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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.48 no.1 São Paulo Jan./Apr. 2014

 

COMENTÁRIOS SOBRE A ENTREVISTA

 

A obra-prima de cada um

 

Each one's masterpiece

 

La obra prima de cada uno

 

 

Eliane de Andrade

Membro efetivo e analista didata da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro (SPRJ); integrante do Grupo de Estudos Psicanalíticos de Minas Gerais (GEPMG); professora da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG Belo Horizonte)

Correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo parte de um breve comentário sobre a entrevista de Ivo Mesquita e, lançando mão de uma associação com o Projeto para uma psicologia científica, propõe reflexões sobre experiências de dor e satisfação.

Palavras-chave: mãe; amamentação; perceptos; fruição artística.


ABSTRACT

This article is part of a short commentary on the interview with Ivo Mesquita and, from an association with the Project for a scientific psychology, proposes reflections on the experiences of pain and satisfaction.

Keywords: mother; breastfeeding; percepts; artistic fruition.


RESUMEN

Este artículo parte de un breve comentario sobre la entrevista de Ivo Mesquita, haciendo referencia a una asociación con el Proyecto para una psicología científica, propone reflexiones sobre las experiencias del dolor y de satisfacción.

Palabras clave: madre; amamantar; preceptos; fruición artística.


 

 

Uma boa entrevista se revela tanto pela escolha do entrevistado quanto pelo roteiro das perguntas. A de Ivo Mesquita é tão boa que temos a sensação de estar ouvindo-o pessoalmente.

Mesquita nos coloca ante a possibilidade de expressão do ser humano por meio dos modos perceptivos visuais - vale dizer, a revelação das emoções através dos tempos pela interação com uma obra artística.

Tive a oportunidade de acompanhar alguns curadores (Moacir Laterza, Maria José Fonseca, Yara Tupinambá, Léo Piló) montando exposições em um projeto que coordenamos na Universidade, e sempre nos maravilhamos com a forma como a mente dos artistas plásticos funciona. A visão do espaço e o aproveitamento da luz, a escolha dos artistas e a disposição das peças - enfim, tudo em uma espécie de associação livre visual, com o intuito de oferecer ao observador o melhor da obra de quem vai expor.

E a entrevista de Ivo me remete a uma singular experiência na última Bienal de São Paulo.

Estou na Bienal. Várias pessoas estão ao redor, e há até guias para quem se sentir desamparado cognitivamente. O espaço escolhido é amplo e claro, deixando à mostra quanto percorreremos para ter uma ideia das obras expostas.

À medida que vou caminhando, tenho a impressão de que o tempo não vai dar. As experiências são várias e parece que se vai entrando em uma certa frequência de onda, que nos empurra para querer "ver" tudo.

Mas, além das obras expostas, há também as várias obras compostas pelos visitantes da Bienal. Cada um com suas idiossincrasias, sua maneira de buscar determinada obra, seus comentários e reações.

O que veem as pessoas que se defrontam com uma obra de arte? Uns parecem tão mergulhados no que olham que parecem nem estar lá. Encontram-se - ao que parece - agarrados ao chão, em transe. Outros flanam pelos salões com uma leveza incrível - ou se deitam e até dormem nas instalações para isso destinadas. Outros parecem perdidos e extenuados, contrafeitos.

Crianças e adolescentes escolares algazarreiam: com dificuldade os guias despertam sua atenção. É tão interessante ouvir as explicações destes últimos quanto às perguntas feitas pelos primeiros - às vezes, com a intenção pura de conhecer; outras, com a intenção, também puríssima, de se mostrarem sabidos.

O que vê, afinal, cada uma das pessoas que olha uma obra de arte? Como será que determinada pessoa vive aquela peça, instalação ou quadro? As que ficam boquiabertas estão gostando ou estão assustadas? O encontrar-se com uma obra de arte, o impacto e a satisfação, o susto e a repulsa: não seria um reencontro ou um desencontro?

Ponho-me a pensar e me pergunto: o que vê um bebê, digamos de dois meses, ao olhar fixamente para o rosto da mãe ao amamentar?

Um bebê é um serzinho desvalido: não possui formas de se auto proteger, para tudo necessita de ajuda alheia. E é a mãe que lhe ampara e garante a sobrevivência.

Apesar da entrada compulsória no museu da vida, o bebê, tal como o observador da obra de arte, não sabe o que lhe será apresentado em termos de experiências. Assim, a fruição das experiências da vida, via amamentação, traz experiências positivas e negativas, sensações boas e más. A qualidade das experiências, ao ser mantida em níveis satisfatórios, garante que o bebê suporte a sucessão de quadros de fome e outros desconfortos, até se tornar um bom crítico da obra da vida e conseguir se manifestar através de símbolos.

Em cada amamentação, o bebê vai registrando o seio provedor que lhe arrebata da fome e da insatisfação: passa a criar, assim, um registro mnemônico da mãe, sua primeira obra de arte. E enquanto dura uma amamentação, cada uma delas, poderíamos dizer que o nosso pequeno artista vai incrementando seu registro, tal como o artista que, dos esboços iniciais, passa, enfim, para a arte-finalização de seu projeto.

A amamentação se torna, então, a grande via por meio da qual a criança entra na vida, na cultura. Temos aqui um subproduto - e não no sentido de menor valor - da amamentação: ao perceber a existência da mãe e de como esta a ela se dedica, passa a criança a criar valores morais.

Freud (1905) nos informa que o processo de percepção é um processo criativo. A amostragem do ambiente é dada por pequenos investimentos libidinais no ego-percepção. Segundo Spitz (1983), o modelo oral considera o processo perceptivo um processo ativo e vinculado à alimentação. Percepção e satisfação de necessidade ocorrem concomitantemente, nessa época. Mais tarde, vários outros perceptos entrarão em cena em cada percepção/experiência.

Paulatinamente, o rosto da mãe vai se formando para a criança. O embevecimento de ambas na amamentação, em condições satisfatórias, gera uma obra: a mãe para a criança, a criança para a mãe, uma vez que esta também se encontra derramada nos olhos daquela.

Momento diferenciado na evolução individual, a amamentação poderia ser considerada um momento de criatividade. Mesmo aqueles dentre nós desprovidos de qualquer talento artístico, criam possivelmente na amamentação uma obra de arte. E esta é muitíssimo amada.

Fico cismando que cada pessoa presente à Bienal está ali refazendo seu caminho de percepções e catalogações da qualidade da experiência vivida em cada obra. É possível que alguns não encontrem a identidade perceptiva da sua própria experiência inicial com o seio e a do artista que lhe apresenta sua obra. Daí, talvez, rejeitarem esse tipo de experiência. Outros usufruem tanto que precisam se deitar ou se alimentar ao final do percurso por todas as alas. (Sempre me pareceu interessante a existência de cafés e lanchonetes à saída dos museus.)

No fim das contas, fruir uma obra de arte talvez seja se entregar à experiência inicial de nossas vidas, quando nada tínhamos a oferecer diante dela e precisávamos buscar o que nos nutriria, sem contar com muita coisa, a não ser a própria ação da nutriz e de nossos órgãos de percepção. Ou seja, voltar a uma etapa tão inicial que nos incomoda, pois podemos novamente deparar com o abandono. Quem sabe seja esse reencontro do abandono que faz com que algumas obras sejam veementemente rejeitadas, outras tragam susto e espanto, outras, entretanto, comovam e nos "puxem" para elas. Se o "estranho" nos afugenta, a lembrança da satisfação nos atrai.

Freud (1895/1970) postula que o pensamento se dá exatamente quando não há identificação entre a experiência e o traço de memória. Quando aquilo que encontramos equivale exatamente à memória, dá-se somente a descarga pela via motora. A experiência com a mãe na amamentação enseja ao ser humano a possibilidade de guardar uma parte "coisa desta experiência e outra que pode ser compreendida por meio da atividade da memória". Essas duas partes levam às considerações de reprodução e ao juízo.

A ação judicativa poderia, então, fornecer a experiência de nos encontrarmos nos traços de um artista, pois a forma como a obra é traçada pode ativar em nós um reconhecimento de algo que ficou guardado. Assim, podemos nos emocionar diante de uma obra de arte ao lado de alguém para quem a mesma nada quer dizer. Isto talvez nos ilustre sobre as pessoas que vão com constância a museus e galerias para admirar, inebriadas, determinadas obras, e outras que detestam tais espaços.

Podemos ver muitas coisas belíssimas na natureza. Ao que parece, entretanto, somente uma obra feita pelo homem consegue transmitir ao seu semelhante um sentimento de compreensão da dor e da saída da dor, já que somente um outro humano poderia ter vivido o mesmo abandono inicial e encontrado modos simbólicos de registrá-lo. Daí - ao fornecer possibilidade de humanização, por meio do encontro com a dor do outro - a importância dos museus e espaços artísticos para a organização das sociedades.

Enfim, artistas da vida que somos, nos deparamos em uma exposição com aqueles que, para além da vida, ela mesma, ainda possuem o inequívoco talento de traduzi-la em formato visual.

Parafraseando Paulo Autran, vamos aos museus!

 

Referências

Freud, S. (1970). Projeto para uma psicologia científica. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho originalmente publicado em 1895).         [ Links ]

Freud, S. (1970). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho originalmente publicado em 1905).         [ Links ]

Freud, S. (1970). O estranho. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho originalmente publicado em 1919).         [ Links ]

Hobsbawm, E. (2013). Tempos fraturados - Cultura e sociedade no século XX. São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ]

Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais PUC-MG. Arquivos visuais do Projeto criatividade e pós-modernidade (1999-2014). Belo Horizonte.         [ Links ]

Spitz, R. (1983). O primeiro ano de vida. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Viegas, S. (2009). Escritos: filosofia e arte. Belo Horizonte: Tessitura.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Eliane de Andrade
Av. Brasil, 84 s/1205, Funcionários
30140-001 Belo Horizonte, MG
Tel.: (31) 3241-5534
aelianede@gmail.com

Recebido em 25.3.2013
Aceito em 31.3.2014

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