na matriz da ideia máxima, germe do fanatismo. Quando uma ideia é utilizada como um fato, quando uma conjetura é usada como teoria, então a ideia não se torna obsoleta, mas se encarapita em um monólito fanático.

Concordo com o que Bion anota nas margens de sua cópia de O futuro de uma ilusão, de Freud:

A leitura deste capítulo demonstra até que ponto o avanço da psicanálise torna obsoletas suas próprias formulações. Freud toma como fundamento de sua discussão, como sua "realização", suas próprias conjeturas sobre a natureza da civilização. Logo, tem teorias sobre as conjeturas. Por se tratar de um homem genial, suas conjeturas merecem atenção. Mas não se reconhece o estatuto de conjeturas nem o das teorias sobre elas (Bion, 1992/1994a, p. 378).

Isso quer dizer que avança do pictograma até a conjetura na linha C da Tabela. Depois toma a conjetura da linha C como um fato sobre o qual formula enunciados da linha F, desconsiderando o fato de que C não é um pictograma, e sim um ideograma pobre, epistemologicamente falando14.

Creio oportuno, então, considerar a possibilidade de repensar um pouco a respeito dessa conjetura e indagar quais as vantagens15 e desvantagens que seu uso acarreta.

A ideia de fantasia inconsciente de Klein ganha nova vitalidade quando se desprega da pregnância visual da noção de objeto e se transforma, pelas lentes bionianas, em conjunções constantes de elementos.

O mesmo ocorre com a ideia de pulsão de Freud quando a comparamos com a ideia de tropismos, de forte realização clínica e passível de receber interpretações diretas.

Bion (1992/1994a) toma esse termo da biologia16 para destacar três motores de busca ou tendências da personalidade: um tropismo de assassinato, que busca um objeto para assassinar ou pelo qual ser assassinado; um tropismo de parasitismo, que busca um objeto para parasitar ou pelo qual ser parasitado; e, finalmente, um tropismo criativo, que busca um objeto para criar ou pelo qual ser criado. Esses tropismos são a matriz da qual nasce a vida mental de uma personalidade, e são eminentemente um fenômeno vincular clinicamente observável.

Se usarmos a ideia de tropismo, como transformação vincular, relacional observável, para pensar algumas das ideias mais duras do pensamento psicanalítico clássico, talvez estejamos em melhores condições para avaliar as vantagens de sua utilização no lugar da obsoleta ideia de pulsão e sublimação17.

Tomemos, então, algumas ideias que repousam no coração do pensamento freudiano: aquelas conhecidas como Teorias Sexuais Infantis (TSI) e sua consequência lógica, a Cena Primária.

Partindo da base de que o leitor está familiarizado com essas ideias e com sua intrínseca relação com a teoria da pulsão, proponho-me simplesmente a enunciá-las e apresentar um progressivo ascenso pela escada da abstração, do modelo freudiano de categoria C até um enunciado de categoria H, passando pelo conceito em F.

Com isso, estou dizendo que vou apresentar o mesmo fato com enunciados de distintos graus de complexidade e abstração: partindo do modelo, passando pelo conceito conjugado dentro do modelo e, em seguida, chamando a atenção para as relações existentes em seu núcleo, tentando prescindir dos objetos por elas relacionados.

Para isso, pensemos em uma notação básica para um problema discutido na seção anterior:

{ ∀ H ∃ F \ G - F → H ⇔ ∃ IADE : 1 «K» }

Essa fórmula pode ser lida e implica que: para todo enunciado de complexidade de fileira H existe um enunciado de complexidade de fileira F, tal que se, de um enunciado de complexidade de fileira G, subtraímos o enunciado de complexidade de fileira F, obtemos na mente um enunciado de complexidade na fileira H se e somente se houver uma tolerância à frustração suficiente para que exista na coluna 1 em chave K.

Dito de outra forma e em um enunciado pertencente à fileira C: se tomo uma teoria qualquer, composta de objetos relacionados entre si, e tiro dela os objetos, ou seja, os enunciados que a compõem sobre os objetos a que se refere, obtenho de maneira limpa e depurada as relações desses objetos sem esses objetos. A obtenção das relações sem os objetos relacionados por elas me permite ampliar o grau de visibilidade para o qual essa teoria foi pensada inicialmente, deixando preparado o terreno para que novos objetos se relacionem de maneira idêntica.

Isso significa que para toda relação sem objeto relacionado existe uma relação tal que, se dela tirarmos os objetos que relaciona, resta ela mesma em busca de novos objetos para relacionar. Para que isso ocorra, é preciso haver uma adequada tolerância à frustração que favoreça a permanência do enunciado sem significado como uma área delimitada para a exploração do problema.

Isso exige o desenvolvimento de uma adequada tolerância ao fato de que os fenômenos possam não ter significados imediatos e estejam relacionados de maneiras não acessíveis à compreensão presente, mas habitando em um passado que não foi e em um futuro que não chega. Essa tolerância requer decisão e coragem para habitar com capacidade negativa a existência de forças que não podem ser explicadas pelos métodos habituais de aproximação do fenômeno.

Pode ser doloroso entrar em contato com o fato de que, tal como diz John Archibald Wheeler, vivemos em um universo muito mais complexo do que podemos imaginar.

Vejamos então o seguinte quadro18:

 

Quadro 3

 

Em que:

1. a Ǝ ⁓ a / a = a Λ ⁓ a = ⁓ Λ a = ⁓ a

Lê-se: para todo a existe um não a, tal que a é igual a a, e não a é igual a não a, e a é igual a não a.

2. a Ǝ b / a = a Λ a ≠ b Λ b = - a

Lê-se: para todo a existe um b, tal que a é igual a a, e a é distinto de b, e b é igual a menos a.

3. ∀ a Ǝ b / a = a Λ a ≠ b Λ a = b

Lê-se: para todo a existe um b, tal que a é igual a a, e a é distinto de b, e a é equivalente a b.

4. Ǝ a / ∀ a Ǝ b ≠ a Λ a ≠ b → a + b = c ⇔ c ≠ a Λ c ≠ b Λ c ∉ {a;b}

Lê-se: existe um a tal que para todo a existe um b distinto de a e um a distinto de b, donde a e b dão lugar à existência de c se e somente se c for distinto de a, e c for distinto de b, e c não pertencer ao conjunto formado por a e por b19.

Como se pode notar, à medida que ascendemos no nível de abstração, do modelo C até o cálculo algébrico H, vamos perdendo a densidade dos objetos e ganhando em intensidade das relações. É por isso que os modelos dependem da disponibilidade de objetos com que operar, e o cálculo algébrico, das relações entre esses objetos na ausência deles.

Graças a esse processo, e tal como acabamos de ver, abstrair as relações lógicas existentes nos modelos nos permite aplicá-los a um número muito maior de situações clínicas além daquelas para as quais foram pensados originalmente. Quanto maior o nível de relações presentes, maior será o número de situações em que poderá atuar e, consequentemente, tanto mais rico será o modelo utilizado.

De todo modo, e cumpre dizê-lo, o processo tem de ser de mão dupla: do objeto à relação e da relação ao objeto, para evitar perder o correlato experimental da realização. O importante é que na volta de H → C o modelo se amplia e se descobrem novos fatos anteriormente ensombrecidos na penumbra da conjunção.

Podemos, assim, ter uma ideia da importância de contar com uma fluida transformação das categorias C ↔ H para manter em boas condições os modelos e teorias que estamos utilizando cotidianamente em nosso trabalho com pacientes.

Os modelos (intuições) freudianos clássicos têm de poder se emparelhar com a teoria (conceitos) para se tornar funcionais e operativos. O risco está em não abandonar a cegueira dos modelos e confundi-los com fatos, reduzindo o fenômeno a um problema (por exemplo) meramente familiar20.

A potência da descoberta das TSI e do valor da Cena Primária adquire toda sua grandeza penetrante quando podemos entender as relações em que estão baseados, independentemente dos objetos com que estejamos operando.

É a chamada normalização, e permite que ganhemos independência em relação ao referencial para poder observar. Por exemplo, poder explorar que nosso paciente possa ser a, mas que também possa estar colocado no lugar de b, de c, de -a e de ~a.

Por isso é que se têm observações brilhantes pobremente conceituadas. Devemos ter respeito pelos fatos, pelas observações, pelas relações subjacentes, e não pelas teorias e pelos conceitos que aprisionam os fatos. Ou, em outras palavras, se nossa fidelidade é para com as teorias, elas se convertem em crenças e deixam de evoluir. Pessoalmente, continuo preferindo ter teorias que possa abandonar a ter religiões que não possa largar.

Lembro muito nitidamente de um paciente que pintava grafites na cidade, que sempre levava uma "lembrança" de sua visita a Parques Naturais ou modificava a paisagem de alguma forma. Foi esclarecedor, para mim, utilizar a ideia de Cena Primária, mas expressa em H, como uma intolerância à exclusão que a paisagem lhe despertava. Dada essa intolerância, via-se obrigado a se meter, a se introduzir, na paisagem da qual não fazia parte. Dessa forma, a natureza é a, a paisagem é b e ele é o c da equação de Cena Primária que acabamos de ver.

Tendo definido claramente a que nos referimos com "relações sem objetos relacionados", passemos então a estudar um pouco a interpretação psicanalítica.

 

A interpretação

Embora eu já tenha estudado profundamente o processo de atenção e interpretação (Stitzman, 2004, 2006), pensando que a interpretação é em si mesma um enunciado único em sua formulação, creio que também se deva prestar especial atenção à sua dupla vertente. Por isso, três considerações:

a. A interpretação analítica não só modifica a realidade psíquica (em termos de O → K) como, ademais, a cria: a interpretação deve criar inconsciente mediante a provisão de alfa. Não se trata de tornar consciente o inconsciente nem de preencher as lacunas mnêmicas, mas de transformar a conjunção mental;

b. A personalidade não se posiciona de maneira paranoide ou depressiva, ela o faz simultaneamente à maneira de um palimpsesto nacarado na função de integração-desintegração: não é a alternância paranoide ou depressiva (Klein) nem a oscilação Ps D (Bion), mas a vibração Ps o D21;

c. Bion (1992/1994a) diz que do pictograma evidenciado pelos sentidos (extensão no domínio dos sentidos) evolui-se para o cálculo algébrico pela via do sistema dedutivo científico, por um lado, e para o símbolo linguístico em termos do modelo (extensão no domínio do mito). Ou seja, O → "categoria C"; e O →categoría H por G".

Genial. Mas, e como se forma uma interpretação? O ponto c. é eloquente nesse sentido: constrói-se um continente modelístico com um conteúdo abstrato expresso como um cálculo algébrico de uma relação sem objetos relacionados.

O leitor atento se perguntará sobre as vantagens operativas disso. Pois bem, aproveitar e maximizar as vantagens de ambos os estatutos epistemológicos. Os modelos são de absorção rápida, mas penetração escassa. Por sua vez, as abstrações são de absorção lenta e penetração profunda22.

É nesse sentido que se utiliza a rápida absorção de modelos como Cavalo de Troia e a profunda penetração das abstrações que se desesporulam na mente ao entrar em contato com áreas de fertilidade.

Bion (1992/1994a) realiza uma modificação muito profunda da teoria kleiniana da inveja. Afirma que, longe de ser uma emoção primária, a inveja é uma conjunção constante que pode se manter inativa até se tornar maligna - compartilhando, dessa forma, a mesma qualidade que as formações de alfa armazenáveis produzidas pelo trabalho do sonho alfa.

Quando uma conjunção constante está esporulada, está inativa e pode ser armazenada. Quando ela encontra um continente ou um conteúdo (uma função ou um fator) propício para se ativar e se tornar operativa, desesporula-se mediante a ampliação do diâmetro de Ps-D, tornando-se transformável (ou não transformável, conforme o caso).

Esses tipos de conjunções armazenáveis ou esporuladas têm implicações imprevistas e imprevisíveis para a personalidade, e por isso devem ser estudadas e investigadas em profundidade durante uma análise23.

Uma das primeiras implicações da abstração emocional é prover para a personalidade a possibilidade de vibrar em estados emocionais contraditórios ao mesmo tempo. Por exemplo, estar triste e contente simultaneamente24.

Uma personalidade com ampla tolerância à frustração é capaz de se manter com uma boa capacidade negativa no meio da tempestade que esses estados vibratórios produzem. Personalidades com baixa tolerância à frustração são, pelo contrário, propensas a cair em falsas disjuntivas.

Donde, duas notas.

Nota 1

Darío Sor (Sor & Senet, 1988) estuda profundamente o problema da tolerância à frustração, expressando quatro fatores componentes. Esses componentes representam pontos de dor: a tolerância à sensação de infinito, a tolerância ao aleatório, a tolerância à dúvida e a tolerância à escolha. Esses quatro componentes se agrupam em torno do nome "tolerância à frustração" e, em conjunto, se chamam tolerâncias iade.

Eles implicam que, para obter a desintegração da conjunção constante e conseguir atravessar a mudança catastrófica sem catástrofe, é preciso poder tolerar:

a. A sensação de infinito despertada pelas possibilidades de dispersão dos elementos conjugados no velho D (como ponto de integração);

b. A incerteza da maneira aleatória como eles se combinarão (ou não) novamente;

c. A dúvida sobre o entendimento dos elementos que são deixados de fora e os que são incluídos na área visível e dentro do cone de sombras da nova conjunção;

d. E, finalmente, a escolha adequada do nome que permita a harmonização final em um novo D integrado.

Nota 2

Toda disjuntiva é falsa. Nunca é a ou b; sempre existe pelo menos uma opção a mais, que é a hipótese de ignorância, ou o insaturado, representado na Tabela pela coluna 1. E, muitas vezes, a própria disjuntiva não é disjuntiva em termos absolutos, mas é as duas ao mesmo tempo. Portanto, disjuntiva falsa é um epíteto epistemológico.

A tensão de uma abstração emocional pode ser claramente expressa na forma de um cálculo algébrico, pois é a relação de tensão transformacional que nos interessa, e não os objetos que estão relacionados.

Vejamos alguns exemplos desse tipo de interpretação.

 

Realizações

O que se interpreta é a função, não os fatores. Interpreta-se a transformação da função na cesura e não os fatores de invariância.

A interpretação da função se faz mediante a observação dela, sua nomeação, a dedução dos fatores baseados em evidências mínimas e a formulação da conjetura em linguagem de êxito, expressa como um modelo que contém um cálculo algébrico de relações sem objetos relacionados.

Paciente T

Um exemplo muito claro disso é T, em seu primeiro ano de análise, três vezes por semana, que sofre de recriminações do futuro de sua personalidade. T acaba de cumprir vinte e oito anos, é engenheira civil e está realizando uma especialização em um centro muito reconhecido no meio.

A vida de T é toda planejada. Sua vida é um fator da função que ela nomina "A Carreira". Desde muito pequena, já no primário, tinha tudo planejado: onde estudar, onde estagiar, onde e como ganhar experiência, quanto ganhar, com quem se relacionar, onde trabalhar etc. E, de fato, assim fez: formou-se com honra ao mérito, fez um estágio em uma empresa norte-americana durante um ano nos EUA, tem múltiplos contatos acadêmicos e profissionais e recebe um salário que poderia ser considerado acima da média.

Namorados, relações, trabalhos, família, férias, hobbies: tudo a serviço da Carreira.

- "É um tempo de muita angústia" - ela me diz. - "Ontem me dei conta de que já tenho quase trinta e não fiz nada. Nada, entende?"25.

Creio entender muitas coisas do que ela diz. Entendo que Neruda escreveu 20 poemas de amor aos vinte anos, que Newton tinha vinte e quatro quando descobriu as leis da mecânica clássica, e que Einstein tinha vinte e seis quando publicou a teoria da relatividade especial. Creio que não sei o que ela quer que eu entenda. Creio que ela também tem quase quarenta (dali a doze anos) e nada diz a esse respeito. Creio que não sei por que a angustia sentir que não fez nada.

Mas, de todas essas coisas, tenho de escolher uma e, se tiver sorte, formular uma interpretação a esse respeito.

- Você confunde o fato de não ter feito nada com o de não ter vivido, não ter habitado o que você fez - interpreto.

O que é fazer algo? Como se quantifica? Lavar os dentes é fazer algo? Defecar? Ter relações sexuais? Atravessar a rua? Ela não habita sua vida, surfa nela: como um hidroplano que mal entra em contato com a água.

- "Mas, como se habita?" - ela se dispersa. Usa o mas como um convite para a controvérsia estúpida. E pergunta como uma forma de se aferrar à parte mais fraca da interpretação. Toma um fator para desmontar a função.

- O mais fácil de fazer na água é se molhar. Manter-se seco exige um esforço extra -prossigo. - Você está no mar da vida com uma camada de parafina emocional na sua personalidade.

Faz-se muito presente para mim um fragmento de Bion, em sua conferência de Brasília, em que diz que existe um convite à grandeza no qual você responde ao RSVP com um ainda-não, quem-eu-grande?, e assim por diante.

Minha interpretação aponta para o uso que T faz da função (Fazer) e não para os fatores (coisas feitas). A transformação que ocorre no enunciado vai de uma sensação resistencial de uma crença usada para não ver até a utilização, também resistencial, de um modelo do qual resgata o componente pré-conceitual, passando pela utilização de crenças pobres com curiosidade voraz sobre o mistério do fenômeno.

O que, tipificado na Tabela, seria:

- -E6A2 → -E5E6 → D2C2

Em termos mais gerais, a interpretação original está composta do modelo do ter feito algo ou nada que ela apresenta e contém o seguinte cálculo algébrico:

Ǝ x Λ xn \ ƒ ( χ) = Σ xn

Outro fato para o qual gostaria de chamar a atenção antes de passar para a próxima realização é um termômetro de interpretações. Como detectar a parte mais fraca de uma interpretação? Simples. É só prestar atenção ao vértice que o paciente escolhe para continuar: é o mais débil ou pobre dela. Trata-se de um norte particularmente útil no trabalho com pacientes para evitar fenômenos do tipo reversão da perspectiva.

Paciente W

W é um homem em seu segundo ano de análise, três vezes por semana. Tem trinta e nove anos e está terminando um relacionamento no qual "não está" já faz treze anos. W não tem filhos mas, assim como sua companheira, tem uma carreira intensa e pródiga.

W sente dor porque é incapaz de sofrê-la: como diz Bion, confunde o fato do sofrimento da dor com o sentimento da dor.

W sempre fez de tudo para se fazer notar. Estudou muito em seu campo profissional, formou-se com os que ele considerava os melhores de seu campo de atuação.

- "Sempre tive a capacidade da perseverança" - diz W. Jacta-se um pouco disso. W continuou em seu relacionamento apesar de múltiplas infidelidades de ambas as partes. W continuou na empresa em que trabalha apesar de vários maus-tratos por parte de seus chefes.

- O problema não é a capacidade de perseverança, mas a ausência da incapacidade: você é incapaz de não perseverar - digo-lhe.

A experiência emocional de dor com que W me fala de sua capacidade pode ser tipificada na Tabela como F3C2 · C6C5 • D3 - em que uma teoria sobre si mesmo, empregada para registrar uma experiência emocional, se transforma em um modelo usado como uma ação no vínculo para evitar o encontro com o fato novo. Depois de minha interpretação, o modelo se converte em indagação, buscando registrar a expectativa insaturada da novidade investigada - neste caso, que não é ele que persevera, mas que é ele que é escravo de sua perseverança.

Penso que a relação conteúdo-continente responde à lógica ♀ → a ; ♂ : a ; em que continente vai em busca de um conteúdo em expansão.

Posso observar uma intolerância à dúvida expectante dos pareceres do outro.

Nesse contexto, interpreto utilizando o modelo da perseverança fornecido por W, mas adicionando uma relação particular entre a posse e a despossessão.

Agora, ao escrever, recordo claramente uma passagem de Bion, que diz:

A função do elemento a, do qual nos estamos ocupando no estudo do método científico, é chave no aparelho mediante o qual o indivíduo aprende qualquer coisa. Igualmente, a função do elemento b nos interessa pela comunicação dentro do grupo. Sem o elemento a, não é possível conhecer nada. Sem o elemento β, é impossível desconhecer algo (1992/1994a, p. 182).

Nesse sentido, quando um pictograma empiricamente verificável se encontra com a consciência, tornando-o evidente para os sentidos (senso comum), ocorre uma transformação que vai do pictograma ao ideograma nas duas vertentes que vimos antes: uma pela via da categoria C, e outra pela categoria H e G da Tabela. E essas são transformações que armazenam a experiência real em forma de conjunções modulares de alfa armazenáveis.

O que, dito em termos das relações sem os objetos relacionados, poderia ser expresso como:

∀ x Ǝ |x| \ x = x1 Λ x = x2 ⇔ x1 = x + i Λ x2 = x- 1

Essa expressão se lê: para todo x existe um módulo (valor absoluto) de x, tal que esse x é igual a um valor dado e esse x é igual a outro valor dado se e somente se o primeiro valor for um complexo conjugado do segundo. x é igual a um valor dado e esse x é igual a outro valor dado se e somente se o primeiro valor for um complexo conjugado do segundo.

Os complexos conjugados representam, na obra de Bion, os pares que possibilitam a intuição (em oposição aos pontos tangentes, que representam a alucinose, e os pontos secantes, que representam o conhecimento).

A interpretação contém uma potente relação sem objeto relacionado, que é a intolerância ao complexo conjugado da função, o que a mutila tornando-a incompleta: se sou incapaz de não perseverar, então é impossível, para mim, escolher perseverar, e portanto não sou eu quem persevera, mas sou eu preso à perseverança que descrevo.

Tal como afirma Bion, sem perseverança é impossível realizar ações duradouras, mas sem a ausência de perseverança é impossível abandoná-las. Desse delicado equilíbrio depende a disciplina necessária para o crescimento mental.

 

Valsa

Permita-me o leitor compassivo forçar umas definições simplificadoras, mas que, no contexto, mais resolvem do que criam problemas.

Freud interpreta resistências. O objetivo é levantar essas resistências para tornar consciente o inconsciente mediante o preenchimento de lacunas mnêmicas.

Klein interpreta fantasias. O objetivo é favorecer a integração dos objetos por elas relacionados, diminuindo, assim, as operações de clivagem no eu.

Bion interpreta transformações. O objetivo da interpretação é criar inconsciente mediante o fornecimento de alfa armazenáveis.

Note-se, pois, o abismo epistemológico entre um sistema técnico e outro.

Neste trabalho, partimos da ideia apresentada por Bion para propor um tipo de interpretação composto de um continente modelístico e um conteúdo abstrato que chame a atenção para as relações sem objetos relacionados subjacentes.

Isso quer dizer que nossa interpretação já não é um conteúdo, mas um continente insaturado: nossa interpretação abre o espectro visível favorecendo a multiplicação dos objetos originalmente relacionados. Os conteúdos são contingentes; o desafio consiste em criar continentes na mente dos pacientes para que eles deixem aflorar seus próprios conteúdos: quase um antídoto contra a manufatura de pacientes em série.

Esta é a nossa dança. Nela estamos não por amor ao par, mas pelo prazer da música.

 

Referências

Bion, W. R. (1965). Transformations. London: Heinemann Medical.         [ Links ]

Bion, W. R. (1991). A memoir of the future. London: Karnac.         [ Links ]

Bion, W. R. (1994a). Cogitations. London: Karnac. (Trabalho original publicado em 1992).         [ Links ]

Bion, W. R. (1994b). Clinical seminars and other works. London: Karnac.         [ Links ]

Bion Talamo, P. (1999). Metapsicología y metamatemática (M. Bianchedi, trad.). Buenos Aires: Polemos. (Trabalho original publicado em 1974).         [ Links ]

Sor, D. & Senet, M. R. (1988). Cambio catastrófico. Buenos Aires: Karjeiman.         [ Links ]

Stitzman, L. (2004). At-one-ment, intuition and "suchness". The International Journal of Psychonalysys, 85,1137-1155.         [ Links ]

Stitzman, L. (2006). Formando preguntas obvias. Buenos Aires: Topia.         [ Links ]

Stitzman, L. (2011). Entrelazamiento: un ensayo psicoanalítico. Valencia: Promolibro.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Leandro Stitzman
Austria 2218 - PB
CABA (1425) CF
Argentina
leandrostitzman@yahoo.co.uk

Recebido em 16.2.2013
Aceito em 26.3.2013

 

 

1 Este trabalho aprofunda ideias apresentadas no livro Entrelazamiento: un ensayopsicoanalítico (Stitzman, 2011).
2 Uma linguagem adequada tanto para a comunicação ao paciente quanto para a discussão entre colegas.
3 Vale dizer, no tocante a esse exemplo, que o quadrado já é uma abstração geométrica de uma forma do mundo natural. Desconsiderando esse comentário, porém, poderíamos afirmar que a mostração é concreta.
4 1 representa a unidade que pode medir qualquer quantidade, de 0.0001 pm a 452 km, por exemplo - em que 1 = 0.0001 pm ou 1 = 452 km.
5 Cf. a próxima seção.
6 Cf. Apêndice.
7 Ao final da leitura deste artigo, ficará claro que essa exigência de tolerância à abstração é uma função necessária para o trabalho analítico.
8 Um exemplo disso é unhas + pelos + bigodes + miados sem o fato selecionado gato.
9 Um exemplo disso é a turbulência emocional.
10 Um exemplo cotidiano desse raciocínio é a cozinha. Uma coisa é cozinhar com receita, preso aos ingredientes; outra muito diferente é aprender as técnicas e aplicá-las a ingredientes novos.
11 Vale notar aqui que o número é uma abstração da medida de uma quantidade. O número não representa nada em si. O número é por mérito próprio.
12 Poderiamos tomar a primeira ou a segunda e apresentar exemplos análogos. Escolho a terceira por ser amplamente conhecida pelo leitor não familiarizado com a geometria.
13 Bion apresenta os operadores clínicos em Transformações (1965) com o signo para a inveja, que define como inferno furioso de não existência voraz. As flechas aludem a um deslocamento na Tabela. É chamado de operador por ser um catalisador de transformações no sentido das flechas do signo. Para uma descrição mais aprofundada sobre operadores clínicos, cf. Stitzman (2011).
14 Em Cogitações (1992/1994a), Bion usa a palavra pictograma em relação a O, e ideograma em relação a K (e/ou - K).
15 Claro que a comodidade do conhecido não é uma vantagem a considerar; assim como tampouco o é a obtu-ração indagatória com mais teoria. A proposta consiste em utilizar os fatos, dos quais não podemos fugir.
16 Para a biologia botânica, o tropismo é a tendência ao movimento de um organismo em uma determinada direção pelo estímulo de agentes físicos ou químicos como a luz, o calor ou a umidade.
17 Embora esses tropismos possam ser comunicados, é possível que em determinadas circunstâncias sejam suficientemente intensos para não poder ser contidos adequadamente nos meios de comunicação de que dispõe a personalidade, motivo pelo qual devem ser expulsos mediante a identificação projetiva. É nesse sentido que são caracterizados como matrizes em busca de um objeto capaz de conter a identificação projetiva.
18 As categorias das linhas correspondem às categorias das linhas ou colunas da Tabela de Bion.
19 Vale notar a diferença entre menos a (- a) e não a (~ a). Menos a é o oposto de a, e não a é tudo o que não é a. Por exemplo, dado "em cima", - em cima = embaixo; e ~ em cima = o resto das posições.
20 Cf. a nota de Bion na margem de O futuro de uma ilusão.
21 Para um desenvolvimento mais profundo dessa ideia, cf. Stitzman (2011).
22 Cf. Stitzman (2011) para um aprofundamento da ideia de absorção e penetração.
23 Longe de mim insinuar a possibilidade de uma análise profilática ou de uma análise pedagógica. Em todo caso, essas serão investigações ou especulações posteriores.
24 Não é necessário escolher entre dois estados emocionais particulares, pois ambos podem coexistir simultaneamente em vibração (vlr).
25 Não posso desenvolver neste trabalho uma ideia inquietante: essa paciente sofria de recriminações de futuro, não de passado nem de presente. A parte trinta anos de sua personalidade a estava recriminando pela falta de vida que ela lhe estava deixando desde seus vinte e oito. Esse problema técnico merece atenção, e talvez possa ser aprofundado em trabalhos posteriores. Cf. Stitzman (2011).

 

 


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