SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.47 número4Relaciones sin objetos relacionados: notas sobre técnica analíticaNovos tempos, velhas recomendações: sobre a função analítica (1912-2012) | Freud - 100 anos depois índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Revista Brasileira de Psicanálise

versión impresa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.47 no.4 São Paulo oct./dic. 2013

 

RESENHAS

 

Winnicott: ressonâncias

 

 

Cecília Luiza Montag Hirchzon

Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) e membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae

 

 

Organizadoras: Inês Sucar & Heloisa Ramos
Editora: Primavera Editorial, São Paulo, 2011, 408p.
Resenhado por: Cecília Luiza Montag Hirchzon

Foi com muito interesse e curiosidade, mas também com certa apreensão, que me coloquei diante da tarefa de resenhar um livro de quatrocentas páginas sobre ressonâncias do pensamento de Winnicott. São trinta e seis artigos de autores latino-americanos - todos psicanalistas, pertencentes a diversas instituições, em sua maior parte membros da International Psychoanalytical Association (IPA), em diferentes níveis de titulação, muitos com vários livros e artigos publicados.

A primeira tarefa que se impõe é ler os trinta e seis trabalhos, muitos deles de colegas, sem pré-selecionar nenhum, na medida em que cada um é único em sua singularidade.

Chama a atenção positivamente a organização e a sequência de apresentação dos artigos -realizadas por Inês Sucar e sua colaboradora, Heloisa Ramos -, agrupados nas áreas de interesse mais representativas do pensamento winnicottiano.

A primeira parte, que se inicia pela Criatividade, corresponde sem dúvida alguma à abrangência fundamental do tema na obra do autor. A Construção do psiquismo é sua sequência natural, assim como o Lugar do analista. Seguem-se os conceitos de Mutualidade e Paradoxo, únicos e indispensáveis na compreensão de sua teoria. Depois, Psicossoma e Tendência antissocial, patologias detentoras de uma abordagem diferenciada em sua clínica; e, finalmente, o Vazio.

 

Criatividade

Com justa razão, a abertura deste tema cabe a Gilberto Safra, intérprete de primeira linha do pensamento de Winnicott. A compreensão de criatividade desse autor, que se apresenta não mais como decorrente do funcionamento psíquico, mas sim como aspecto fundamental da condição humana, põe em relevo a concepção original e única de Winnicott. Em suas palavras, "a condição de inacabado do ser humano, em situação de profunda orfandade e desamparo, o levará à possibilidade de inventar-se" (p. 13). Nessa situação, o indivíduo estará sempre entre o ser e o não ser, em um processo infindável e transitório de deslizar continuamente entre realidade subjetiva e compartilhada.

Segundo Mirian Malzyner, o universo do fazer artístico é o contato com o movimento contínuo do vir a ser. O artista vive a oscilação criativa de perda de limites objetivos, para reencontrá-los transformados pela subjetividade. À semelhança da arte, afirma que "deitar no divã implica em tirar o pé do chão do senso comum para alcançar uma condição de consciência ampliada de si" (p. 27).

Para Sonia Abadi, durante muito tempo se acreditou que existia uma clara divisão entre mentes científicas, lógicas e analíticas, de um lado, e mentes artísticas, mais intuitivas e imaginativas, de outro. Hoje sabemos que lógica e intuição se articulam e se fecundam mutuamente. O talento às vezes se expressa de forma evidente; outras vezes em condutas anormais e até em aparentes deficiências. Para ser criativa, a originalidade precisa dar-se em condições ambientais adequadas, que proporcionem meios de integração do self. Toda busca artística é uma busca de liberdade.

Magaly M. Marconato Callia e Luciana Bertini Godoy destacam a agressividade como elemento fundamental da criação, ilustrando esse aspecto por meio do futebol. Em uma comparação com o bebê chutando o ventre materno, usam o drible como exemplo de uma situação em que é necessário um opositor. Ilustram, de forma original, o papel da bola como objeto transicional. Desse modo, o drible - criação artística - pode ser entendido como combinação solidária dos impulsos criativo e agressivo, transformando e recriando um mundo dado.

Alfredo Painceira recorre ao pensamento de filósofos, como Bergson e Jaspers em comparação com Winnicott, e observa como a criatividade começa a fazer-se proeminente e desenvolver-se quando surge o espaço potencial entre o que o homem concebe e o que ele encontra. Assim nasce o objeto transicional, e com ele inicia-se o processo de simbolização, que se abre posteriormente ao universo cultural. Demonstra esse movimento na clínica com o atendimento de um paciente esquizoide.

 

Construção do psiquismo

Abre esta seção um trabalho de Alfredo Naffah Neto, que apresenta concepções de Winnicott contrapondo-as a conceitos fundamentais das obras de Freud, Melanie Klein e Bion. A descrição dessas distinções esclarece e delimita com acuidade a originalidade da contribuição winnicottiana. Tais modificações na teoria acarretam, por sua vez, diferenças fundamentais na clínica, quando o analista abre mão da interpretação (instrumento da psicanálise clássica por excelência) introduzindo o que Winnicott chama de "Análise modificada". Para Winnicott, a "elaboração imaginativa das funções corporais" é a função básica de construção do psiquismo. Segundo Naffah, trata-se da atividade de "'dar sentido' aos processos corporais, que desse modo ganham um estatuto humano, personalizando-se" (p. 68).

Rogério Coelho de Souza lembra que, desde Freud, sabemos que a ideia de unidade psíquica é uma espécie de ilusão. Para Winnicott, um dos paradoxos é sermos um em meio à complexa variedade de aspectos que nos compõem. O autor procura mostrar como a obra winnicottiana descreve um percurso segundo o qual, partindo-se do conceito de continuidade do ser, chega-se à condição de sermos uma unidade, na qual tem significado o "si mesmo" como atividade do sentir, do pensar e do agir. Souza recorre ao pensamento de alguns filósofos, como Sartre, Heidegger e Merleau-Ponty, para corroborar concepções de Winnicott. Finaliza com o relato clínico de um caso de regressão, com uma rara autoexposição como analista.

Yvette Piha Lehman considera que falar da construção do psiquismo em Winnicott é tomar como evidência áreas pré-representacionais e pré-verbais no desenvolvimento emocional precoce. Para ela, Winnicott ressalta que não se deve considerar a ação no adolescente como acting out, mas como comunicação na qual se busca perceber o "si mesmo". Na adolescência, de acordo com a autora, a desidealização das figuras parentais leva à discriminação e ao reordenamento valorativo do ego e do objeto. O resultado mais importante desse período talvez seja a internalização do lugar do terceiro (da situação edípica), que cria a possibilidade de observação, simbolização do objeto ausente e do pensamento.

Para Roberto Azevedo, a interação entre "ilusão" e "desilusão", ambas necessárias ao desenvolvimento normal, será sustentada não só pela função materna de atendimento às necessidades do bebê, como também pela sua criatividade e mobilização pulsional das defesas.

 

Lugar do analista

Segundo Orestes Forlenza Neto, Winnicott, ao mesmo tempo que formulou uma teoria do amadurecimento pessoal, abriu novas perspectivas para a atividade clínica. Como Ferenczi, não se conformou com os limites de analisabilidade em relação a neuroses narcísicas, psicoses e distúrbios delinquenciais colocados por Freud. Para Winnicott, com esse grupo não se pode falar de transferência, mas de "viver pela primeira vez" (p. 113), na relação analítica, os cuidados ambientais adequados, o que se passa em situações de regressão. A regressão deixa de ser um mecanismo de defesa para se tornar uma oportunidade de experimentar na análise as falhas ambientais. A técnica winnicottiana recoloca o problema do "lugar do analista" juntamente com a constituição do sujeito psíquico e sua relação com o ambiente facilitador, sendo essa interação o elemento estruturante por excelência.

Eliana Rache focaliza a influência de uma comunicação, que ficou mantida em sigilo, entre ela e os pais de uma paciente de sete anos durante um período da análise. A paciente havia deixado de falar ao ser mandada para a escola, um mês antes do nascimento de sua irmã. Segue-se uma sessão ilustrativa de como analista e paciente se desvelam, mostrando com riqueza de detalhes a passagem pelo objeto transicional, a dependência relativa da paciente e o caminhar rumo à independência.

Alicia Szapu de Altman considera que, em vez de nos defendermos através da pergunta de se um sujeito é analisável, devemos nos indagar sobre se somos ou não capazes de embarcar com certos pacientes na difícil aventura do encontro com o informe. A analista considera Winnicott um dos pioneiros na extensão das fronteiras psicanalíticas. Ele discrimina a neurose de transferência da psicose de transferência. Refere-se também a "transferências simultâneas" (do paciente e do analista). Relata um caso clínico de obesidade, em que sugere que, quando algo irrompe subitamente no espaço analítico, a pergunta que se impõe é: o que ou quem se presentifica através do corpo do analista?

Anna Lucia Melgaço Leal Silva informa que a postura do analista certamente foi sofrendo transformações, sendo atualmente o seu lugar o do espaço transicional. Na atualidade, novas demandas são impostas ao analista; novos sintomas levam-no a repensar seu lugar e suas ferramentas.

Para Elney Bunemer, o encontro analítico é intersubjetivo, pré-reflexivo e está lá como a apresentação do inédito e da sustentação de um jogo que pode ser veículo de funções simbolizantes, surpreendendo com aquilo que revelam. O analista em seu ofício é força presente, viva e atuante. Ele não tem um lugar porque habita os vários lugares que ali se inscrevem. Trata-se de um encontro assimétrico, mesmo com a inscrição da mutualidade necessária.

 

Mutualidade

Este conceito começa a ser focalizado por Roberto Graña, que compara a abordagem de Lacan com a posição de Winnicott, tratando-as como antípodas, na medida em que o imaginário passível de ser analisado para Lacan é apenas o que está mediado pelo discurso. Nesse sentido, Graña alerta para uma perigosa impessoalidade asséptica no campo da interação humana limitada ao verbal.

Aida Ungier traz a perspectiva de Ingmar Bergman, que lida com o rosto materno como precursor do espelho e matriz da subjetividade. Para ele, a experiência de filmar corresponde à experiência winnicottiana de engendrar o self e o mundo. A mutualidade, nesse sentido, é o pilar da constituição do "espaço potencial", local onde eternamente se criarão símbolos e, portanto, o espaço do pensar.

Luiz Marcirio Kern Machado parte da observação de Winnicott de que um bebê em torno de doze semanas, ao ser amamentado, imita o comportamento materno e "a alimenta". Esta seria a demonstração concreta de mutualidade, que é o início da comunicação entre duas pessoas e que se opõe a um conceito de mutualidade relacionada a pulsões. Machado refere-se a pesquisas do grupo de Palo Alto, que buscam estabelecer correlações entre doenças mentais, especialmente a esquizofrenia, e falhas de comunicação do ambiente, como o conceito de double bind.

Plínio Montagna pensa que Winnicott adota um ponto de vista radicalmente relacional, diferenciando-o de uma ótica da satisfação pulsional. Salienta que a mutualidade não é fusão ou mistura de formas. A mutualidade ocorre quando se gera um sentimento em que está implícita a liberdade de cada um e uma confiança não idealizada. Considera que, dada a natureza dos pacientes na atualidade, a problemática psicanalítica contemporânea gira em torno do pré-verbal, do não representado ou irrepresentável. Ilustra tal colocação com um caso clínico, afirmando que o setting é principalmente interno, e que em algumas situações há necessidade do que denomina "consultório expandido".

 

Paradoxo

Este eixo inicia-se com um trabalho de Raquel Zak de Goldstein, que afirma que o pensar paradoxal sustenta o "como se" dá lugar ao trabalho metafórico e metonímico a serviço do sonho e sustenta a realização do desejo, desejo sonhado, típico do jogar e do criar. O paradoxo se sustenta em uma pergunta que não vai ser contestada. A ambicionada "solução" do paradoxo está na base de algumas patologias chamadas atuais e conduz a uma organização de defesas que alude à estrutura do falso self.

Bernardo Tanis parte do lugar do analista na clínica com crianças e adolescentes que perderam um dos pais, e se refere a um dos paradoxos fundamentais de Winnicott acerca da capacidade de estar só na presença de alguém. Assinala que existem dois caminhos para os paradoxos: um que conduz à construção de vínculos e a um viver criativo, e outro que pode acarretar patologias severas, esgarçando a trama psíquica e sua capacidade de simbolização. Apresenta quatro situações clínicas e do campo sociocultural em que se constata a presença desses paradoxos em torno de dois eixos cruciais no desenvolvimento da subjetividade: a estrangeiridade do outro e as transformações espaçotemporais.

Luís Cláudio Figueiredo expõe três teses relativas à lógica paradoxal: (1) sobre o objeto da psicanálise, o sujeito humano; (2) sobre o discurso teórico, sua lógica e seu estilo; e (3) sobre a clínica psicanalítica e seus dispositivos - enfatizando nessas três instâncias a efetividade do "paradoxo". Ao final, é feita uma menção às condições em que o paradoxo pode adquirir um potencial tóxico e uma função destrutiva.

Tânia Maria J. Aiello Vaisberg considera a contribuição de Winnicott inigualável, uma vez que permite que a psicanálise cumpra sua vocação original de saber, que se contrapõe vigorosamente à psiquiatrização do sofrimento humano, justamente por pensar a loucura - e a sanidade possível - como paradoxo. Essa colocação faz da psicanálise a mais autêntica e fundada "antipsiquiatria", na medida em que implode qualquer tentativa de excluir a psicose, estabelecendo uma continuidade inevitável entre sanidade, neurose e psicose. A autora conclui referindo-se às "oficinas psicoterapêuticas de criação" que desenvolve na Universidade de São Paulo, segundo linhas que seguem paradigmaticamente o jogo winnicottiano do rabisco.

Reinaldo Lobo afirma que, ao introduzir uma terceira área da experiência humana, Winnicott propõe uma outra dimensão da constituição lógica e ontológica do pensar ou, mais exatamente, da vida psíquica. A ordem que sustenta essa virada epistemológica é a do paradoxo. Em sua perspectiva, pensar significa a "capacidade de tolerar paradoxos". Com Winnicott, o jogo (play) ganhou foro de instância de conhecimento e se tornou, epistemologicamente, central. Com o paradoxo winnicottiano, há uma negociação entre prazer e realidade, em que a realidade é alcançada e perdida intermitentemente.

 

Psicossoma

Noemí Lustgarten de Canteros considera que a enfermidade psicossomática delata a dissociação e a fuga para a intelectualização como tentativas de proteção. Para a autora, as ideias acerca das falhas de sustentação (holding e handling) e seus efeitos de cisão como defesa extrema ante o desvalimento têm hoje uma dolorosa atualidade no incremento dos fenômenos psicossomáticos. O terceiro espaço psíquico, em que a aceitação do paradoxo permite o jogo de coexistência dos opostos, seria a possibilidade de coexistência não por indiferenciação ou fusão de territórios, mas pela demarcação que pode prescindir de oposições excludentes e irreconciliáveis. É importante que nessas situações o analista "deixe-se abandonar", sem se sentir atacado nem desqualificado, na medida em que "o paciente necessita experimentar na transferência, a partir de seu gesto espontâneo, o jogo de aproximação e distância" (p. 266).

Yoshiaki Ohki acredita que Winnicott comete alguns equívocos quando usa o termo "psicossomático", sem diferenciar quando se refere a uma doença ou a uma somatização. Segundo o autor, Winnicott também não distingue hipocondria de doença psicossomática/somatização, e opondo-se mais uma vez a ele, que as descreve baseadas no splitting, afirma que este só ocorre após alguma integração.

Jorge C. Ulnik tem como objetivo propor elementos de técnica psicanalítica que possam ser utilizados no tratamento de pacientes com problemas somáticos, no sentido de ajudar a dissolver a cisão psique-soma. Para isso, busca ferramentas que auxiliem a escuta quando algumas mensagens são pré-verbais. Assim como acedemos às formas de pensamento que nos parecem estranhas - como o pensamento selvagem (Levi-Strauss) - buscando analogias com as formas de pensamento mais familiares, do mesmo modo acedemos à natureza estranha das enfermidades isolando suas propriedades incomuns das formas de pensamento mais familiares.

Milton Della Nina salienta a importância do uso da contratransferência, da atenção às manifestações corporais e, principalmente, da expressão do verdadeiro self do analista. É por meio de gestos espontâneos, ou da liberdade de criar imaginativamente, que o psique-soma (como emissor ou receptor) capta os fenômenos no vínculo presente. Quando a mente do analista assume o papel do corpo e o "falso self" fica preso excessivamente a teorias, a comunicação primitiva de inconsciente para inconsciente fica impedida, o que fortalece as dissociações psicossomáticas.

 

Tendência antissocial

José Outeiral considera que Winnicott, ao elaborar suas reflexões a respeito do comportamento antissocial, a partir da experiência de atendimento a crianças e adolescentes evacuados durante a Segunda Guerra Mundial, trouxe uma dimensão totalmente inovadora à sua teoria do desenvolvimento emocional. A existência sofrida e conturbada de François Truffaut, um dos mais criativos diretores de cinema, é usada por Outeiral como ilustração dessa síndrome: com episódios de abandono e solidão - incluindo internação em instituição para menores delinquentes - que o levaram a comportamentos transgressivos e até a tentativas de suicídio, encontra finalmente no cinema, através de uma "rede de apoio" afetivo, a possibilidade de demonstrar como a arte pode ser usada para a restauração do self.

David Léo Levisky investiga técnicas preventivas do comportamento antissocial. Entre 2001 e 2005, realizou uma experiência em nove escolas - distribuídas em três bairros da cidade de São Paulo - com alta incidência de violência. Na prática social foram utilizados conceitos psicanalíticos, principalmente os de "maternagem" e "holding". O projeto teve dois eixos: o Núcleo de Trabalho Escolar e o Núcleo de Trabalho de Teatro. Por meio dele, os jovens passaram a fazer parte ativa desse universo, conscientizando-se inclusive como cidadãos, gerando fortes sentimentos de pertencimento e solidariedade, o que levou a um grau mais alto de desenvolvimento dessa população.

Pablo Abadi relata um caso pungente de uma paciente que se suicida por causa de um analista, a quem o autor atribui características antissociais. A paciente é uma moça com uma desorganização psicótica, tratada psicanaliticamente com bons resultados. Devido à mudança de endereço para Nova York, inicia uma análise com um analista didata, que começa a medicalizá-la à sua revelia. Diante dessa situação, o autor se pergunta: em nome de que o analista medica? Considera que uma das razões é a idealização da profissão, que, ao chocar-se com a realidade cotidiana, leva o analista a atacar inconscientemente a relação transferencial e também a regra da abstinência através do que Winnicott chamaria de condutas antissociais. O mais comum nessas situações é a necessidade (do analista) do uso de medicação - um modo de fugir desse incômodo lugar de abandonado pela psicanálise.

Raul Gorayeb traça a trajetória de Winnicott na construção do conceito de tendência antissocial a partir de sua vida e obra como psicanalista engajado. Traz a própria experiência de muitos anos como supervisor de equipes de abrigo de crianças e junto a ONGs que empreendiam trabalhos com crianças de rua em São Paulo. Nessas condições, pôde constatar a veracidade da hipótese winnicottiana quanto à ocorrência de deprivação, entre os dois e cinco anos, na origem do movimento que fazem os indivíduos quando estão se ligando afetivamente a alguém e, para testar o vínculo, desenvolvem atitudes agressivas.

 

Vazio

Paulo de Moraes Mendonça Ribeiro considera que, para Winnicott, o vazio precisa ser vivenciado na relação analítica, uma vez que ele parece estar relacionado a importantes situações localizadas em um passado remoto, em uma época que precedeu o grau de maturidade que tornaria possível ao "vazio" ser experienciado. Pacientes com intensas vivências ligadas ao "vazio" apresentam áreas de falha na simbolização, ou seja, fenômenos sem representação mental que muitas vezes recorrem a atuações, somatizações ou enactments.

Jaime Marcos Lutenberg afirma que, há aproximadamente vinte anos, a evidência clínica do vazio mental vem se impondo. Na realidade, são pessoas que, por trás da superadaptação a seu meio social, construíram um vínculo "simbiótico com o mundo externo circundante". Dessa forma, seu vazio originário, assim como o vínculo com seus objetos primários, conservam congeladas as qualidades emocionais primitivas do vínculo simbiótico infantil. Qualquer rompimento de seus vínculos dá lugar a uma vivência de terror muitas vezes imperceptível, pois é automaticamente anulada por uma vasta gama de defesas.

Henrique Honigsztejn, recorrendo a Winnicott para abordar o vazio, salienta o tédio e a futilidade como características de pacientes que se queixam ocasionalmente de se sentirem vazios. Para o autor, o grande antídoto para esses sentimentos seria uma ligação libidinal com o meio social, a circulação na área cultural, o que criaria possibilidades de uma aproximação encantada com o mundo: a admiração. O autor menciona Goebbels, que intensificava seu ódio na busca de afastar qualquer percepção de impotência e desamparo, na medida em que um aspecto básico de seu self - a imagem idealizada de Hitler - se abalava.

Marlene Rozenberg e Rahel Boraks descrevem algumas facetas do vazio, fazendo distinção entre vazio como horror e como expressão de fonte de transformações e integrações a serem alcançadas. Criam o conceito de "vazio sustentado", equivalente ao conceito de não integração de Winnicott, que deriva do espaço existente no estabelecimento do si mesmo. É paradoxal que, para criar o self, o bebê precise do outro. Assim, a experiência do vazio é parte do nosso ser. Propõem diferenciar horror do vazio da experiência do vazio. Esta não é tóxica. Marion Milner usa, a esse respeito, o conceito de vazio grávido. A experiência do vazio corresponde, no analista e no paciente, à capacidade de estar só.

Jaime Coloma Andrews afirma que só podemos pensar no vazio no interior de um continente, o que implica que só o imaginamos em função do que o circunda. Talvez se possa afirmar que a ordem da matéria nunca se apresenta, só se representa. O vazio nos ameaça, nos circunda, aparece na angústia, mas não se pode representar. Pensa-se no vazio e faz-se com que ele ocupe um espaço linguístico, que o nega no ato de afirmá-lo. Podemos saber do vazio; não podemos conhecê-lo.

Diante da rica, criativa e diferenciada gama de interpretações do pensamento winnicottiano em nosso meio, só podemos nos congratular com os organizadores, articulistas e leitores da produção desse livro.

Aproveito a oportunidade para homenagear José Outeiral, recém-falecido, que foi um dos introdutores e estimuladores do estudo de Winnicott em nosso país.

 

 

Correspondência:
Cecília Luiza Montag Hirchzon
Rua Carlos Sampaio, 158
01333-020 São Paulo, sp
Tel.: (11) 3288-7654
cecilu@bol.com.br

Creative Commons License