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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.48 no.1 São Paulo Jan./Apr. 2014

 

COMENTÁRIOS SOBRE A ENTREVISTA

 

O compromisso com a liberdade

 

Committing to freedom

 

El compromiso con la libertad

 

 

Sônia Eva Tucherman

Membro efetivo com funções didáticas plenas da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro (SBPRJ)

Correspondência

 

 


RESUMO

A partir da entrevista de Ivo Mesquita, a autora relata ideias que lhe ocorreram à medida que se deixou afetar pelos comentários do entrevistado. Passeia pelo conceito freudiano de unheimlich, pela noção de sem memória e sem desejo de Bion, e pela literatura, para propor que o comprometimento do analista com a liberdade se expressa na capacidade e/ou possibilidade de expor a si mesmo ao desconhecido e ao estranhamento.

Palavras-chave: unheimlich; vínculo; assombro; tolerância; liberdade.


ABSTRACT

From the interview with Ivo Mesquita, the author reports ideas which occured to her as she allowed herself to be affected by the comments of the interviewee. She strolls through the Freudian concept of unheimlich, through Bion's notion of "without memory or desire" and through literature. All in order to propose that the analyst's commitment to freedom expresses itself in the capacity and/or possibility of exposing him or herself to the unknown and to estrangement.

Keywords: unheimlich; link; astonishment; tolerance; freedom.


RESUMEN

A partir de la entrevista de Ivo Mesquita, la autora relata ideas que le surgieron a medida en que se dejó afectar por los comentarios del entrevistado. Pasea por el concepto freudiano de unheimlich, por la noción de sin memoria y sin deseo de Bion y por la literatura, para proponer que el compromiso del analista con la libertad se expresa en la capacidad y/o la posibilidad de exponerse a sí mismo a lo desconocido y al extrañeza.

Palabras clave: unheimlich; vínculo; asombro; tolerancia; libertad.


 

 

Foi um imenso prazer ler a entrevista de Ivo Mesquita. Agradável do princípio ao fim, Ivo opta pelo tom coloquial, simplificando conceitos complexos, tornando-os não só digeríveis, mas saborosos. Eu diria que dispensa comentários. Por isso, optei por apenas me deixar levar pela fala do entrevistado, permitindo que suas palavras ecoassem em mim livremente, para depois observar e anotar como me afetaram.

Durante a leitura de sua transcrição, parecia que eu estava presente à entrevista, sentada confortavelmente em uma sala de estar, ouvindo e vendo a cena. Uma cena heimlich, no sentido de aconchegante, familiar. Uma experiência de insight, de elementos se conectando, tornando heimlich o que era obscuro. Uma sensação marcante pelo prazer de me descobrir compreendendo, vivência que provoca certo deslumbramento e que se encontra no mesmo terreno do arrebatamento sentido por Ivo Mesquita em sua primeira visão "uau" - a visão surpreendente de uma imagem estranha, que não se entende (ou ainda não), que está em busca de um sentido (ou talvez prestes a encontrá-lo), que alcança familiaridade no recôndito inconsciente. Ele nos descreve a cena que suscitou aquela experiência de estranhamento, o unheimlich freudiano:

Um índio jovem, bêbado, nu, cavalgando ribanceira abaixo, jogando dinheiro pelos ares. É uma imagem espetacular, que poderia perfeitamente estar em páginas de Guimarães Rosa. E por esta espetacularidade mereceu se transformar em um quadro que Ivo pintou na memória e guardou no seu museu interno, onde habita também "O último tamoio", quadro de Rodolfo Amoedo -representação contundente de piedade e morte.

Não à toa, o conceito de unheimlich lhe é bastante caro, tendo sido mesmo inspiração para a exposição "Imaginários singulares".

As singularidades dos imaginários de Tarsila, Flávio de Carvalho, Ismael Neri, Goeldi, citados por Ivo, com seus deslocamentos e suas distorções - homem fundido à mulher, mundo invertido, casa assustando pessoas, peixe comendo pescador - e de artistas orientais como Cai Guo Qiang e seus robôs irônicos, máquinas extravagantes, animais assustadores, ao mesmo tempo em que nos assombram, nos atraem pelo eco que encontram em nossos imaginários fantásticos, especialmente em phantasias arcaicas.

O assombro que uma visão pode provocar me fez lembrar o filme "A primeira coisa bela" (La Prima Cosa Bella, 2010), dirigido por Paolo Virzi: Bruno é um garoto que precisa lidar com o fato de ser filho de uma mulher belíssima, Miss Mamma, que atrai todos os olhares masculinos da pequena cidade de Livorno, principalmente o seu próprio olhar. Esta é uma visão super "uau" para o pequeno Bruno. E para todos nós que tivemos também nossa primeira coisa bela.

O primeiro encontro entre um bebê e sua mãe deve conter esta magia, este êxtase, que reexperimentamos posteriormente, com variações e atualizações, quando algo nos arrebata. Não foi por acaso que fez tanto sucesso aquele comercial veiculado em 1987, "O primeiro sutiã a gente nunca esquece", pois todos nos identificamos com aquela refilmagem de emoções primitivas em novos tempos, novos personagens e novos cenários. A primeira mamada, primeira professora, primeiro beijo, primeira polução, menstruação, relação sexual, a visão de um filho após o parto... A emoção de uma conexão, uma melodia, uma imagem. Ou um mistério.

A atração pelo misterioso, pelo desconhecido, em oposição à aversão que paralisa, evolui para uma necessidade quase vital de saltar para longe do mimetismo, de se afastar do consenso e voar livremente. Liberdade que pressupõe suspensão de modelos canônicos, que implica ousadia para correr o risco de se desfundir da multidão e abrir mão da estratégia da imitação como sobrevivência social. Liberdade implica disponibilidade para o mistério, condição para que possa surgir arte onde havia ausência.

É Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa (1972), citado por leda Tucherman (2013, p. 30), quem diz que "Exige-se um estudo profundo/ uma aprendizagem de desaprender". Manoel de Barros, também citado no mesmo texto, acompanha: "Desaprender oito horas por dia ensina os princípios".

E Bion (1987), artista da psicanálise, elaborou conceitos preciosos que transportam para nosso ofício de psicanalistas esse estado de suspensão dos poetas. É este autor que nos adverte que é preciso não saber para que se possa saber sobre algo, alguém ou algo de alguém. Que é necessário abrir mão do conforto do conhecido e se lançar com coragem na "tempestade emocional" do encontro com o mistério. É Bion (1994) também que nos ajuda a compreender o arroubo de satisfação que nos invade quando uma função da percepção se vincula com uma função do conhecimento, ou um pensamento se vincula com outro pensamento, ou pensamento com conhecimento, pois "vínculos são elos de ligação - emocional e relacional - que unem duas ou mais pessoas, ou duas ou mais partes dentro de uma mesma pessoa". São conexões que fazem surgir compreensão onde havia incompreensão ou terror ou vazio. "É arte que não dá em árvores", como diz Ivo, "É pura coisa da cabeça!" Assim, todo fruto gerado por conexões é artístico, é criação, resultado fértil da capacidade de sentir, de juntar, pensar os pensamentos - portanto, expressão de liberdade.

Se para Ivo é a Bienal, e não o museu, o "espaço de experimentação onde acontece o risco, essa parte importante da arte", e onde o exercício da liberdade pode de fato acontecer, cada encontro analítico é como uma Bienal onde nos arriscamos todo o tempo no espaço do contato entre as subjetividades. E é também espaço de experimentação, não no sentido de "experiência que, a partir de uma hipótese, busca observar e classificar determinado fenômeno em condições controladas" (iDicionário Aulete), mas no sentido de experimentar em si, experienciar, vivenciar as emoções que possam advir do encontro de duas alteridades. Às vezes, emoções confortáveis; outras vezes, nem tanto. Há ocasiões em que somos tomados por uma sensação de inquietude e desconforto, ou um assombro diante de algo que nos é familiar, posto que é humano, mas também nos é estranho, posto que é outro. Há uma aparente desarmonia que exige um trabalho mental de juntar, integrar elementos que se afiguram inconciliáveis, díspares - capacidade de integração própria do conjunto de mecanismos conceituado por Melanie Klein (1969) como posição depressiva.

Posso relatar um evento pessoal vivido na clínica há muito tempo, cerca de trinta anos atrás, e ainda vívido em minha lembrança pela intensidade da sensação de estranhamento. Tive um sonho insólito, excêntrico, em que mordia um cachorro. Na manhã seguinte ao sonho, fiz algumas associações, refleti e me dirigi ao consultório. Durante a sessão com um paciente, ele me conta que sonhara naquela noite que comia um cachorro. Embora suas associações para o sonho tenham sido, evidentemente, diferentes das minhas, a semelhança entre os conteúdos manifestos despertou em mim uma estranheza desconfortável. Esse acontecimento parece remeter ao tema do "duplo" - também abordado por Freud (1919/1976) no texto "O estranho" - sobre o qual não me estenderei agora. Lembro bem que não me deixei seduzir pela saída fácil da magia, da onipotência do pensamento, como pontua Freud, mas me perguntei "O que é isso?".

Freud se debruçou sobre o tema do estranhamento, o unheimlich, que surge do paradoxo entre o cotidiano e o inusitado.

Diz Freud (1919/1976):

Em geral, somos lembrados de que a palavra heimlich não deixa de ser ambígua, mas pertence a dois conjuntos de ideias que, sem serem contraditórias, ainda assim são muito diferentes: por um lado significa o que é familiar e agradável e, por outro, o que está oculto e se mantém fora da vista. Unheimlich é habitualmente usado ... apenas como o contrário do primeiro significado de heimlich e não do segundo . heimlich é uma palavra cujo significado se desenvolveu na direção da ambivalência, até que finalmente coincide com seu oposto, unheimlich (pp. 282-283).

Se focarmos neste ponto das reflexões de Freud, meu deslumbramento com a fácil compreensão dos comentários feitos por Ivo, o êxtase diante de uma primeira experiência sensorial ou sensual, o encantamento diante de elementos se conectando, o júbilo diante da elucidação de um mistério, coincidem, ou melhor, habitam a mesma área emocional que o arrebatamento diante da cena do índio nu a cavalo, do estranhamento dos quadros descritos por Ivo, de algumas das inquietudes que sentimos em certos momentos na clínica. Podería-mos incluir tais emoções sob a mesma noção de heimlich/unheimlich?

O estranho provoca uma perplexidade que nos faz perguntar "O que é isso?", conforme relata Ivo, diante das mutações que vamos testemunhando. Na China, ele ficou desconcertado com um furor que não conhecia; não sabe o que pensar sobre o que viu, sua própria noção de arte foi desconstruída, e ele questiona se aquilo é arte, se pode ter outro nome, e concluiu sem concluir que talvez seja arte, deve ser, ele não sabe...

Ele não sabe ainda. Mas se coloca suficientemente livre para duvidar de seus conceitos estabelecidos até então, e sustenta em si mesmo o estado de não saber. Estas são condições que se juntam à predisposição e à faculdade de entrar em contato com as próprias emoções, e também a certa passagem de tempo, para que barreiras inconscientes sejam transpostas de maneira que o que estava oculto se revele, e o familiar se sobreponha ao assustador ou algum outro afeto:

... pois esse estranho não é nada novo ou alheio, porém algo que é familiar e há muito estabelecido na mente, e que somente se alienou desta através do processo de repressão. Esta referência ao fator da repressão permite-nos, ademais, compreender a definição de Schelling do estranho como algo que deveria ter permanecido oculto mas veio à luz (Freud, 1919/1976, p. 301).

Susan Sontag (1969), em Trip to Hanoi, descreve com admirável sinceridade seus primeiros sentimentos em relação ao Vietnã, e sua transformação. Conta do "tom melancoli-camente negativo de suas primeiras impressões", do edifício enorme, mas indeterminado no estilo, da bondade exagerada com que era tratada, do clima "misterioso e intrigante". E diz:

Claro, Vietnã do Norte foi irreal naquela primeira noite. Mas continuou a parecer irreal, ou pelo menos incompreensível, durante dias seguintes. Apesar de tão longe e portanto tão diferente das únicas cidades que eu conhecia, aquelas da América e da Europa, Hanoi rapidamente ganhou uma estranha familiaridade. Mas quando eu fui honesta comigo mesma, tive que admitir que o lugar era simplesmente demasiado estrangeiro, que eu realmente não entendi nada, exceto à "distância" (Sontag, 1969)1.

A escritora conclui que, a menos que efetuasse em si mesma alguma mudança de "sensibilidade e consciência", pouco importaria que tivesse estado realmente no Vietnã, mas considerou que exatamente tal mudança foi muito difícil, pois contava apenas com sua limitada cultura como instrumento.

Desprender-se dos grilhões do confortável e seguro consenso, correr o risco de ser genuinamente livre de preconceitos, abrir mão da ilusão de se ter em mãos o saber, se deixar afetar pelo estrangeiro de fora e o de dentro de nós, suportar a ansiedade da dúvida, tolerar a inquietude do estranhamento assim como o êxtase, o assombro, o arrebatamento. São desafios para os quais nos convidam os artistas - poetas, prosadores, pintores, escultores, grafiteiros, performáticos, musicistas, atores, dançarinos e outros, inclusive os não enquadrados em alguma categoria.

Nossos pacientes nos fazem a cada encontro analítico o mesmo convite. Se estivermos comprometidos com a liberdade, aceitaremos de bom grado o desafio e poderemos fazer de nossos consultórios espaços próximos à Bienal, onde, segundo Ivo Mesquita, se fazem as transformações.

 

Referências

Bion, W R. (1987). Turbulência emocional. Revista Brasileira de Psicanálise, 21(1),121-133.         [ Links ]

Bion, W. R. (1994). Uma teoria sobre o pensar. In W. R. Bion, Estudos psicanalíticos revisados (3ª ed., pp.127137). Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Freud, S. (1976). O estranho. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol.17, pp. 273-318). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1919).         [ Links ]

iDicionário Aulete. (2008). Experimentação. Rio de Janeiro: Lexikon Editora Digital. Recuperado em 25 de fevereiro de 2014 de http://aulete.uol.com.br/experimentação.         [ Links ]

Klein, M. (1969). Notas sobre alguns mecanismos esquizoides. In J. Riviere (Org.), Os progressos da psicanálise (2ª ed., pp. 312-343). Rio de Janeiro: Zahar.         [ Links ]

Sontag, S. (1969). Trip to Hanoi. In S. Sontag, Styles of radical will (pp. 205-274). New York: Farrar, Straus and Giroux. Recuperado em 14 de março de 2014 de www.viet-studies.info/TripToHanoi_Sontag.htm.         [ Links ]

Tucherman, I. (2013). Encontro imprevisto: Badiou e Manoel de Barros. Trivium, 5(2),28-32. Recuperado em 11 de março de 2014 da PePsic (Periódicos Eletrônicos em Psicologia): pepsic.bvsalud.org/pdf/trivium/v5n2/v5n2a04.pdf.         [ Links ]

Virzi, P. (Dir.). (2010). A primeira coisa bela [filme]. 122min. Itália. [Título original: La prima cosa bella]         [ Links ].

 

 

Correspondência:
Sônia Eva Tucherman
R. Xavier da Silveira, 118 / 1001, Copacabana
22061-010 Rio de Janeiro, RJ
Tel.: (21) 2548-3977
soniaeva@globo.com

Recebido em 18.3.2014
Aceito em 28.3.2014

 

 

1 Of course, North Vietnam was unreal that first night. But it continued to seem unreal, or at least incomprehensible, for days afterwards. Though so far from and so unlike the only cities I knew, those of America and Europe, Hanoi quickly gained an eerie familiarity. Yet when I was honest with myself I had to admit that the place was simply too foreign, that I really understood nothing at all, except at a "distance" ....Unless I could effect in myself some change ofawareness, of consciousness, it would scarcely matter that Id actually been to Vietnam. But that was exactly what was so hard, since I had only my own culture-bound, disoriented sensibility for an instrument (tradução livre da autora).

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