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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.48 no.1 São Paulo jan./abr. 2014

 

ARTIGOS TEMÁTICOS: MUTAÇÕES E PERPLEXIDADE

 

Psicanálise: território descoberto, território a descobrir1

 

Psychoanalysis: discovered territory, territory to be discovered

 

Psicoanálisis: territorio descubierto, territorio por descubrir

 

 

Myrna Pia Favilli

Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)

Correspondência

 

 


RESUMO

A autora, a partir de uma clínica já experienciada e de leituras diversificadas, propõe refletir sobre qual é a tarefa do psicanalista nestes "novos tempos". Inicia o texto com um convite a uma viagem. Como os navegadores das descobertas do Novo Mundo, uma viagem ao novo, ao inesperado pleno de surpresas e perigos. Aproxima a vivência e as indagações dos navegantes à experiência dos psicanalistas frente ao sempre desconhecido da clínica. Assinala que "é preciso partir, quando o antigo já não basta", como o fizeram Colombo e Freud em suas inquietações, assim como o faz aquele que procura uma análise. Traz questões em várias frentes: desde o ponto de partida, o início de uma análise, até o ponto de chegada, que seria o momento do seu término. Assim levanta inúmeras questões que envolvem esta travessia tortuosa e que envolvem, fundamentalmente, a análise de si mesmo, o caminho interno para avalizar sua própria tarefa e a proposta oferecida aos novos analisandos: o encontro consigo na difícil tarefa do viver. Estas reflexões vão implicar, necessariamente, em termos da instituição, o tema da formação analítica.

Palavras-chave: mundo interno; núcleo de identidade; epistemologia; formação analítica; fim de análise.


ABSTRACT

The author, from a clinical experience and diverse readings, proposes a reflection on the task of the psychoanalyst in these "new times". She begins the text with an invitation to a trip. Just as with the navigators of the discoveries of the New World, a trip towards the new, to the unexpected, full of surprises and perils. She compares the experiences and questionings of these explorers to those of psychoanalysts, faced with the constant unknown of the clinic. She underlines that "it is necessary to depart when the old is no longer enough", as did Columbus and Freud in their unrest, and as does the person who seeks analysis. Issues from several areas are approached: since the starting point, the beginning of an analysis, until the ending point, which would represent its conclusion. This way, the text brings up numerous matters which involve this tortuous passage and which involve, fundamentally, self-analysis, the internal path for the validation of the psychoanalyst's own task and of the proposal offered to new analysands: the encounter with oneself in the difficult task of living. These reflections will imply, necessarily, in terms of the institution, the theme of analytic training.

Keywords: internal world; nucleus of identity; epistemology; analytic training; end of analysis.


RESUMEN

La autora, a partir de una clínica ya experimentada y de lecturas diversificadas, propone reflexionar sobre cuál es la tarea del psicoanalista en estos "nuevos tiempos". Inicia el texto con una invitación a un viaje. Como los navegantes que descubrieron el Nuevo Mundo, un viaje a lo nuevo, a lo inesperado lleno de sorpresas y peligros. Aproxima la vivencia y las investigaciones de los navegantes a la experiencia de los psicoanalistas ante lo desconocido de la clínica. Señala que "es necesario partir, cuando lo antiguo no es suficiente", como hicieron Colón y Freud ante sus inquietudes, de la misma manera que quien busca un análisis. Tres temas en varios frentes: desde el punto de partida, el inicio de un análisis, hasta el punto de llegada, que sería el momento de su término. De esta forma plantea cuestiones que envuelven esta travesía tortuosa y que involucran, fundamentalmente, el análisis de sí mismo, el camino interno para evaluar su propia tarea y la propuesta ofrecida a los nuevos analizados: el encuentro consigo mismo en la difícil tarea de vivir. Estas reflexiones darán lugar, necesariamente, en términos de la institución, al tema de la formación analítica.

Palabras clave: mundo interno; núcleo de identidad; epistemología; formación analítica; fin del análisis.


 

 

Vou convidá-los para as viagens juntos.

O que descobrir de mim, de você, do outro neste imenso mar aberto à nossa frente? Se o navegante parte à procura de novas terras, como podemos dizer que a terra já estaria à vista antes das terríveis peripécias da travessia? E se a travessia nos consumir? E se não houver terra à vista e continuarmos a vagar nestas águas tão perdidas? Imagino esta indagação em Colombo, imagino esta indagação em Freud.

Se pudéssemos voltar aos momentos antes das descobertas, teríamos alguma ideia do drama interno. A única certeza é que é preciso partir. Se o antigo já não basta, é preciso partir.

Algo deste momento parece existir em todo aquele que procura uma análise pela primeira vez. Imaginam seus portos de chegada tal como os antigos navegadores buscavam apenas um novo caminho para as Índias. Com ideais de felicidade já organizados, não imaginam os desafios de um mundo novo, o encontro do primitivo, o amargor das lutas despóticas da conquista, a destruição de civilizações contraditórias, requintadamente elaboradas sobre os sacrifícios a deuses cruéis, e que agonizaram lentamente, e cuja face nunca foi totalmente soterrada. Conquistadores e conquistados vivendo sempre a mesma luta entre Eros e Tanatos nos interiores de si mesmos.

Não é mais nossa situação. A América já foi descoberta e a Psicanálise está constituída. Sabemos que o porto de chegada é sempre a renovação de uma batalha trágica a ser constantemente travada. Mas já que é preciso partir, os novos navegantes partem para descobri-la aí, no lugar onde já estão. Mas tal qual a criança de Winnicott, é preciso a ilusão do ato instituinte de uma realidade já existente. Sem esse paradoxo, perde-se a capacidade de criar. Perde-se a capacidade de ser analista.

É assim que cada um de nós inaugura a Psicanálise dentro de si mesmo. Outra vez o medo, a angústia, a ânsia de se lançar ao mar. Reconstruir esta história de desejo enlaça-se à história psicanalítica. Novos portos de chegada, novas geografias, novas linguagens de contato são estabelecidas e estabelece-se a trama de relações que irá configurar a existência de um continente: a trama rica das teorias configurando a existência de um continente mental.

As teorias o povoam, o colonizam e o exploram, mas como organismo vivo ele sobrevive, sempre aberto às novas descobertas. Num aspecto, contudo, sobrevive sempre intacto, mítico, nos espaços sombrios de cada individualidade.

Seria por isso que Freud colocou a análise como interminável? Será nesse ponto que o sentimento de solidão, mesmo transformando-se na capacidade de estar sozinho, aponta sempre o destino fatal do ser que vai ao encontro de si mesmo, apesar de todas suas peripécias no viver? Colombo teria dito "a América sou eu" e Freud, "a Psicanálise sou eu". O continente descoberto sempre esteve aí onde estamos, mas foi preciso partir para encontrá-lo.

Falemos, pois, dessa tarefa do partir. Mas vamos falar dela do lugar exato onde existimos. Sociedade pós-moderna, falência de valores, tecnologia de ponta, crise epistemológica, simulacro existencial, imagens repetidamente construídas e desconstruídas, o aparato da memória reconstituído na nova máquina de estocagem de dados. E por que não, também deste terceiro mundo periférico, onde a luta pela sobrevivência miserável espelha a face perturbada deste perturbador mundo novo.

Freud falou de tudo isso em "Mal-estar da civilização". O tanto de renúncia instintiva necessária para essa configuração está amplamente descrito, e, não duvido, sempre viven-ciado. A civilização é o mal-estar.

Parece, no entanto, que a memória da máquina inaugura novos tempos que aterrorizam e assustam. Parece que ela ameaça nosso ramo de saber, como se a luta entre Eros e Tanatos não fosse mais uma preocupação para os adoradores do novo deus, deus esse capaz de ser manipulado, controlado, acionado para resolver todos os mal-estares disponíveis, às custas da sensibilidade humana.

Estas águas são revoltas. Poderemos sobreviver ou nos tornaremos obsoletos, membros de uma outra seita esotérica? Quem sabe voltaremos a ser os marginais que sempre fomos, os guardiães de espectros que as modas fizeram aparecer como astros da cultura. Há que encarar este fato e relembrar que as resistências à Psicanálise não são resultado de crises externas. Um tempo sombrio se avizinha e os navegantes poderão não mais encontrar tripulação que se aventure. O que será da Psicanálise, cujas pesquisas, não financiadas, dependem de uma tripulação pagante? Como se inserir numa sociedade assolada, por um lado, pelo perigo do grande-irmão informático, e por outro, pela miséria avassaladora? Valeria a pena pesquisar este tema? Teme-se o fim da prática psicanalítica, mas os analistas se abstêm de pensar-se no seu mundo. Como validar a eficácia de um saber que faz do sofrimento seu objeto, enquanto outros buscam exorcizá-lo ou anestesiá-lo?

Mas, afinal, por que esta nova máquina assusta tanto? Talvez por ser memória para sempre codificada. Ela nos remete ao ponto futuro onde o passado será sempre presente, onde não será possível esquecer. A solução possível será buscar o ponto de intersecção das informações, para colocá-la como primazia do conhecimento naquele momento dado. Esquece-se a memória no exato instante que ela conecta com outra memória. A resultante torna-se ponto de origem.

É isto que fazemos a cada interpretação dos fatos analíticos, e o fazemos necessariamente, porque não é possível fazê-lo de outro modo. A intersecção é o momento que existimos. Se carregamos nossos ancestrais, convivemos com nossos contemporâneos e cuidamos dos nossos descendentes, isto se constitui, a cada momento, a nossa individualidade. É o encontro possível de um porto de sossego, sempre renovado em ponto de partida.

A minha viagem, a minha travessia, as minhas numerosas travessias na análise de mim mesma como analista.

Tento sugar, dentro de mim, qual tarefa de pesquisa está proposta em cada situação analítica: levar alguém ao encontro de seu eu desconhecido. Para isto acontecer cria-se uma realidade virtual; tange o caráter das percepções induzidas por um contexto peculiar, acionado em determinado momento e desligado ao final (começo e fim de análise). É o espaço da ilusão, espaço das imagens condensadas, deslocadas, ultrapassando a ordem do cotidiano. Alguma coisa fica fora da ordem. Analista e analisando se inauguram únicos naquele mar aberto das sessões a navegar. Não se esgota na teoria da transferência e contratransferência. É anterior. É o espaço e tempo de uma história a ser contada, da qual elas fazem parte. É o visor azul, é a tela, é a página em branco de palavras e imagens estocadas por ambos e que, combinadas, formarão o novo texto.

O que foi acionado nesse momento? De parte do analisando, de um modo geral, podemos dizer, utilizando a analogia dos navegantes, que foi acionada a coragem de partir. Mas e o analista? Cabe a ele, afinal, fazer com que esta tela, este visor, tenha a maior capacidade de resolução possível para as imagens projetadas; cabe a ele fazer com que as palavras combinadas formem uma história que faça sentido. É ele que se erige em Colombo e propõe uma viagem.

Vale, portanto, perguntar que coragem é essa que o faz singrar sempre novos mares de sofrimento. De que ponto ele parte e corta as amarras para viagens sempre perigosas? Não podemos imaginar que ele estaria sempre na primeira viagem. Uma vez descoberta a América, ela sempre estará lá. Aliás, ela sempre esteve aí mesmo e toda obra de Psicanálise nos atesta essa verdade. Não podemos lê-las como se o sujeito mental fosse sempre o outro. Daí a dificuldade de leitura que elas apresentam. Estamos implicados nessas descobertas, e nossa trajetória deve envolver a aceitação desse drama. Os mapas internos devem estar assinalados: fantasias inconscientes, mundo primitivo, situação edípica, posição esquizo-paranoide sempre oscilando no seu terror de se tornar depressiva; posição depressiva oscilante no pânico persecutório; identificações projetivas que, se maciças, envolvem o perigo da fragmentação. O analista necessita tê-los ultrapassado e falar de um porto de abrigo, ainda que fugaz.

Será por isso que Bion nos recomenda sem memória e sem desejo? Seria difícil ousar novamente todos os mares, se o analista não houver assimilado cada detalhe de seu terror particular como elaboração de um trauma. Só neste caso teríamos experiência adquirida a indicar o melhor caminho e não o emprego artificial de uma técnica forjada. E o analista deve ser capaz desta assimilação. É sua a responsabilidade de ousar esta outra viagem. Ou não? Ou vamos nós, analistas, nos eximirmos sempre da responsabilidade, invocando o desconhecido dos mares bravios? Não estou assegurando, com isso, que toda viagem tenha que chegar a termo. Os mares realmente são bravios e muitos podem querer não avançar. Estou apontando, apenas, que cada ponto de partida do analista envolve esta responsabilidade. A viagem de cada um de nós tem que ter chegado a um porto, nesta América interna de nós mesmos. A Psicanálise tem que ser possuída com clareza, para que possamos guiar a outros na validade deste caminho.

Não consigo imaginar apenas uma aderência intelectual ou profissional a um corpo de ideias. Nem em uma crença fútil, como se fosse uma visão mística. A análise tem que estar realizada internamente, a tal ponto, que o desligamento da imagem virtual corresponda ao exato momento de real vivido: a análise do viver e o viver uma análise como correspondência de significados.

Isto traria à discussão, entre outras implicações, caso vocês o queiram, o problema da formação em psicanálise. Qual a responsabilidade daqueles que se inauguram como descobridores, quando sua própria viagem está em curso? E ser analista será um porto de chegada para todos? A coragem da partida se mantém, diante das renúncias necessárias ao encontro da própria identidade? São temas a pesquisar e a descobrir nesta viagem específica dos que se assumem como pretendentes.

Do analista, pois, parte a função de transformar esta relação em relação analítica. Iniciar um processo virtual, em aberto, dentro de sistema fechado de uma personalidade ancorada no porto de sua história possível até esse momento. É o dono do paradoxo. Abrir o fechado e fechar o aberto, sem fazer explodir a originalidade individual. É o que o analisando lhe colocaria nas mãos, caso pudesse saber das vicissitudes da travessia: que minha identidade não se perca, ou que se restaure, se possível. E o analista, memória e esquecimento de si mesmo, tem que se estabelecer como o narrador de povos antigos dispersos, cuja função é visitar os rincões distantes, separados por distâncias abissais, para contar a história de uma unidade.

Mantendo-se numa moldura cheia de potencialidades, o analista inaugura a nova-velha história a ser contada: lenda, narrativa, romance, novela, poesia pura, tragédia, tudo será possível a estes personagens que se contam a si mesmos. Estamos no terreno da palavra, da comunicação. Há que poder calá-la ou transmiti-la, segundo a métrica do momento. Muitas vezes recriá-la e repeti-la para que seja possível as inúmeras cenas de um roteiro. Há que haver a arte da palavra para que o saber de si não se transforme em manipulação de um jargão inanimado.

E qual de nós, analistas deste outro fim de século, poderia esperar deste saber de si outra coisa além do eterno reviver das mesmas dores já sentidas ou pressentidas? Somos todos, ao mesmo tempo, o primeiro homem a receber o presente do fogo, condenando Prometeu ao suplício eterno, e somos todos Prometeu, fundador da humanidade.

Tocamos o mistério do saber. Dar um nome a essas elaborações. Nas teorias psicanalíticas, elas alcançam suas formulações e suas generalizações conceituais. Temos estas bússolas a nos orientar. São conceitos já revisitados. Muitos esquecem as antigas dores que eles batizaram e fazem derivar implicações tão abstratas, que as poderiamos espremê-las que não mais verteriam sangue. Para mim, fazem sentido os que ainda trazem este cheiro de carne e sangue, próprio do nascimento. São momentos privilegiados que nos iluminam na pesquisa dos processos mentais. São bússolas para a nossa viagem, mas cada analista deverá construir o espaço onde eles possam ser utilizados. Só assim eles farão sentido. É preciso propor ao analisando essa verificação de seus modos de funcionamento mental e que isso seja aceito. Lida com a arte de interpretar, que cada analista deve construir em cada análise específica. É um momento de iniciação. Não pode ser ensinado; há que ser conquistado dentro de si mesmo, e não podemos imaginar que isso possa ocorrer sem que seus próprios processos de interpretar o mundo e a si mesmo tenham sido desvelados. Há que transpor a ingenuidade e a avalanche das emoções que poderiam impedir a revelação do conhecimento.

É um trajeto difícil, pois beira vivenciar o caos e a desorganização se instalar. Há que estar em função a confiança analítica, tema pouco estudado nas histórias de análises. Observa-se mais os momentos de desconfiança que impedem o progresso da análise e relatados, sempre, como produtos dos impulsos destrutivos do analisando. Não caberia também questionar-se? Falo em confiança analítica, porque vejo o analista confiante no que veio a ser por intermédio de sua própria análise. Claro, há casos difíceis, mas não podemos vê-los como os barqueiros de Aqueronte, conduzindo os tripulantes a uma aceitação da morte prematura. Prefiro vê-los como construtor da imagem belíssima dos fracta, realizada através das equações harmonizadoras dos movimentos caóticos. É necessário, contudo, uma nova linguagem para esculpi-las. É possível organizar o caos num momento dado da trajetória. A vida mental é passível de reorganização, mesmo que a vida seja apenas uma possibilidade dentro das jogadas prováveis. Há que haver confiança neste processo instaurado pelo conhecimento analítico, confiança essa que só o analista pode avalizar.

Perguntaria, agora, se tudo isso tem a ver com ciência. Parece que este é o porto que Freud pretendeu chegar. Estabelece um objeto e um método e parte para construir sua ciência, sem duvidar estar de posse de um instrumento capaz de estabelecê-la. Psicologia abrangente, pois engloba uma área além dos processos conscientes. Estabelece o Inconsciente como detonador do processo de existir, e o método capaz de trazê-lo à luz. Ancora sua pesquisa na descoberta edípica e por aí decifra a dimensão trágica da psique. Outras ancoragens, de outros autores em portos mais primitivos, enriquecem essa trama e colocam em evidência a luta hercúlea pela constituição de um aparato mental.

Determinado pela sua própria história, será o ser humano capaz de ultrapassar-se, se dela se apropria? Freud, em dado momento, descrê da possibilidade terapêutica de sua descoberta. Está em jogo a finalidade de uma análise. Ciência e tecnologia própria, pode ser conhecida e aplicada? Nos ramos de conhecimento, torna-se conhecida e aplicada. Quem de nós negaria a influência da Psicanálise nos pensadores modernos? Mas há os que se negam a reconhecê-la. As vicissitudes da Psicanálise como ramo do saber e proposto ao pensar dos outros passam por inúmeras críticas epistemológicas. A dúvida se insere. A arte de interpretar e o conteúdo interpretado se confundem e buscam sua validação específica. Só podemos falar desse conhecimento a partir da relação analítica. E como justificar esse conhecimento que encerra em si mesmo as condições da possibilidade de pensar e que nos propõe como origem um modelo tão primitivo, tal como uma mãe com seu bebê? Querem os cientistas e os filósofos ouvirem falar sobre isso? Tenho a impressão de que algo está sempre escamoteado nas discussões atuais sobre Psicanálise, como se os analistas se envergonhassem do campo que as gerou. Relação analítica, e os resultados que ela gera, são cindidos e o campo que os propiciou quase nunca são explicitados. Fazer análise torna-se, às vezes, assunto de conversas sociais, como se não estivessem sendo jogadas ali as teorias do conhecimento.

Por isso volto ao meu ponto de partida e volto a falar da responsabilidade de uma análise. Da veracidade de ser um analista? Enfim, do que se faz um analista?

O que me leva a dar um pulo ao porto de chegada. Terra à vista, o fim de uma análise ou análise interminável são termos adequados para esta indagação. São poucas as referências a este momento nos escritos psicanalíticos. Eles se mantêm, geralmente, nas descrições tormentosas da travessia. Mas e o porto de chegada, o fim de uma análise? Freud toca o tema em "Análise terminável e interminável".

Faz parte da história dos mitos, a saga dos navegantes perdidos que forçam seus deuses particulares a levá-los ao porto de abrigo. Ficar à deriva, perdido no mar, encantado pelas sereias, seria a maldição, a impossibilidade mesma da narrativa. Ou a isso chamaremos fracasso de uma análise? Como conduzir o sujeito abstrato da eterna pergunta das suas origens ao conhecimento de uma ampliação de seu ser, sem que as dúvidas ou revoltas emocionais o impeçam de atracar neste porto? A impossibilidade de ser outro; o núcleo irredutível da própria individualidade obrigando-o a reconhecer-se único, dentro de seus limites; o acolhimento do bom e do ruim para se ver livre do ideal persecutório que promovia a ilusão tanática de um horizonte eternamente distante; a responsabilidade de uma inteligência; a construção de uma ética. Não há pesquisas sobre esse momento, como se não houvesse crédito neste novo território a percorrer. Fugimos da instalação do trágico que desvelamos? Quais os critérios para finalizar uma análise?

Descobrir um novo caminho para as Índias, e retornar ao ponto de partida, implica atravessar um continente novo, um perturbador mundo novo que não poderá, nunca mais, ser ignorado. O analista já encontrou este caminho? Sua única possibilidade é atestar, em si mesmo, a veracidade de um conhecimento que não admite o próprio naufrágio. Coloco o problema de saber o quanto já navegou este analista. Problema difícil, pois implica a confiança entre os que falam de Psicanálise, entre os próprios analistas. Águas atormentadas, que as Instituições não conseguem ultrapassar, promovendo, quase sempre, lutas fratricidas que impedem a exposição franca das propostas analíticas implicadas.

Mas se a terra é redonda e o porto encontrado, voltamos sempre a navegar as mesmas águas. O conhecimento se tornaria impossível ou criar-se-ia um re-arranjo infinito de movimento em espiral? Se o porto de chegada for encarado apenas como um estágio possível no momento dado, talvez eu possa fixar-me um pouco, sem causar grandes protestos. Porque mesmo assim, como lugar que habito dentro de mim, a percepção de algo imutável impossível de ser transformado, esta rocha nuclear da própria identidade promove uma revolução avassaladora.

Quantos de nós podem estar dispostos e enfrentar esse momento? Como produtos de abalos sísmicos antiquíssimos, só temos essa face para submeter aos desgastes e erosão do tempo. O passado cristalizado em história resgata a possibilidade de conviver com os novos tempos da posse de uma identidade amplificada. E este resgate tem que possuir a força total de um big-bang. Trajeto duro, complicado, mas possível e veraz, único capaz de prover a criatividade do analista.

Será isto sempre possível? E como? E quando? Como explicitar ao analisando esta tarefa sempre ameaçada, por um lado, pelo temor fantasmagórico de encontro com o princípio de tudo (o vazio, o nada, e no seu radical, o temor do suicídio), e por outro, pelo encontro com o fim de tudo, a determinação impressionante de que fomos vividos (o cheio, o completo, o temor de homicídio)?

E como colocar em conceitos precisos esta clareza cristalina e ruidosa de ruínas restauradas? Alguns conceitos como sublimação, reparação, dela se aproximam mas, pouco pesquisados, ficam perdidos entre aqueles que retratam mais a face de Tanatos. Será que Eros já sucumbiu e a luta foi para sempre perdida?

Não saberia falar sobre isso, neste momento, a não ser utilizando a linguagem do poeta sobre o tempo de madureza, e dizer que há que ladrilhar as mãos de uma grave paciência até que a força criativa possa indicar uma centelha de uma nova linguagem teórica. Fim de análise, tais como nos desertos geológicos colonizados por culturas sofisticadas, é o tempo de justapor à violência das explosões arqueológicas, o refinamento das categorias de pensamento que julgam tê-las domado.

Fim de análise, posse da própria identidade, aceitação severa do existir. Valeu a pena toda essa viagem? Sem os ideais cotidianos de felicidade, só nos restaria estar felizes pelas perdas dos sintomas juvenis?

E, donos desse conhecimento, interessa ao mundo a criação do hiper-espaço de viagens cada vez mais profundas para cada um em particular?

Simulacros reais de nós mesmos, consciência de nossas próprias ruínas, provavelmente nós, analistas, estaremos fora da nova ordem mundial. Mas também, mísseis intergaláticos, numa nova odisseia no espaço, alguns continuarão buscando, a qualquer preço, os territórios internos a descobrir. O eterno retorno, a compulsão à repetição e o big-bang da vida, que só posso definir como o respeito à identidade. Afinal, sobrevivemos às grandes guerras. Não sobreviveríamos à explosão nuclear de nós mesmos.

Talvez haja um tempo em que este tipo de reflexão não venha a interessar a ninguém. Nem sei se está interessando agora, porque estas tarefas de pensar que me propus não têm a pretensão de responder qual a tarefa dos analistas nestes novos tempos. São apenas palavras que invento a partir de uma clínica já experienciada e de leituras tão diversificadas.

Quem sabe, se me for permitido o modelo da ficção, possamos imaginar os analistas tais como os personagens de Farenheit 431, como os homens-livros da Psicanálise.

E, se pudermos criar um espaço ainda mais futuro, poderemos imaginar quantos bits de angústia caberão na mente computadorizada de um menino mutante. E este menino, um dia, brincando com seu robô andróide, duplo, gêmeo imaginário, poderá dizer: "Vamos inventar um game diferente?". E o androide milenar, buscando em todos os seus arquivos de memória, dirá ao menino: "Tudo bem, deite aí e vá dizendo tudo que te passar pela cabeça; quem sabe criaremos uma nova história, juntos".

 

 

Correspondência:
Myrna Pia Favilli
R. João Moura, 647 / 41, Pinheiros 05412-911 São Paulo, SP
Tel.: (11) 3062-3603
myrnapf@superig.com.br

Recebido em 31.1.2014
Aceito em 14.2.2014

 

 

1 Artigo originalmente publicado no livro Perturbador mundo novo - história, psicanálise e sociedade contemporânea, organizado pela SBPSP e coordenado por Luiz Carlos Uchôa Junqueira Filho (São Paulo: Escuta, 1994, pp. 351-361).

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