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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.48 no.1 São Paulo Jan./Apr. 2014

 

EDITORIAL

 

Editorial

 

 

Bernardo Tanis

Editor

 

 

Mutações e perplexidades

A mutação é um grande momento revolucionário, muito diferente da ideia de crise
(Adauto Novaes).

Acostumados há algumas décadas a falar em crise da psicanálise, prevalece em certos meios uma nostalgia pelo passado que, mais do que honrar a potência transformadora da psicanálise, confunde a força e a riqueza da tradição com inércia e engessamento. A Revista Brasileira de Psicanálise, nos últimos anos, não tem se furtado a promover um debate plural, clínico e teórico desses importantes temas. Comemoramos, assim, a escolha temática para o Congresso da IPA em Boston, em 2015 - Um mundo em mutação: formas e uso das ferramentas psicanalíticas na atualidade, que anuncia em sua proposta: "Vivemos em um mundo em rápida transformação, que desafia os ideais psicanalíticos de reflexão e de tempo para o pensamento. Como essas mudanças afetam a mente, a nossa técnica e nossos consultórios?". Dos vários temas que estarão em pauta, destacamos: a natureza das ansiedades no século xxi; o trabalho psicanalítico em diferentes contextos; as novas configurações familiares; o sexual e identidade de gênero; homofobia, transfobia e bifobia; tempo, ética e cultura; o uso de novas ferramentas eletrônicas e seu impacto sobre a psicanálise e o setting analítico, conectividade onipresente e como pensamos a privacidade.

O número que apresentamos aos nossos leitores inscreve-se neste movimento de convite à reflexão em torno de alguns desses tópicos. Como disparador e introdução a nosso tema, publicamos uma entrevista com Ivo Mesquita, atual diretor da Pinacoteca de São Paulo e curador-chefe da 28ª Bienal de São Paulo. Além de apresentar uma reflexão autobiográfica sensível sobre seu percurso formativo como curador, Mesquita comenta acerca das mudanças e transformações no cenário cultural brasileiro:

Claro que o masp, o mam, a Bienal são todos parte de um projeto de modernização, durante os anos de 1950, do nosso meio artístico a partir de um modelo hegemônico e eurocêntrico. Acho que até ali nós estávamos presos a essa ideia de sermos um desdobramento da Europa.

Assim pensamos que, na América Latina, ao lado das transformações globais das últimas décadas, estamos também engajados, como parte de nossa identidade, no debate em torno da colonização e seus efeitos econômicos e culturais. Talvez por isso o tema mutações mais do que evoca tensões e conflitos imanentes a nossa cultura.

Um outro elemento destacado por Mesquita, que será abordado pelos autores convidados, diz respeito ao lugar das instituições museológicas, que guarda interessantes analogias com as instituições psicanalíticas e as expectativas que nelas depositamos:

Eu acho que o maior risco, do ponto de vista da arte e do museu, é o engessamento da instituição, tanto pela adoção de modelos externos aos processos específicos da disciplina quanto pela adoção de noções de otimização e produtivismo na avaliação da performance, do desempenho da organização. Esses princípios de gestão não podem intimidar a noção de liberdade regente no interior do museu, porque é a condição primeira para o aparecimento da arte.

Duas analistas convidadas, Sônia Eva Tucherman e Eliane de Andrade, comentam a entrevista a partir do vértice psicanalítico.

A seção temática tem início com o interessante trabalho de Rogério Coelho de Souza, que, no contexto das mutações, reflete em torno da possibilidade do conhecimento advindo da surpresa e da dúvida. Na sequência, publicamos dois trabalhos que certamente resultarão instigantes ao leitor - ambos voltados para a transmissão da psicanálise em um mundo em mutação. Sverre Varvin e Bent Rosenbaum se debruçam sobre os estimulantes desafios inerentes à transmissão da psicanálise na China, projeto iniciado há trinta anos; descrevem o seu desenvolvimento e assinalam proximidades e diferenças entre certos aspectos da cultura chinesa e a psicanálise, o que, no dizer dos autores, "pode ser ilustrado pelo exame de alguns princípios - por exemplo, o da mudança, o da contradição e o da relação ou holismo". Já Javier García, que foi o primeiro diretor do Instituto Latino-americano de Psicanálise (ILAP) - cuja função é promover a transmissão da psicanálise em países nos quais não há sociedades pertencentes à IPA -, apresenta de modo claro e direto o desafio dos institutos e da formação de analistas na atualidade. Como adequar os novos formatos das demandas sem perder o essencial que recebemos das primeiras gerações de analistas? O autor transita com lucidez pelas delicadas questões da relação entre a instituição, suas normas e regulamentos e a liberdade inerente à transmissão e ao exercício da clínica psicanalítica.

Oswaldo Ferreira Leite Netto e Sonia Kleiman abordam, em dois trabalhos consistentes, temas que estão na ordem do dia em nossa cultura e nos consultórios psicanalíticos. Leite Netto, retomando a questão da sexualidade e do erotismo desde Freud e sua diferença com a postura médica, discute a importante posição da psicanálise e sua contribuição para a despatologização da homossexualidade e a escuta das singularidades. Kleiman, por sua vez, propõe a necessidade de uma transformação de certos aspectos da teoria psicanalítica, de modo a permitir uma abordagem a partir dos vínculos. Nas palavras da autora:

Pensar a partir dos vínculos, diferentemente de pensar sobre os vínculos, implica começar no meio, ou seja, abandonar a ideia de núcleo, de centro ao redor do qual tudo ficaria coagulado. Requer deixar de pensar em cada sujeito como centro, ou pensar o vincular como igual à relação, um e outro. O vincular é produção.

"Realidade virtual e setting: de costas para o futuro?" é o título de um artigo apresentado por um grupo de colegas de São Paulo que se debruça sobre o lugar das novas tecnologias nas subjetividades e no trabalho psicanalítico. Suas indagações ampliam a reflexão sobre as possibilidades e limites destas práticas - indagações ancoradas em experiências e em um estimulante diálogo com colegas de várias latitudes que têm se voltado para este assunto. Finalizamos esta seção com Myrna Pia Favilli, que aproxima as vivências do navegante à experiência do psicanalista frente ao desconhecido da clínica. Qual será o destino destes aventureiros em um mundo mutante como o nosso? O que restará da ousadia desta tortuosa travessia pelos confins mais remotos da nossa subjetividade? Com a força da linguagem poética, Favilli transita pelos fundamentos da experiência analítica.

Luís Claudio Figueiredo, em um exercício em torno da natureza da escuta psicanalí-tica e da escuta poética, alude ao modelo de uma escuta polifónica, resultado da ampliação da capacidade de escuta do analista, enriquecida pela contribuição dos avanços na compreensão dos modos de comunicação e das diferentes organizações psíquicas que envolvem distintos níveis de simbolização, e pelas transformações no lugar do analista. Publicamos também um texto de intercâmbio de autoria de Dominique Scarfone, analista canadense que, comentando um trabalho de Michel de M'Uzan, examina a dimensão traumática da "comoção criativa", sugerindo que esta pertence à dimensão temporal do "impassado", própria do inconsciente. Este tema se vincula à questão do Atual na psicanálise, assunto do 74° Congresso de Psicanalistas de Língua Francesa, que terá lugar em maio de 2014, no Canadá.

Finalizando, são de muita riqueza os artigos de Roosevelt M. S. Cassorla, Leda Codeço Barone, Patricia Vianna Getlinger e Alfredo Menotti Colucci e Ester Woiler - estes autores sinalizam trilhas de investigação importantes que dizem respeito à atualidade da nossa clínica.

Inauguramos assim nosso ano de 2014 de olho nas mutações e perplexidades - no mundo e em nosso campo. A todos, uma excelente e agradável leitura.

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