SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.48 número1Em busca da simbolização: sonhando objetos bizarros e traumas iniciaisA mulher-calopsita: sobre agir e simbolizar em um processo analítico índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.48 no.1 São Paulo jan./abr. 2014

 

ARTIGOS

 

Uma crítica ao conceito de inconsciente a partir da Teoria dos Campos: implicações para a clínica psicanalítica1

 

A critique on the concept of unconscious from the perspective of the Multiple Fields Theory: implications for the psychoanalytical practice

 

Una crítica al concepto de inconsciente a partir de la Teoría de Campos: implicaciones para la clínica psicoanalítica

 

 

Leda Maria Codeço Barone

Psicanalista, membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) e professora do Programa de Pós-Graduação do Centro Universitário Fundação Instituto de Ensino para Osasco (FIEO)

Correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho retoma a crítica ao conceito de inconsciente proposta pela Teoria dos Campos, de Fabio Herrmann. Para Herrmann, o inconsciente - destituído do estatuto ontológico, substan-cialista e unitário - é uma lógica produtiva das representações. Ele não existe, mas na medida em que o método interpretativo (a ruptura de campo) o faz surgir. Outra ideia apontada por esta crítica ao inconsciente é que o efeito desta ordem lógica que se manifesta no sintoma, nos atos falhos e nos sonhos está presente também nos rendimentos normais. Fragmentos da análise de uma criança serão utilizados para ilustrar implicações do conceito na clínica.

Palavras-chave: inconsciente; lógica produtiva; ruptura de campo.


ABSTRACT

This work picks up on the critique of the concept of unconscious contained in the Multiple Fields Theory developed by Fabio Herrmann. According to Herrmann, the unconscious - when destitute of its ontological, material and unitary status - is a productive logic of representations. It does not exist, but it is there inasmuch as it is revealed by the interpretive method (the field rupture). Another idea pointed out by this critique of the unconscious is that the effect of this logical order that manifests itself in the symptom, in Freudian slips and in dreams is also present in the normal functioning. Fragments of the analysis of a child will be used to illustrate the implications of the concept in the clinical field.

Keywords: unconscious; productive logic; field rupture.


RESUMEN

Ese trabajo reanuda la crítica al concepto de inconsciente propuesto por la Teoría de los Campos, de Fabio Herrmann. Para Herrmann, el inconsciente - destituido del estatuto ontológico, sustancialista y unitario - es una lógica productiva de las representaciones. Él no existe, sino que está presente en la medida en que el método interpretativo (la ruptura de campo) lo hace surgir. Otra idea señalada por esa crítica al inconsciente es que el efecto de ese orden lógico que se manifiesta en el síntoma, en los actos fallidos y en los sueños está presente también en los rendimientos normales. Se utilizan fragmentos del análisis de un niño para ilustrar las implicaciones del concepto en la clínica.

Palabras clave: inconsciente; lógica productiva; ruptura de campo.


 

 

O Homem Psicanalítico não possui um lugar concreto e oculto a que se possa chamar seu inconsciente - ou sua verdade interna, de modo geral. É um jogo de representações sem versão original, uma crise de realidade e identidade em movimento. Seu inconsciente não é mais do que uma forma impregnada nos atos psíquicos: não ocupam um lugar psíquico especial os campos em ruptura e suas regras de constituição
(Herrmann, 2001, p. 69).

 

Uma crítica ao conceito de inconsciente: a contribuição da Teoria dos Campos

Não me parece ruim, apesar de redundante, começar esta exposição reafirmando que a Teoria dos Campos, desenvolvida por Fabio Herrmann, é uma crítica aos rumos tomados pela psicanálise ao longo de sua instituição. Melhor ainda, a Teoria dos Campos parece ser o próprio movimento interrogativo inerente a uma crítica capaz de produção de conhecimento. Assim não ficou de fora deste movimento interrogativo o conceito de inconsciente, um dos pilares que sustenta o edifício psicanalítico.

Leda Herrmann (2007) afirma que a discussão deste tema está presente na obra do autor desde 1976, no texto fundador de seu pensamento, notadamente no capítulo intitulado "De Édipo a Sísifo", em que o autor faz uma depuração do sentido que o termo "inconsciente" vai tomando na psicanálise para chegar à conceituação, operacional, de inconsciente "como o conjunto de regras ocultas, estruturantes da consciência, conceituação que, como afirma no texto, é o eixo comum para aquelas já consagradas na psicanálise" (p. 175).

De saída, a Teoria dos Campos põe em crise o estatuto ontológico, substancialista e unitário do inconsciente, tomando como um dos pontos de partida o que Isaías Melsohn aponta em Crítica do conceito de inconsciente em psicanálise (cf. Sister & Taffarel, 1996). Dessa maneira, coloca como pouco provável falar em representações inconscientes para se referir, como usualmente se faz, a um reservatório de ideias, em estado inconsciente, responsável pelo verdadeiro sentido da consciência e revelado pelo trabalho interpretativo.

Assim, seu autor, com base no argumento central da investigação crítica de Melsohn, chamará a atenção para o caráter de contradição presente na afirmação da existência de representação inconsciente semelhante à da consciência, da qual esta seria uma deturpação. Para sustentar seu argumento, Herrmann lembra o exemplo paradigmático utilizado por Melsohn, quando este afirma que, por trás do pavor que o pequeno Hans experimenta diante do cavalo que se debate no chão, não está a figura do pai castrador do inconsciente, mas que o próprio pai está expresso (no nível expressivo proposto por Cassirer) pelo cavalo que esperneia. Diz então o autor: "Disso resulta ser o inconsciente apenas o nível de constituição da própria consciência, o estofo dinâmico da consciência, não um reino paralelo" (Herrmann, 2001, p. 121).

A consideração desta crítica serviu como um dos pontos de partida da reflexão que levou a Teoria dos Campos à formulação de que o inconsciente não existe, mas que há o inconsciente. O autor enfatiza não se tratar aí de um trocadilho, mas de respeito aos termos:

... existir implica exposição, possibilidade de se mostrar como é, enquanto o indefinido haver do inconsciente equivale tão somente à potencialidade do método psicanalítico de fazer com que surja (por ruptura de campo) a ordem lógica de constituição das representações - ideias, emoções, imagens conscientes etc (Herrmann, 2001, p. 121).

Desse modo, a Teoria dos Campos considera uma contradição nos termos falar em representação inconsciente, propondo que a representação inconsciente nada mais é que a representação que obtemos a posteriori da lógica inconsciente que constituiu a representação consciente. É por isso que o autor afirma que o inconsciente não existe, mas ; ou, melhor dizendo, passa a ter havido quando o ponho à mostra por meio da interpretação psicanalí-tica - a ruptura de campo.

Todas as manifestações observáveis do inconsciente - os atos falhos, os sonhos, os sintomas - atestam o efeito de sua lógica de concepção, que ignora ou contraria a razão comum; mas a representação que encarna suas regras, em cada caso, é sempre produto de uma psicanálise - da interpretação como ruptura de campo - e ele (o inconsciente) passa a ter havido ao ser desvelado pelo método. Visto dessa maneira, o inconsciente é responsável por qualquer representação, não apenas pelas aberrantes ou estranhas, mas da mesma forma por aquelas consensualmente aceitas, isto é: o efeito desta ordem lógica que se manifesta nos sintomas, nos atos falhos e nos sonhos também está presente nos rendimentos psíquicos normais.

É bom lembrar que, para a Teoria dos Campos, cada ação humana, cada relação, "é determinada por regras que lhe dão sentido, regras não expressas nem pensáveis enquanto o sujeito permanece no âmbito de seu domínio" (Herrmann, 2001, p. 122), e que, por isso, sua eficácia é absoluta e sem contestação. São regras inconscientes no sentido lato. Herrmann afirma que estas regras formam o campo dessas relações, ou melhor, constituem seu inconsciente relativo - relativo aqui em contraposição à ideia de um inconsciente unitário e porque pertinente às relações que determina e nas quais foi posto a descoberto.

Inconsciente então é uma lógica; não a lógica da razão conhecida, mas outra, aquela que concebe os produtos mentais, que cria ideias e sentimentos e lhes confere sentido. Dito de outra maneira: uma lógica de concepção. Podemos considerar uma ideologia como lógica de concepção na medida em que concebe as ideias das pessoas ou grupos que a ela se submete, embora Herrmann saliente que, em geral, quando fazemos referência à ideologia, nos reportemos àquilo que dela aparece, as ideias e comportamentos produzidos, e não propriamente ao mecanismo produtor. Nesse sentido, também o processo intrapsíquico individual é lógica de concepção - mais especificamente, são diversos sistemas de lógica de concepção.

Herrmann (2001) nos lembra de que parte dessas regras lógicas foi descoberta por Freud a partir da análise dos sonhos. Entre elas, encontram-se a condensação e o deslocamento, tão úteis a Freud e a nós, tanto para a análise dos sonhos como para a dos sintomas neuróticos. Tais mecanismos são lógicas emocionais; "servem para combinar afetos e representações de forma a disfarçar o produto final para a consciência, que acolhe o resultado sem se dar conta do que exatamente está engolindo" (p. 123).

Com toda justiça, Herrmann argumentará que essas lógicas de concepção destacadas por Freud não esgotam suas infinitas e desconhecidas possibilidades, e que não seria justo, por não conhecê-las suficientemente, reduzi-las a dois mecanismos ou a explicá-las por qualquer conjunto conhecido de operadores gramaticais. Sustenta ainda o autor que, pelo trabalho de análise, é possível deixar à mostra lógicas inconscientes de um determinado campo e também fazer surgir, entre elas, deslocamentos, condensações e outros processos.

Outro conceito importante a considerar é o de zona intermediária. Tal conceito, extremamente relacionado ao de inconsciente, e mesmo à origem da Teoria dos Campos, é a meu ver outro ponto de partida para sua crítica ao inconsciente como outra consciência - profundo, substancialista e unitário.

Diz Herrmann que a Teoria dos Campos nasceu de reflexões sobre as malhas de regras que subjazem ao pensamento cotidiano expresso nas superstições, nos preconceitos, nas ideologias e demais hábitos de pensamento do homem comum. Desconfiado da atitude de o analista - movido por uma urgência em interpretar - explicar qualquer ideia ou sentimento do paciente dando um salto fenomenal da superfície para o inconsciente profundo, sem ao menos considerar a hipótese de que poderia ser diferente, pergunta-se o autor:

Será possível que todas as nossas ideias, tão variadas como são, sejam mesmo criadas por uma dúzia de esquemas mentais bem conhecidos? Será possível que, só por haver ouvido algumas frases sobre o medo de emudecer em público, alguém consiga inferir que aí se esconde o desejo de falar de sexo e a repressão do exibicionismo? Se assim fosse que maravilha seria tornar-se analista e conseguir tal penetração no mais recôndito do espírito alheio! (Herrmann, 2001, p. 20).

Tal indagação levou o autor a se interessar por toda sorte de interpretação - antropológica, literária, sociológica etc - e a perceber que há diferentes níveis de interpretação. Disso surgiu a ideia de estudar a zona intermediária que se estende da superfície dos pensamentos e emoções ao inconsciente teórico da psicanálise. Esta investigação ensinou-lhe algo importantíssimo: a necessidade de cuidadoso exame das representações conscientes para conhecer "sua composição na química do espírito" no lugar de forçar correspondência entre representações conscientes e figuras do inconsciente, "pois é para os componentes estruturais das ideias ou das emoções que podemos encontrar correspondência inconsciente, não para elas mesmas - pular da emoção ao inconsciente é um vistoso salto mortal" (Herrmann, 2001, p. 21).

Esse modo de proceder, reconhece Herrmann, está presente no trabalho de muitos analistas. Em Freud, principalmente, encontramos muitos exemplos, como no texto "Inibição, sintoma e angústia", de 1926, em que ele faz uma meticulosa diferenciação entre angústia e medo; em "A negação", de 1925, em que analisa o sentido da forma negativa de juízo; e ainda no caso Schreber, quando trata das variações em torno do tema "ele me odeia". Tal modo de proceder é tão importante como as teorias daí advindas, como a descoberta da projeção na paranoia, da marca do inconsciente no não ou da angústia sinal. Assim diz Herrmann:

... é da análise das representações de superfície, vale dizer, de uma fenomenologia refinada, que nasceram os conceitos ditos profundos, coisas como complexo de Édipo, processo psíquico primário, mecanismo de defesa, instintos etc. A investigação da zona intermediária entre a superfície de representações e inconsciente parece alimentar constantemente a produção de qualquer novo conhecimento sobre este (2001, p. 21).

Da consideração dessas ideias, Herrmann afirma retirar alguns lemas para uso pessoal. Em primeiro lugar, não acreditar na dedução teórica de processos inconscientes se o autor não for capaz antes de investigar a superfície da consciência. Em segundo lugar, depositar mais confiança nas teorias em status nascendi que naquelas deduzidas de outras teorias, "porque a ausência da análise da zona intermediária tende a elevar exponencialmente a margem de erro conceitual" (2001, p. 20). E, finalmente, não acreditar em uma teoria "cuja demonstração de origem na zona intermediária não possa ser seguida e repetida independentemente por mim mesmo" (p. 21).

Segundo o autor, é a análise da zona intermediária que poderá evitar a nefasta tradução simbólica, aquela presente em um hipotético dicionário do sonho, criticada por Freud. Por outro lado, quando surge, em uma análise, um sistema de regras organizadoras das representações conscientes, é possível fazer uma genuína operação simbólica em direção às fontes inconscientes, não mais por meio de tradução simultânea, mas de construção de pontes ou mediações necessárias. E "é esta operação simbólica, este trabalho de escavação arqueológica seguido de reconstrução histórica, que produz resultados terapêuticos duradouros", completa (2001, p. 26).

A este ponto de sua discussão, o autor se pergunta: "que nome dar a este caminho que vai da representação à profundidade do inconsciente, ocupado em grande medida pela análise da zona intermediária, zona que corresponde à profundidade da superfície da consciência?" (2001, p. 26). Não lhe pareceu adequado chamar de inconsciente, na medida em que tal termo já tinha uma acepção bastante definida - o inconsciente / das Unbewusste -, que designa uma espécie de unidade final de todos esses inconscientes. O autor cogitou chamar de inconscientes relativos, o que ainda faz, às vezes, embora não completamente satisfeito, visto que muitos desses inconscientes não são pessoais, mas sociais - em vez de uma história pessoal ou de mito neurótico, está na sua origem a cultura. Assim, escolheu um termo mais neutro, campo, para denominar aquilo que a análise revela, definindo-o como:

... o lugar das regras que determinam as relações que concretamente vivemos; é o lado oculto, produtor. Engloba algo do inconsciente tradicional - lógica dos processos primários e representação defensiva -, junto com a composição da zona intermediária que organiza nossas ideias (2001, p. 26).

Parafraseando Freud, diria que para Herrmann o estudo dos campos, com suas zonas intermediárias, é a via régia para o inconsciente. Através de meticuloso trabalho de acompanhar os meandros das zonas intermediárias, o inconsciente poderá ser enriquecido com novas figuras, mecanismos e operações. Diz então o autor:

Se paramos de psicologizar o inconsciente, se largamos a mania de pressupor o instinto de morte como um esqueleto no porão de cada paciente e de ver complexo de Édipo a torto e a direito, se os conceitos metapsicológicos voltam ao devido lugar de abstração onde se originaram, nosso trabalho fica menos repetitivo, e as análises progridem melhor . [pois] no fundo, no fundo todos os homens são iguais; por isso o que interessa é a superfície (2001, p. 27).

A consideração dessas ideias propostas por Herrmann tem implicações importantes para o trabalho clínico. A mais importante, me parece, é ensinar ao analista que seu trabalho não é a aplicação de teoria, mas a criação de teoria a partir da escuta da clínica. O trabalho do analista é colocar em ação o método interpretativo de maneira a deixar surgir, pelo trabalho de ruptura de campo, as regras que determinam um dado campo, ou seja, o inconsciente relativo de uma dada relação humana.

 

Implicações para a clínica psicanalítica

Penso em um pequeno paciente de apenas quatro anos de idade, nascido com uma grave patologia cardíaca; esta exigia uma delicada cirurgia que deveria ser feita em duas etapas - a primeira, de emergência, logo nos primeiros dias de vida; a outra, por volta dos dezoito meses. Antes da cirurgia, meu pequeno paciente vivia na iminência de morrer a cada suspiro ou esforço.

Em um primeiro encontro, entre gabarola e sedutor, ele me conta: "Leda, eu vim com meu caminhão, grandão, que deixei parado lá na esquina. Quer ir ver?"

Em nossos encontros, reservava sempre os objetos grandes para si e os pequenos para mim, dizendo: "Leda, fique com esta tesoura pequena, porque senão você pode se cortar. Esta (a grande) é minha!" Da mesma forma, dividia os outros objetos da sala: os grandes e perigosos para si, e os pequenos e inofensivos para mim.

Era mandão, exigente e muito vivaz. Com o dinheiro do Banco imobiliário agia da mesma forma. Guardava o maço de notas no bolso e me entregava algumas para as compras necessárias. Ele propunha brincadeiras sempre dentro deste espírito: "Leda, isto é perigoso para você, deixa que eu faça".

Quando brincávamos de caminhão (utilizando cadeira e mesa da sala de ponta cabeça), era ele quem dirigia, e eu tinha que ir a seu lado, quieta, sem mexer na chave ou na mudança do caminhão. E ele, um toquinho de gente, um homenzinho, cuidava para que tudo saísse bem. Essas brincadeiras, porém, ocorriam entre outras extremamente desorganizadas, em que falava coisas aparentemente sem nexo, cortava muito papel e mudava constantemente de uma atividade para outra, em uma rapidez espantosa.

Certo dia, chega agitado, como de costume, e me conta: "Tinha uma luz forte... Meu avô foi ao médico que falava uma língua difícil, estrangeira... Os médicos estavam perto da luz, tesoura, chave... ". Fala ainda outras coisas, um tanto confusas, que não recordo, e em seguida, deita-se no chão, abre sua camisa e me mostra uma cicatriz que lhe atravessa o tronco.

Penso que este pequeno fragmento da análise de meu paciente pode ilustrar alguma coisa do que vinha falando. Nas sessões com ele, enquanto brincávamos, à espera de que algo surgisse para ser levado em consideração, por meio de pequenos toques, de uma sinalização ou outra, de uma pergunta aqui, outra acolá, íamos construindo nosso espaço terapêutico. Foi importante abster-me de interpretações dogmáticas, aquelas consideradas pela Teoria dos Campos como mera aplicação da teoria ao material apresentado pelo paciente. Ao aplicar uma teoria já produzida ao material clínico, corre-se o risco de obstruir o surgimento daquilo que é singular e único para aquele paciente. ("No fundo, no fundo, todos os homens são iguais, por isso o que interessa é a superfície", nos lembra Herrmann.) Ou então, como ainda nos diz este autor:

... Se confinamos o paciente em interpretações fechadas, insistindo em que cada momento emocional tem uma tradução completa e causas típicas conhecidas - inveja, ódio ao conhecimento, castração -, estaremos remetendo a lógica das emoções a uma origem hipotética e inalcançá-vel, para lá da história pessoal, para lá da especificidade desse sentido de vida humana que nos defronta, desprezado em prol do que é supostamente comum a todos os homens. Então a história cala-se, não encontra porta de entrada (Herrmann, 1991b, p. 150).

Meu pequeno paciente, da repetição ritualizada, da celebração sintomática na qual ele era importante e grande, também aquele que manda e desmanda, enquanto me reserva o lugar de pequena, incapaz e submissa, vai revelando os nós traumáticos que paralisam o desejo. Era ele que precisava se ocupar do perigoso nas brincadeiras propostas, necessitando mostrar sua capacidade de ser protetor. No entanto, em suas brincadeiras desorganizadas, mostrava-se o sentido de suas dúvidas quanto a tal capacidade. Tendo me abstido de procurar no fundo de meu pequeno paciente o Édipo ou a castração, permiti-lhe que essas autorrepresentações conflitantes aparecessem e, pouco a pouco, fossem sendo tencionadas. Foi na zona intermediária, e não na revelação das profundidades do inconsciente, que se pôde romper o campo do temor "recolhido" do risco de morte enfrentado pelo paciente desde seu nascimento. Agitado, referindo uma luz intensa e um médico falando uma língua estrangeira, ele pôde representar-se para mim, dramaticamente, como sobrevivente daquela morte que continuava lhe ameaçando e lhe deixara uma cicatriz enorme.

Como ensina Herrmann (1991),

... recordar significa retornar ao coração, no sentido do Campo Psicanalítico, dirigir-se aos nós emocionais relevantes da própria história. Jogando com esses elementos relevantes, que, do ponto de vista da cura, valem pela totalidade de sua presença histórica, o analisando primeiro penetra-lhes o coração, recordando, para em seguida experimentar várias opções combinatórias de seus significados. Nessas combinações, entra repetidamente em crise a celebração do trauma, realizam-se experiências de histórias alternativas que o acercam de uma história total. Essa a diferença essencial entre a celebração sintomática e a comemoração psicanalítica (Herrmann, 1991a, p. 298).

Da celebração sintomática, meu paciente passa à comemoração psicanalítica. Retorna duplamente ao coração - ao coração ferido por diversas intervenções cirúrgicas e, metaforicamente, ao coração ferido por ter toda sua capacidade para viver colocada em xeque.

 

Referências

Herrmann, F. (1991a). Andaimes do real: o método da psicanálise. São Paulo: Brasiliense.         [ Links ]

Herrmann, F. (1991b). Clínica psicanalítica: a arte da interpretação. São Paulo: Brasiliense.         [ Links ]

Herrmann, F. (2001). Introdução à Teoria dos Campos. São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Herrmann, L. (2007). Andaimes do real: a construção de um pensamento. São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Sister, B. M. & Taffarel, M. (1996). Isaías Melsohn: a psicanálise e a vida. São Paulo: Escuta.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Leda Maria Codeço Barone
Rua Pedro Noel, 48
04703-030 São Paulo, SP
Tel.: (11) 5533-6950
ledabarone@uol.com.br

Recebido em 25.6.2012
Aceito em 2.8.2013

 

 

1 Trabalho apresentado em congresso da Federação Psicanalítica da América Latina (fepal), na Colômbia, em setembro de 2010.

Creative Commons License