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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.48 no.1 São Paulo Jan./Apr. 2014

 

DIÁLOGO

 

Ivo Mesquita e o compromisso com a liberdade1,2

 

 

Como tudo começou

IM Quando fui convidado para dar uma conferência na Universidade de Oxford, no ano passado, sobre a situação atual dos museus, que papel eles têm nos respectivos contextos, quais os seus desafios, os organizadores me colocaram como questão inicial: "Como é que tudo começou? Por que você está nesse campo?".

Eu acho que tudo começou quando, pela primeira vez, fui ao Rio de Janeiro e vi, no Museu Nacional de Belas Artes, o quadro O último tamoyo, de Rodolfo Amoedo. Eu fui arrebatado por aquela imagem, um quadro grande, quase em tamanho natural. Não pelo seu conteúdo literário, mas pelo erotismo da nudez daquele índio morto, acolhido por um religioso, em uma cinzenta praia tropical. Eu tinha doze anos, e foi naquele momento, de um gozo com a imagem, com a emergência de uma memória, que eu fui fisgado pela arte. Eu sinto que em todos os meus trabalhos, projetos, pesquisas, e toda vez que olho para a arte, para a produção artística, estou buscando o prazer desta primeira pintura. Eu sempre penso que as pessoas que se envolvem com artes visuais têm essa coisa do olhar, do desejo que ele põe em movimento, da pulsão escópica. Para mim, teve a ver, sim, com o resgate de uma recordação de infância.

Eu nasci em São Paulo, mas cresci no interior - um tempo no norte do Paraná (durante os anos de 1950-60), que naquele momento vivia um boom de desenvolvimento, com a derrubada de florestas, abertura de estradas, construção de fazendas, fundação de cidades. Foi o começo da riqueza daquela região. Mas claro: se alguém chega, alguém sai. Sobravam uns índios desterrados, abandonados à própria sorte, que sobreviviam, por certo não por muito tempo, nos vilarejos poeirentos que se formavam.

Foi em Umuarama, onde meu avô tinha uma propriedade. Lá havia um índio, um garotão de dezesseis ou dezessete anos, que vivia na casa do farmacêutico e trabalhava como um factótum para quem precisasse. Um domingo, eu o vejo nu, bêbado, montado em um cavalo em pelo, descendo em carreira a única rua daquele lugar, levantando um rastro de pó vermelho atrás dele, e jogando loucamente muitas notas de dinheiro, que a molecada, saindo da cortina de poeira da cavalgada, recolhia com grande algazarra. Algo impressionante, um flagrante cinemático da realidade, uma cena inesquecível, quando eu tinha sete anos.

Daí que, anos mais tarde, quando eu vi o quadro no museu, foi como se eu reencontrasse aquele índio, morto na representação, mas, de algum modo, por meio dela, eu percebia que outra imagem mantinha o índio vivo, pulsante na minha imaginação. Era algo fascinante, o desejo. Evidente que eu não tinha esta percepção tão clara naquela época, mas foi a partir dessa experiência que eu descobri algo que me interessava, onde estava o que eu queria. Comecei a olhar mais livros de arte; fui adolescente cinéfilo; desenvolvi o gosto por teatro e dança; sempre andei atrás do mundo das representações, visuais de preferência. A primazia do olhar. Sempre encontrei neste amplo território - e continuo encontrando - algo que me satisfaz, que me completa. Foi como se, ao longo do tempo, as diferentes formas da arte fossem me revelando as possibilidades de existir e aprender a partir de uma noção de liberdade inerente a toda invenção, a toda arte. Podemos inventar por meio da imaginação e construir o que queremos ser. Porque a arte não é regra, não é consenso; ao contrário, é algo tão arbitrário a gente aceitar que ela exista, que tenha as formas que tem! Mas é aí que reside a sua beleza como invenção do homem, coisa pura do espírito e da cabeça.

RBP Então o seu caminho de formação inicial tem a ver com essa liberdade?

IM Tem. Eu venho de uma família tradicional, conservadora; sempre estudei em colégio religioso, embora meus pais não fossem praticantes nem estimulantes. Eles valorizavam e investiam na educação dos filhos, mas eram liberais no sentido de não impor escolhas, e sim promover a busca por autonomia e identidade. Evidente que tínhamos que cumprir certo número de coisas, dentro de regras e metas bem definidas na família e na escola, onde aprendi com os jesuítas - muito bons educadores - tudo sobre hierarquia, normas, regras e como pô-las em questão. Eu acho que logo descobri que a arte me tirava desse lugar.

Mas a decisão por uma carreira em artes não foi algo fácil, pois, embora seus pais promovam e apoiem as suas escolhas, eles têm expectativas e você vive num certo círculo, o seu contexto familiar e afetivo. Não era fácil, no final dos anos de 1960, ser filho da burguesia e se meter com arte e artistas. Meu pai ficou meio apreensivo e falamos de fazer arquitetura, diplomacia... Chegara a hora de decidir por uma carreira. Optei por diplomacia porque gostava de línguas, história, geografia, viajar, conversar, mas tinha que fazer uma faculdade antes, pois você só entrava no Instituto Rio Branco depois de já ter uma graduação. Problema: o que fazer antes? "Ah, tem uma escola nova na usp, de comunicações", oferecendo diversos cursos, como jornalismo e relações públicas, e disciplinas que me ajudariam na diplomacia. Fiz o vestibular e entrei na eca3, ou dito de outro jeito, saí do colégio de padres e parei na escola mais maluca e desbundada - como se dizia na época - da Universidade de São Paulo naquele momento. Era uma escola recém-criada, que juntava jornalistas, bibliotecários, moçoilas casadouras, artistas, gente de cinema, rádio, tv, teatro, gente procurando um rumo, mas todo mundo diferente um do outro, cada um do seu jeito. Aí foi uma delícia, a liberdade total, perceber as múltiplas possibilidades de ser e estar. Aí eu comecei a me interessar por arte de modo disciplinado, sistemático e me graduei em jornalismo.

O envolvimento com artes plásticas veio com a Bienal. Eu havia visitado, ainda no colégio, as Bienais de 1965 e 1967, e nesta última, ficara muito impressionado com aquela energia toda posta em movimento pela pop art e pela nova figuração. Então, em 1969, uma amiga, a Giuliana Di Prete, filha do Danilo Di Prete, artista premiado na Bienal de São Paulo, me levou a fazer o curso para monitor da Bienal, o primeiro curso de história da arte que fiz. Daí eu comecei a frequentar o ambiente artístico paulistano e desenvolvi uma relação especial com essa organização em particular, pois foi lá que eu aprendi quase tudo sobre a minha profissão. Sob a orientação do professor Walter Zanini, no programa de mestrado na ECA, foi no arquivo da Bienal4, estudando e pesquisando, que entendi o que era e a extensão do campo, a história dele, sua tradição. E também a própria história da Bienal, que constitui e contém uma significativa história da arte do século XX. Eu aprendi quase tudo lá.

Mas, antes do mestrado, eu ainda não sabia se queria ser artista ou outra coisa. Então, fiz curso de arte com o Baravelli5, o Resende6, o Fajardo7 na Escola Brasil. Foi muito importante, porque eles me ensinaram, acima de tudo, a olhar a arte, o olho do artista. Fiquei na escola por três anos (1971-73), até que percebi que gostava mais dos livros sobre arte que da prática artística, embora ainda não imaginasse onde eu iria acabar. Daí a opção por voltar à academia e fazer um mestrado.

 

A importância da Bienal

Eu trabalhei por oito anos na Bienal, entre 1980 e 1988, depois de quatro anos pesquisando nos arquivos da instituição para uma tese nunca concluída - eu não me graduei - sobre uma periodização da história desta exposição a partir da imprensa brasileira, entre 1950 e 1979. Mas não havia como terminar a tese: uma coisa é você estudar um objeto; outra é você ser parte dele, interno, responsável. Comecei como assistente do Luiz Villares, então presidente da Fundação Bienal, que chamou o Zanini para curador-chefe. Foi lá que as coisas começaram a se consolidar, quando, sob a curadoria geral da Sheila Leirner, eu fiz a minha primeira exposição como curador, em 1985, e construí as bases de um network que me levou profissionalmente para fora do Brasil.

Por um lado, eu aprendi o que é uma instituição cultural no Brasil dedicada à arte contemporânea, seu papel na formação do nosso ambiente artístico e intelectual, sua gestão e precária economia se comparada com hoje, pois naquele momento, início dos anos de 1980, ainda não havia Lei Sarney ou Rouanet. A Bienal é parte de um projeto de um país moderno, pensado e desenvolvido a partir dos anos de 1950. O Zanini ensinava e punha em movimento o que ele chamava de "a vocação do Brasil para o moderno e o contemporâneo", afirmando a Bienal como agente fundamental no processo de internacionalização do circuito artístico local.

Por outro lado, a Bienal foi o espaço onde, a partir da observação e interação com diferentes curadores, eu tive a oportunidade de aprender e entender a minha prática profissional, a curadoria, para além do professor, pesquisador, especialista. Eu mesmo me imaginava como um deles trabalhando em um museu. Até aquele momento, o curador era um acadêmico vinculado ao sistema dos museus, o produtor de expertise e conhecimento fundamentado sobre artistas e períodos históricos, e não essa figura popular e midiática de hoje. Porque até ali a arte contemporânea não tinha essa bola toda que ela tem agora. O artista tinha que fazer o seu trabalho e, ao mesmo tempo, criar as condições de circulação e inscrição dele.

Foi a partir das Bienais de 1985 e 1987 que percebemos pela primeira vez o que era a globalização, pelo menos nas artes visuais. Pela primeira vez nos sentíamos, ainda que timidamente, a par e passo com o resto do mundo. A Grande Tela, proposta curatorial de Sheila Leirner em 1985, evidenciava isso: pinturas e instalações aproximavam artistas de todas as latitudes, revelando certa extensão do campo, para além das fronteiras nacionais.

Também foi nesse período que teve início o boom dos curadores e das bienais, com mais de trezentas entre vivas e mortas. Ambos foram agentes e estratégias importantes no processo de globalização da arte, do mercado de arte, dos museus. Por sua vez, a Bienal de São Paulo, por ser uma mostra tradicional e na América Latina, desempenhou um papel fundamental na visibilidade da arte do continente. Curiosamente, ela é mais considerada, mais bem percebida no exterior do que aqui no Brasil, em mais um sinal da nossa baixa autoestima. Isto porque temos um preconceito expresso tanto quando não nos reconhecemos como latino-americanos como quando não aceitamos que a originalidade e contribuição da Bienal de São Paulo ao circuito internacional das artes visuais decorriam de ela ser uma exposição tradicional da periferia. Europeus e norte-americanos não viriam aqui para ver artistas europeus e norte-americanos; vinham sim para ver artistas latino-americanos e de outras periferias, que não se apresentavam na Bienal de Veneza. Evidente que as coisas mudaram e hoje temos outras perspectivas e possibilidades. As polaridades entre centro e periferia não são mais uma questão. Portanto, é importante que a Bienal continue como um espaço de experimentação, de risco, um território livre para a arte e os artistas de toda parte.

Também vale lembrar a contribuição da Bienal na formação do caráter cosmopolita de uma cidade construída por imigrantes, assim como da presença de uma instituição com história em um ambiente rarefeito de organizações consolidadas. O nome Bienal aparece em padaria, lavanderia, transportadora e todo motorista de táxi sabe onde fica. Está amalgamada com a cidade, pois nos ensinou a ser modernos, como uma escola para um olhar contemporâneo. Nós somos o que somos hoje por causa da Bienal, não por causa do masp, que nos ensinou um pouco da história da arte, assim como a Pinacoteca. A Bienal nos ensinou o gosto pelo atual, pelo novo, pelo contemporâneo. Ela não criou um acervo material para a cidade, mas nos legou um imaginário imenso, uma memória valiosíssima, que se percebe na maneira como vivemos, no caráter da cidade, da gente, na qualidade das nossas organizações culturais, dos nossos hábitos sociais, do nosso meio artístico, acadêmico, intelectual, filantrópico. Ela nos fez a cabeça!

RBP Você acha que o MASP nos aproximou de sermos europeus, e a Bienal quebrou com isso?

IM Sim, mais ou menos isso. Claro que o masp, o mam, a Bienal são todos parte de um projeto de modernização, durante os anos de 1950, do nosso meio artístico a partir de um modelo hegemônico e eurocêntrico. Acho que até ali nós estávamos presos a essa ideia de sermos um desdobramento da Europa. E daí a nossa baixa autoestima, por sabermos que não resultamos iguais a eles. Hoje, no entanto, quando olhamos para essa história, podemos perceber a diferença que a Bienal implantou com o seu programa. Enquanto a Pinacoteca e o masp, digamos, se ocupavam da história da arte, os mams, de onde sai a Bienal, são pensados para o contemporâneo, inspirados pelo Museu de Arte Moderna de Nova York. Mas como os mams, por razões diversas, nunca conseguiram manter uma consistência financeira e programática, a Bienal, por seu caráter temporário, experimental, um laboratório para o tempo presente, tornou-se um dos palcos em que se puderam perceber os processos de transformação e desdobramentos da produção artística brasileira, sua contribuição ao debate do seu tempo. Com o recente reconhecimento da qualidade e inteligência singular do que chamamos de "tradição construtivo-concreta" da arte brasileira, ele ganha outro sentido quando pensamos que o movimento concreto tem na I Bienal seu momento fundante. Ao longo de sessenta anos, pudemos ver no Pavilhão do Ibirapuera, entre altos e baixos, todos os humores da arte do nosso tempo. Foi neste espaço que se articulou e se fez visível o que hoje é referido como "interpretações ou respostas da periferia à modernidade totalizante e hegemônica".

Entretanto, é preciso entender que, se hoje a arte brasileira faz o sucesso que faz, tem bons preços no mercado e está presente em coleções públicas e particulares importantes, não é apenas por conta de Bienal e da globalização. É preciso lembrar sempre que, ainda que de modo improvisado, não sistêmico, esse processo de internacionalização, esse gosto cosmopolita do nosso meio artístico, esse olhar para fora, está na origem do nosso sistema da arte com a fundação da Academia de Belas Artes, em 1816, no Rio de Janeiro, uma escola de modelo e professores franceses, que se sentiam desconfortáveis nos trópicos.

 

A Pinacoteca e o museu como instituição

RBP E como você faz para caber sua exuberância em uma instituição? Porque agora você é diretor da Pinacoteca.

IM Ah, eu era feliz e não sabia. Antes como curador-chefe eu só lidava com os artistas, as exposições, os curadores, os conservadores. Claro que havia problemas, stress, mas, digamos, estávamos em família, dentro de um campo comum. Agora não. É toda uma estrutura administrativa, com cerca de duzentos e cinquenta funcionários e um orçamento anual de mais de trinta milhões de reais. Para a Pinacoteca ser o que ela é hoje, ter a projeção que tem, nacional e internacionalmente, foi preciso estruturar o museu com departamentos técnicos e administrativos, imprimir um caráter programático às suas atividades, com organização e método, planejamento financeiro, definição de metas, como em uma empresa. Ao lado disso, existe todo um aparato de controle externo ao museu, que são as auditorias, os tribunais de contas, os jurídicos e financeiros das secretarias e ministérios, que controlam o uso dos recursos e a realização dos programas, pois operamos com dinheiro público vindo do Estado e das leis de incentivo fiscal para a cultura. E isso só foi possível, viável, graças ao modelo de gestão por os, Organização Social, uma parceria público-privada, no caso entre a Secretaria de Estado da Cultura e a Associação Pinacoteca Arte e Cultura apac, iniciada em 2005.

Por certo, todo esse aparato, ao mesmo tempo em que estrutura a instituição, enrijece os seus processos e relações. O desafio está em saber flexibilizar essas bases e encontrar um modelo de gerenciamento adequado à natureza do objeto e do trabalho do museu, reconhecendo a hierarquia de saberes que articula a sua organização, e visando a atender as especificidades e demandas das suas atividades afins. Assim, muito do meu tempo atual vai para a administração, mas o importante é o diretor manter a equipe envolvida e entusiasmada pelo projeto do museu.

Agora eu acredito muito na minha equipe, nas pessoas que ajudei a formar, das quais eu tenho grande orgulho. Eu sempre tive assistentes muito especiais, alunos e classes memoráveis nos onze anos que estive no Bard College - um programa de mestrado para a formação de curadores -, que hoje têm carreiras encaminhadas, com trabalhos inteligentes, vibrantes. Acho que não existe coisa mais gratificante do que formar pessoas. E a gratificação não está apenas em vê-las bem, mas em perceber o quanto essas pessoas formaram você. Temos uma tendência a nos cristalizarmos na nossa geração - no meu caso, como curador. Os meus alunos, os meus assistentes sempre me fizeram ver trabalhos, textos que eu não estava olhando porque não abria espaço para isso. A única possibilidade que você tem de que o seu projeto - os seus princípios - venha a ter algum desdobramento é acreditar nas pessoas que você formou.

É o suceder das gerações. Na história dos museus paulistanos, temos primeiro o Sérgio Milliet e o Mário Pedrosa, depois o Zanini e a Aracy Amaral, depois a minha geração e do Marcelo Araújo, e cada uma delas vai consolidando coisas, formando linhagens. O importante agora é consolidar as instituições para que elas tenham papéis muito claros, assumam as suas especificidades, diferenciem-se umas das outras: Bienal não é museu - museu sem acervo não existe! Por isso acredito que o mais importante agora é o processo de qualificação dos profissionais e das estruturas de operação dos museus, desenvolvendo espaços e programas claramente definidos. Mas, sobretudo, é preciso promover a despersonalização da instituição e criar uma horizontalidade, uma massa crítica de técnicos e profissionais que representam a organização e o segmento profissional.

RBP O que você diz é uma espécie de um interpretante para as instituições psicanalíticas. Nós temos também as linhagens pessoais, as escolas; temos a colonização europeia, com os modelos que vieram da Inglaterra, da França e, agora, do empirismo americano - por um lado, formando a psicanálise brasileira, por outro, engessando; por um lado, a importância de consolidar a instituição, por outro, a de garantir dentro dela a liberdade. E a natureza das nossas instituições tem a ver com formação.

IM Esse é um dos grandes desafios hoje, assegurar a integridade do campo e das suas condições de trabalho, porque, na verdade, a instituição de arte virou parte de uma grande economia. Por isso eu me referi à necessidade da gestão do museu - por exemplo, gerar os próprios métodos de organização, processos de trabalho e avaliação deles. A arte e a cultura hoje representam um enorme mercado profissional, muito além dos especialistas, ganhando escala industrial com o turismo, o entretenimento e o lazer. A arte tornou-se uma commodity com alto valor agregado, seja para o mercado de arte, seja para os investidores e colecionadores, seja para os artistas. Como sempre, esse valor não se estendeu aos profissionais dentro do museu, embora sejam eles que articulam e produzem toda legitimidade formal do sistema.

Eu acho que o maior risco, do ponto de vista da arte e do museu, é o engessamento da instituição, tanto pela adoção de modelos externos aos processos específicos da disciplina quanto pela adoção de noções de otimização e produtivismo na avaliação da performance, do desempenho da organização. Esses princípios de gestão não podem intimidar a noção de liberdade regente no interior do museu, porque é a condição primeira para o aparecimento da arte. Cada vez mais, temos que explicar, justificar os investimentos com resultado em número de visitantes, de escolas, de exposições, de programas, de publicações. Isto pode ser fatal para o museu e para a arte por extensão. Eu consigo entender a necessidade de organização e planejamento, mas é preciso encontrar índices qualitativos, pois arte é qualidade -por causa disso tem tanto valor agregado. Temos brigado muito por isso, pois não podemos fazer a exposição de um artista só porque ele vai trazer duzentos mil visitantes.

A ideia de museu que trabalhamos na Pinacoteca tem a ver com a noção de qualidade, pois oferecemos uma experiência específica, e o sujeito tem que ir até lá para saber. É muito legal a estratégia de difusão do museu nas redes sociais. Mas isso não substitui a experiência dele. Para nós, o tempo do museu não é o tempo do mundo fora dele. Ali convivem muitos tempos, simultaneamente. Para perceber, demanda silêncio e contemplação.

A partir da abertura do Beaubourg em Paris, em meados dos anos de 1970, os museus, em particular os de arte moderna e contemporânea, tornaram-se extremamente populares, algo inimaginável no tempo em que eu era estudante. Foi muito bom para eles ir ao mundo, ficar populares, mas acho que está na hora de voltarem um pouquinho para o lugar original deles.

RBP Uma das questões que a gente vive com muita intensidade na identidade latino-americana é que as artes e as instituições nasceram de uma elite. Você está trazendo a ideia de que elas poderiam ter a função de um significante que faça pensar.

IM Essa coisa da elite é interessante. Está na origem dos museus: eles surgem das coleções reais e da aristocracia tornadas públicas por diferentes circunstâncias, ou criados pela filantropia do capitalismo moderno. O Ulpiano Bezerra de Meneses - outro grande pensador dos museus, um arqueólogo, ex-diretor do Museu de Arqueologia da usp - diz que o problema do museu de arte é que ele fica sempre pedindo desculpa porque foi inventado pelos ricos. E é verdade isso. O museu de arte - e a sua disciplina, a história da arte - sofre esse preconceito, porque é tomado como uma coisa de ricos, da elite intelectual. E além disso, tem dois outros problemas relacionados: o primeiro é que por ser um território da arte, expressão do sujeito, é, portanto, livre e democrático, todo mundo pode ou se sente no direito de dar palpites e se fazer visível; o segundo é que, a despeito dos esforços do museu em fazer o patrimônio simbólico algo coletivo, ele sempre serve ou é vendido pelo marketing como um signo valioso para aspirações burguesas.

Hoje em dia há uma instrumentalização do museu, que pode ser extremamente perniciosa, porque nutre perspectivas e avaliações moralistas sobre as suas origens, os valores que representa, a disciplina especializada que articula, a economia que põe em movimento. Agora ele tem que ser educativo, inclusivo, politicamente correto, atender a todos os públicos, ouvir as demandas da comunidade, além de continuar como espaço de pesquisa, produção de conhecimento, salvaguarda do patrimônio público. Então, a maioria dos programas que falam em popularização do museu, de algum modo, reduz, em nome da pedagogia, o seu sentido cultural e simbólico em favor da educação patrimonial e coletiva. Quase nunca é sobre o olhar, a educação do olhar, a formação do gosto. Queiramos ou não, o museu de arte trata do cânone artístico. Eu posso, na pós-modernidade, desconstruir todas as teorias hegemônicas, o autoritarismo dos cânones, mas eles permanecem com outros nomes e estratégias. Não há como escapar de definir parâmetros, referências em um campo, uma disciplina tão organizada e institucionalizada. A questão é como dar conta de tantas contradições que existem no processo da instituição.

RBP Como fica a questão da globalização e da arte regional, e qual o papel do curador nisso?

IM O museu, enquanto organização, enquanto instituição, numa perspectiva latino-americana, ainda tem uma função política, social, educacional, que não é o que acontece, por exemplo, com os museus midiáticos como o Beaubourg, o MoMA, o Reina Sofia, a Tate Modern - eles não são mais museus nacionais, pois apresentam uma narrativa internacional da história da arte ocidental; e com mais de um milhão de visitantes por ano, fica muito difícil, para qualquer museu, desenvolver um trabalho preciso junto a públicos específicos, identificar seus visitantes.

Portanto, ainda que tenhamos aquelas organizações como referências, o nosso trabalho na Pinacoteca está focado na formação de um público local. A gente tem que ir atrás dele, e o nosso Serviço Educativo oferece uma variedade de programas para todos os públicos. Porém, ao mesmo tempo, esses grandes museus europeus se empenham na descentralização de suas coleções, abrindo sucursais no interior do país - Tate St. Ives e Tate Liverpool, o Pompidou em Nantes - ou em outros países, como o Louvre e o Guggenheim. No caso do primeiro grupo, trata-se de uma forma de manter alguma coisa do museu tradicional, existindo mais próximo das comunidades. E nesse sentido, os museus brasileiros são ainda dispositivos fundamentais na educação pública, na formação do sujeito crítico, do cidadão.

 

Oriente, Ocidente e a arte hoje

RBP Como curador que viaja e tem contato com muitos artistas, o que você nota como transformação na produção artística? Porque o tema da nossa revista é Mutações.

IM Há quase uma década, todos os anos eu vou à conferência anual do Comitê Internacional de Museus de Arte Moderna cimam. É como se fôssemos uma família - os seus pares - que se reúne anualmente. Cada vez é em um país diferente, e passamos quatro ou cinco dias escutando um monte de gente falar sobre arte e circuitos artísticos, visitando museus, galerias, coleções e conversando sobre temas que vão da família à crise mundial. Eu tomo o que vejo nessas ocasiões um pouco como um termômetro de como vão os museus e organizações afins, assim como dos desafios que se colocam a eles diante da crescente diversidade de contextos culturais, práticas artísticas, histórias e tradições.

Para mim, a grande revelação, a grande surpresa - e isso não é bem uma novidade no meio artístico -, é a produção artística, de visualidade, que vem do Oriente Médio, da Ásia e da África, ainda desconhecida aqui no Brasil, e que pode ser algo extremamente positivo e produtivo. Acredito que a próxima Bienal mostrará coisas importantes neste sentido. Para mim, essas produções são bem perturbadoras, desafiantes, porque colocam em xeque nossas referências, valores e tradições. Não é nada novo: apenas uma nova forma no velho confronto Oriente/Ocidente. Mas, por exemplo, na América Latina, a despeito da miscigenação racial, nossas bases estão fundadas no Ocidente, na língua latina, na religião católica, no direito romano, no Iluminismo, na Revolução Francesa, enquanto eles produzem a partir de uma tradição diversa para um contexto outro que não conhecemos, pois os percebemos distorcidos pela política, economia e cultura ocidental. O impressionante é a fúria destas produções, as diversas nuances que ela pode ter.

Não é um Ai Weiwei, que manipula a mídia, tem um jogo político, um cálculo, causa aquele frege todo, foi educado no Ocidente. Assim como ele, há muitos artistas que trabalham para o público das feiras, das bienais e estão num circuito globalizado. Geralmente trabalham em cima da apropriação dos cânones e referências ocidentais com espalhafato, ironia, pretensa originalidade. Não são esses, de modo geral, os que surpreendem. Vindas de diferentes realidades e histórias, o que me parece novo, desconhecido em relação ao nosso sistema - altamente regulado, normatizado e saturado - é o sentido de integridade, a verdade dessas produções, numa escala muito variada de formas, estratégias e procedimentos, com uma certa simplicidade, uma espontaneidade poética que há muito perdemos. Muita coisa me deixa em dúvida, questiona aquilo em que acredito, não sei em que lugar colocar.

Há dois anos a conferência do cimam foi em Istambul, e o tema foram os artistas e circuitos artísticos na Turquia, Líbano, Israel, Palestina, Egito e Albânia. Quando terminou a apresentação de uma comunicação sobre a Síria, estávamos todos em prantos. Ela foi mostrando e comentando o trabalho de diversos artistas, e eles estavam todos mortos pela guerra. Você tem as formas de resistência dos artistas no Egito, por exemplo, nos desdobramentos da Praça Tahrir. O interessante é perceber o tipo de relação e lugar que essas práticas estabelecem para a arte: do ativismo à contemplação. Falando assim, parece semelhante ao que fazemos. Mas não é. Parece ser produto de outra forma de subjetividade. Na China, parece não haver lugar para a subjetividade no espaço público - a Revolução Cultural teria aplainado tudo.

RBP Eu estava lembrando um livro do Edward Said em que ele fala que, nas escolas da Universidade de Columbia, todos os alunos estudam o cânone ocidental, das grandes obras de literatura, de história, e isso faz parte do nosso imaginário, mesmo na América Latina. Você está falando de uma subjetividade tão radicalmente diferente da nossa, que vai produzir o encontro com o outro radicalmente diferente, talvez.

IM É sempre meio delicado ou difícil falar disto tudo - primeiro pelas generalizações que fazemos, e segundo por caminhar no desconhecido com noções preconcebidas, digamos. É um tema em que caminhamos no fio da navalha. Mas, voltando à China, é interessante ver como, de um lado, está a apropriação furiosa, a massificação, a coisa kitsch da decoração sempre exagerada, da arquitetura espetaculosa e cafona dos edifícios em formas variadas, de uma arte estridente e espaçosa - isso representaria uma imagem deles como um coletivo; e de outro lado, existe uma produção que segue na tradição do gosto e da disciplina da miniatura, do intimismo e da contemplação, como em um jardim chinês. E foi nesse lugar, ou a partir dele, o jardim chinês, que, historicamente, foram geradas toda poesia, literatura e caligrafia, coisas de contemplação - portanto, de subjetividade e individuação.

A China teve uma revolução cultural que zerou tudo. Ficou apenas a história do Partido e da Revolução. Hoje, com a chegada do capitalismo de Estado, eles estão vivendo uma mudança cultural enorme, com a possibilidade de competir no trabalho, acumular e consumir. Algo como uma readequação no processo da revolução, um resgate do sujeito, porém moldado e condenado aos padrões do capitalismo e do trabalho globalizados.

RBP O filme chinês Um certo pecado é impressionante porque mostra uma violência, uma fúria como reação a esse esmagamento da subjetividade herdeiro da revolução cultural, a essa falta de reconhecimento da subjetividade individual. E a primeira forma de expressar alguma coisa é a violência.

IM Uma história engraçada, que eu acho bem atualizada, é uma previsão de Nostradamus de que o mundo acabaria sob uma onda amarela (por muito tempo, pensou-se que seria a febre amarela) e um papa negro (sempre pensado como um religioso de origem africana). Acho que a sorte está lançada: a onda amarela é a China, comprando tudo, produzindo tudo, com o maior exército do mundo e o mais bem armado; enquanto o papa negro é o Papa Francisco, o primeiro jesuíta no posto, que como tal tem o hábito negro.

 

Psicanálise e a experiência do olhar na arte

RBP Você está falando também da função primordial, tanto dos museus quanto da Bienal, de produzir uma experiência de educação pelo olhar. E você deu a impressão de que tem certa visitação no campo da psicanálise. Se há uma educação pelo olhar, como você acha que, no seu olhar hoje, a psicanálise comparece, ou não comparece? Como é que é isso, no seu olhar sobre a arte?

IM Por uma casualidade, tenho uma relação "familiar" com a psicanálise, pois minha irmã e minha cunhada são psicanalistas, eu sou casado com um psicanalista há mais de trinta anos e, por isso, tenho muitos amigos queridos no campo. Mas a psicanálise faz parte do mundo intelectual e artístico contemporâneo. Além da experiência de paciente, algumas das exposições que eu fiz trabalhavam com noções e conceitos como imaginário, representação, linguagem, estranhamento, desejo, identidade, produção de subjetividade, emprestados da psicanálise - Imaginários singulares (Bienal, 1987, com Sônia Salzstein), O desejo na Academia (Pinacoteca do Estado, 1992), Cartographies (Winnipeg Art Gallery, 1994), Alair Gomes, fotógrafo (mis-sp, 1999), F[r]icciones (Museo Reina Sofia, 2001, com Adriano Pedrosa), entre outras. Pessoalmente, acredito no ensinamento freudiano da teoria da sublimação. Sim, arte é sim sublimação. Mesmo entre os mais racionais e minimalistas, há sempre algo que vaza e entrega, revela a pulsão que move ao trabalho.

Ao mesmo tempo, o trabalho com o museu é uma lida com o imaginário ali representado, visível, regente, e a imaginação que ele põe em movimento. Da psicanálise, a ideia de interpretação muitas vezes é usada como dispositivo ou estratégia de interpretação ou mediação da obra de arte. Pode ser bom ou ruim, e se for bom, tem que ser para a arte. De um modo geral, essas leituras ou interpretações são feitas a partir de noções, muitas vezes, mais da psicologia que da psicanálise. Resulta que elas são narrativas, mecanicistas, reativas, portanto redutoras da experiência sensível do objeto, da história e do tempo que ele contém. Tendem a ser leituras derivativas, da mesma forma que a psicologia pode ser da psicanálise. Vira coisa de manual.

Mas nós estamos falando de algo meio ideal, solitário da experiência do objeto de arte e do museu. A questão é que hoje, por conta da sua presença na paisagem urbana, no lazer e na educação, as atividades do museu são muito mais regradas, articuladas a partir de parâmetros e estratégias pedagógicas e didáticas.

RBP Mas, com todo esse investimento do mercado, você acaba perdendo a possibilidade da experiência individual frente à arte. Às vezes, em exposições muito concorridas, quase que se tem que fazer fila para ver as obras. Que tipo de experiência você pode ter?

IM Esse é um dos grandes desafios para os museus hoje. Por isso a gente trabalha sempre com o acervo e, a partir dele, se definem as exposições temporárias. Quer dizer, a exposição do Kentridge, por exemplo, foi um sucesso. Ótimo! Mas o objetivo é fazer com que o visitante que foi ver a mostra dele volte. Tem que voltar. Estamos trabalhando essa ideia de um museu, um lugar que você pode, deve voltar. Logo depois que o Marcelo Araújo começou em 2002, a Pinacoteca fazia quarenta e quatro exposições por ano. Esse ano de 2014 nós vamos fazer vinte e duas, e nossa meta é fazer menos ainda. Porque não adianta você criar um fluxo do consumo e do entretenimento. O museu tem que ter outras atividades, palestras, visitas especiais, eventos diversos e multidisciplinares. Estamos o tempo todo pensando novas estratégias para trazer o público.

RBP Mas há um momento em que o museu vira uma meca de visitação e que se perde esse olhar. Quando começa essa vocação? É um contrassenso: a gente querer que a Pinacoteca e os museus em geral sejam visitados, mas de maneira a não transformá-los em alvo só de visitações.

IM Hoje nos museus a equação números versus qualidade é algo complicado, porque a gente precisa dessa visibilidade midiática, e com isso acirram-se as contradições. O museu e seus eventos precisam ser populares para conseguir o patrocinador, o patrono, para nos dar dinheiro, porque o Estado não consegue suprir toda a demanda existente. Ainda que ele seja o responsável pela questão cultural, ele não vai conseguir manter a quantidade de equipamentos, de organizações que existem. Daí a importância crescente de parcerias público-privadas na gestão do patrimônio cultural, sempre crescente. Não tem jeito: isso vai ser assim daqui para frente, e o que não for assim terá muito pouca chance de sobreviver fora de estratégias subsidiadas.

Agora, o museu tem que trazer exposições tipo William Kentridge, que atraem milhares de pessoas, assim como exposições disciplinares, experimentais, com poucas chances de sucesso de público. Mas, curiosamente, a despeito de toda a tecnologia marqueteira de que dispomos, nós ainda não sabemos como antecipar a reação do público das exposições, mesmo quando pensamos estar atendendo alguma demanda dele. E isto é extremamente animador, pois nos mantém atentos e preparados para oferecer experiências e produtos os mais diversos e arriscados.

RBP Você está enfatizando sempre como central a questão do museu, um lugar onde a pessoa possa viver essa experiência pessoal, que pode dar um sentido à vida. Assim, tem uma verdade da pessoa que é enganchada ali.

IM É disto que eu falo quando relembro a experiência com o quadro do Rodolfo Amoedo no Rio de Janeiro. Tinha uma coisa lá. E para mim foi o princípio de tudo, da formação do sujeito, do cidadão, do profissional. Acabei fazendo uma exposição na Pinacoteca em 1992, O desejo na Academia, em que pude apresentar essa pintura. E foi muito emocionante poder ter o quadro, estar com ele sozinho no processo de montagem da exposição, tão próximo, algo como tocar o objeto de desejo.

Outra imagem que marcou a minha vida foi quando conheci a dra. Nise da Silveira. Em 1981, eu tive o privilégio de visitar o Museu do Engenho de Dentro guiado por ela. Num determinado momento, ela, comentando os trabalhos, disse: "A arte é como um anzol, que fisga a alma do paciente, puxando-a para fora". Ao dizer isso, ela fez um gesto com a mão, curvando o dedo indicador nodoso, de uma mulher de idade avançada, como um anzol. Uma imagem inesquecível, que eu sempre tenho associada a essa possibilidade da arte de fisgar, trazer para fora uma pessoa, o sujeito crítico. E é isso que eu acho que a gente fica no museu o tempo todo tentando fazer com que as pessoas percebam, encontrem na arte, aquilo que faz você ser você, mais inteiro, mais íntegro. É essa coisa da individuação que é fundamental. Evidente que, por vivermos em grupo, coletivamente, tem que ter regras, limites, organização. Mas eu acho que a noção de qualidade de vida, das relações sociais e políticas a partir do indivíduo, é percebida e aprendida com a experiência da arte.

RBP Nós tivemos uma conversa com a Olgária Matos, e ela falou da literatura como um lugar possível de experiência. Você fala de contemplação, de tempo, esse lugar que vai ficando cada vez mais espremido, mais achatado, mais superficial.

IM Eu acho que a individualidade regida pela subjetividade e imaginação vai ser um produto de luxo, de minorias. Hoje o sistema em que vivemos produz uma ilusão disto, de individuação, seja na esfera do trabalho, que promove a competitividade entre os pares e celebra os vencedores com menos custos e mais lucros, seja na esfera sociocultural, em que as redes sociais se reproduzem como afirmação do sujeito frente a sua comunidade, grupos que compartilham afinidades dentro de padrões similares. Daí trabalharmos o museu como um espaço de diferença, de singularidades, contrário aos processos de massificação, e promotor dos processos de individuação e produção de subjetividade. Tem a ver com a noção de ócio -que os antigos diziam ser a origem da arte, da poesia e da filosofia -, que o nosso tempo está apagando com a objetividade e obrigatoriedade do lazer, do hobby, do tempo marcado para você. O ócio é contemplação solitária, silêncio, coçar, flanar. Estamos perdendo essa possibilidade de experiência do mundo, em favor de um mundo e um tempo totalmente otimizados, produtivos e positivos. Eu acho que a arte ensina que, se fosse para ser assim, não existiria a arte. Claro que isso é meio romântico diante do mundo de negócios em que se converteu o sistema em que se inscreve o museu. Mas continuamos acreditando haver alguma possibilidade de transformação, renovação no exercício deste princípio, ainda.

RBP Muito obrigada pela generosidade da entrevista que nos concedeu hoje.

 

 

1 Ivo Mesquita, curador e historiador de arte, diretor-técnico da Pinacoteca do Estado de São Paulo.
2 Entrevista realizada no dia 1º de fevereiro de 2014, na sede da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP. Participaram: Bernardo Tanis, Ana Maria Brias Silveira, Mônica Cintra Antonácio Povedano, Raya Angel Zonana, Silvana Rea, Sônia Soicher Terepins e Thaís Blucher.
3 Escola de Comunicações e Artes.
4 Arquivo Histórico Wanda Svevo.
5 Luiz Paulo Baravelli.
6 José Resende.
7 Carlos Fajardo.

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