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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.48 no.1 São Paulo Jan./Apr. 2014

 

INTERCÂMBIO

 

Momentos de graça: presença e elaboração do "impassado"1

 

Moments of grace: presence and elaboration of the "unpast"

 

Momentos de gracia: presencia y elaboración del "impasado"

 

 

Dominique ScarfoneI; Tradução Claudia Berliner

IProfessor titular do Departamento de Psicologia da Universidade de Montreal e analista didata da Sociedade e do Instituto Canadense de Psicanálise (SCP)

Correspondência

 

 


RESUMO

A partir do trabalho de Michel de M'Uzan sobre a criação literária e, em particular, da noção de "comoção criativa" que ele introduziu nos anos de 1970, o autor examina a dimensão traumática dessa "comoção". Propõe que esta pertence a uma temporalidade específica, que denomina de "impassado", ou "tempo atual", e que seria característica da emergência da "coisa inconsciente".

Palavras-chave: temporalidade; inconsciente; criação; trauma; Michel de M'Uzan.


ABSTRACT

Taking as a starting point the work of Michel de M'Uzan on literary creation and, particularly, on the concept of "creative commotion" which he introduced in the 1970s, the author examines the traumatic dimension of this "commotion". He proposes that it belongs to a specific temporality, which he calls "unpast", or "present time", and that he sees it as characteristic of the emergence of the "unconscious thing".

Keywords: temporality; unconscious; creation; trauma; Michel de M'Uzan.


RESUMEN

A partir del trabajo de Michel de M'Uzan sobre la creación literaria y, en particular, de la noción de "conmoción creativa" que introdujo en los años 1970, el autor examina la dimensión traumática de esa "conmoción". Propone que ella pertenece a una temporalidad específica, que denomina "impasado", o "tiempo actual", y que sería característica de la emergencia de la "cosa inconsciente".

Palabras clave: temporalidad; inconsciente; creación; trauma; Michel de M'Uzan.


 

 

A Biblioteca de Babel que Borges nos descreveu em suas Ficciones (1941/1996) tem dimensões infinitas e contém todas as obras que, em nossa linguagem finita, qualificamos de passadas, presentes ou porvir. Mas essas denominações são falaciosas, pois o infinito não é nem presente, nem passado, nem por vir. Ele é atual, isto é, em ato, e temos de conceber o ato como o que surge, rasgando os circuitos e traçados espaçotemporais existentes, obrigando-os, por conseguinte, a se reorganizar, a se redramatizar e a se recolocar em cena. O ato é terebrante, contrário à representação; mas, por isso mesmo, ele induz e torna necessário o ato... de representar, o que permite, a posteriori, atribuir-lhe um sentido, em sua dupla significação de direção e de significação (assim é a autorreferencialidade dos termos quando se trata dessas questões).

É por causa desse trabalho de atribuição que Psiquê existe, pois sem esse trabalho, um ato é, propriamente falando, in-sensato. É isso que Shakespeare sem dúvida quer dizer quando fala da História humana como uma história "contada por um idiota, cheia de som e fúria, sem sentido algum". De fato, fora da escatologia religiosa ou hegeliana, ninguém conseguiría atribuir um sentido à História. Pode-se apenas encontrar um sentido ou vários para acontecimentos que ocorrem dentro da História. Ora, o mesmo se passa em uma vida individual. Não há sentido atribuível α uma vida singular, mas essa vida está tecida de sentidos. No entanto, se a trama desse tecido se rasga, segue-se um grande sofrimento, às vezes surdo, às vezes ruidoso. O sujeito assim afetado perdeu o sentido dramático de sua existência, a historicidade de seu ser. Fica, estritamente falando, desorientado. Nosso trabalho de analistas consiste, por um lado, em ajudar esse sujeito a reescrever seu drama, a recompor sua história, a elaborar, como escreve Michel de M'Uzan, a categoria do passado. Contudo, é muito frequente acontecer que, para isso, primeiro, ou simultaneamente, seja preciso ajudá-lo a restabelecer a própria capacidade de dramatização, isto é, a função autopoiética de construção e reconstrução da cena na qual lhe é possível (se) representar.

Utilizo o termo "autopoiética" intencionalmente; ele foi empregado em biologia teórica por Francisco Varela e Humberto Maturana para designar a característica essencial do ser vivo: sua capacidade de autoconstrução e de autorreparação. A poiesis em questão é exatamente o que parece ser, ou seja, uma poesia, uma criação. A perda da autopoiese em biologia significa, no limite, a morte. Isso é igualmente verdadeiro para a psique, se esta não encontra os meios para se renovar, para se reconstituir, cada vez que algo atenta contra sua integridade. O paradoxo é que tanto a matéria viva quanto a psique precisam ser atingidas em sua integridade para se manterem vivas. Tendências à degradação e, finalmente, à imobilização do movimento vital estão a todo momento em atividade e acabariam paralisando o vivo, seja ele psíquico ou somático, se, conforme a expressão de Freud, não fossem introduzidas novas "diferenças vitais" que perturbam a homeostase interna. Introdução que é, por conseguinte, traumática a minima, mas ainda assim traumática, isto é, terebrante, rasgando o statu quo e forçando uma reconfiguração. Esta nunca devolve àquele statu quo ante, mas traz modificações, pequenas ou grandes, que se inscrevem como elementos ou marcas de uma história que pode ser escrita, de uma direção tomada, de um sentido esboçado.

Michel de M'Uzan nos apresentou eloquentemente essas questões - ele que indicou em que medida uma vacilação identitária é indispensável para a mudança na análise. A vacilação é o que opera um questionamento, mesmo que parcial, da autoconcepção do sujeito, da conformação psíquica adquirida ao longo de uma vida, mas que se revelou insuficiente para que o sujeito pudesse responder às questões que a existência colocou. Essa vacilação geralmente não se dá espontaneamente e, quando se dá, a coisa é vivida com muita angústia. O trabalho analítico, por sua vez, pode levar a uma perturbação análoga, parcial ao menos, da economia psicossomática do sujeito, mas o enquadre protetor que ele oferece para essa perturbação permite a travessia da crise, a partir da qual pode voltar a se pôr em andamento o que chamei há pouco de autopoiese, a autoconstrução que se torna a um só tempo possível e necessária pela introdução de novas "diferenças vitais".

Encontramos o melhor exemplo da introdução de novas diferenças durante o processo de constituição da estrutura psicossomática, na sedução inevitável que vem definir no sujeito as zonas erógenas, de onde as pulsões sexuais parecerão emergir como que naturalmente. Michel de M'Uzan nos ensinou a ver nisso, depois do desatrelamento identitário [dégagement identitaire], o segundo grande organizador da vida psíquica, a partir do qual se elabora a angústia de castração e se inscreve, no melhor dos casos, o recalcamento estruturante sob a égide do princípio do prazer. Daí em diante, torna-se possível uma elaboração psíquica em resposta às questões que a existência coloca - elaboração que é essencialmente um trabalho de representação, de dramatização, por meio do qual uma vida humana se autossimboliza, se destaca da mera realização de um destino geneticamente programado, para se abrir para um devir imprevisível, porque feito de cultura e não mais apenas da natureza. Assim, as ciências da natureza permitem afirmar que o sol se apagará e a vida se extinguirá na Terra em alguns bilhões de anos, mas ninguém pode predizer, ainda que fosse com um milésimo dessa precisão, o que a sociedade e a cultura humanas terão produzido daqui a um século. A sedução, tal como teorizada por Jean Laplanche, e com a qual concorda em boa parte Michel de M'Uzan, também opera no seio da situação analítica para ali provocar o trabalho de perturbação seguido de reestruturação. Michel de M'Uzan chegou inclusive a escrever que a sessão analítica pode ser vista como uma zona erógena. Erógena, ou seja, literalmente produtora de libido nova, dado o efeito inevitavelmente sedutor da fala, do silêncio, da escuta do analista. Entende-se, portanto, a contribuição paradoxal do analista, que, por um lado, provê um espaço seguro para pronunciar uma fala inaudível em outro lugar e, por outro, provoca uma desestabilização da economia libidinal do sujeito que ele escuta.

De certo modo, pode-se dizer que todo analisante é, total ou parcialmente, um personagem à procura de um autor. Assim como os seis seres aflitos que, na famosa peça de Pirandello (1921/1977), apresentam-se um dia em um teatro e pedem para ser postos em cena, dirigimo-nos a um analista quando, costumamos dizer, algo de nossa história "não anda bem". Ora, o que não anda bem é a roda de uma história que ficou como que emperrada, mesmo que o sujeito que está, assim, em maus lençóis não pense em termos de história ou de dramatização. O problema que se coloca é como passar da coisa inconsciente - opaca e refratária - para sua forma psíquica propriamente dita, ou seja, para sua representação. É isso, aliás, na peça de Pirandello, o que os profissionais do teatro não entendem diante do conflito que causa estragos no seio da família, em torno da vontade que alguns deles têm de "encenar" seu drama. A Mãe, por exemplo, opõe-se a isso energicamente. O diretor do teatro não entende por que ela se recusa à encenação daquilo: "Mas, enfim, Senhora! Se isso já ocorreu!", exclama ele, ao que a Mãe responde: "Não, isso ocorre agora e sempre. Meu suplício não terminou, Senhor ! Eu continuo viva e presente, a cada instante desse meu suplício que se renova, sempre vivo e presente"2.

O problema está, portanto, colocado em termos que não poderiam ser mais precisos, metapsicologicamente falando. O que ainda não conseguiu se fazer representar não cessa de ocorrer, perpetuando um sofrimento que, embora nem sempre tenha a intensidade do suplício, pode contudo paralisar uma psique, desperdiçar o tempo de uma vida. Aliás, é interessante que o próprio Pirandello, em seu prefácio à peça, destaque precisamente esse diálogo, indicando que a Mãe é a única nessa peça que realmente não sabe que é um personagem. O que ela grita para o diretor, escreve Pirandello,

... ela o sente, sem ter consciência disso e, portanto, como uma coisa inexplicável: mas ela o sente de forma tão terrível que nem pensa que possa ser uma coisa que ela deveria explicar para si própria ou que deveria explicar para os outros (1925/1977a, p. 23)3.

Vemos como, em uma linguagem que lhe é própria, Pirandello se afina muito bem com nossas formulações metapsicológicas, desde que se substitua, é claro, a Mãe por uma imago inconsciente, atual, que a psique não consegue "explicar para si", ou seja, transpor para o psíquico por meio de um ato de representação. Assim, na peça, a reprodução da cena que a mãe quer evitar não é, justamente, uma representação, nem no sentido teatral nem no sentido psicológico, mas uma presentação, uma repetição em ato ou, ainda, segundo a metapsicologia de Michel de M'Uzan, uma repetição do idêntico.

A partir de 1964, de M'Uzan voltou sua atenção para essas questões em seus "Aperçus sur le processus de création littéraire" (1977). Foi aí, aliás, que ele introduziu, que eu saiba pela primeira vez em um escrito psicanalítico, a noção de comoção [saisissement], que ele diz preferir à de inspiração. "O estado de comoção .. ", escreve ele, "leva a consciência a entrar em relação com algo essencial, embora inefável" (p. 6). Esclarece, em seguida, que "o instante de comoção [lhe] parece pertencer a uma experiência traumática" (p. 7). É porque "[a representação criativa] procura incessantemente apreender [saisir] um presente, cuja emergência se dá a todo instante e, por isso mesmo, constitui uma microexperiência traumática" (p. 8, itálicos do autor).

Comparemos esse "presente" e esse "a todo instante" com o "agora e sempre" clamado pela Mãe em Seis personagens à procura de um autor. Fica-se impressionado [saisi] - é o caso de dizer - pela estrutura temporal totalmente idêntica entre o que de M'Uzan descreve aqui e o que Pirandello faz essa Mãe dizer na cena evocada acima. Em ambos os casos, é uma descrição do atual, a respeito da qual de M'Uzan afirma que

... se faz por meio de uma recuperação ativa do passado, e realiza a passagem do descontínuo para o contínuo, cria literalmente a realidade, cuja opacidade, de outro modo, seria total, porque ela se reduziria a um conjunto incoerente de formas abstratas (p. 8).

Frases, a meu ver, de uma riqueza teórica inestimável quando chega o momento de compreender não só a criação literária ou artística, mas também o que se passa de fundamental em uma análise.

Começarei pela passagem do descontínuo para o contínuo, pois este me parece o aspecto mais empiricamente pensável do que de M'Uzan entende. O descontínuo, conjunto incoerente de formas abstratas, é, parece-me, o que a experiência do sonho ofereceria (e às vezes oferece efetivamente) se não interviesse a elaboração secundária, que, bem ou mal, dá uma coerência mínima ao conjunto heteróclito de imagens deslocadas, condensadas e transformadas no seu contrário que o trabalho primário do sonho tinha reunido. Mas sabemos que, mesmo após o trabalho de elaboração secundária, o sonho muitas vezes se apresenta com uma aura particular, uma atmosfera por vezes crepuscular. É fácil conceber então, e a experiência clínica o confirma, que na vizinhança do que busca se atualizar na comoção [saisissement], sem qualquer consideração pela continuidade de nossos estados de consciência ordinários, possa produzir-se essa experiência de inquietante estranheza que, segundo de M'Uzan, participa bastante da sensação de que uma criação está em via de se realizar. Estranheza, na medida em que a nova realidade que dela resulta não pode ser uma simples recondução ao statu quo ante.

A emergência do atual, a comoção que este produz e a aura de inquietante estranheza que se segue: vê-se assim introduzida a diferença a respeito da qual dizíamos, acima, ser apta para relançar os processos autopoiéticos que distinguem o vivo. O atual, forma temporal estranha à cronologia, está, como seu nome indica, muito perto do ato e, desse modo, longe do pensar. Ato, isto é, irrupção da coisa inconsciente sem a mediação da encenação, da dramatização, da historização. Quando de M'Uzan escreve que o atual seria como um "conjunto incoerente de formas abstratas" se não interviesse o processo criativo, ele indica várias coisas: designa, em primeiro lugar, a essência traumática dessa irrupção, ainda que seja de intensidade mínima; em seguida, o inevitável sentimento de estranheza; mas também o que ele chama de "exigência formal", pois essas formas abstratas, mesmo que formem um conjunto incoerente, não deixarão total liberdade ao processo que conseguir reuni-las em uma obra autêntica. Portanto, a criação é igualmente nova em sua forma, e isso devido a suas raízes inconscientes - inconscientes e atuais -, que introduzem uma diferença em todos os planos. Esta será refratária a se deixar reduzir a uma cena familiar, desde que o autor da obra permaneça fiel a sua experiência da comoção.

Aqui, contudo, eu me permitiria formular uma nuança em relação ao que escreve Michel de M'Uzan no seu texto de 1964(/1977). Na citação que dele fiz, está dito que a descrição do atual - o que entendo como sendo sua representação - "é feita por meio de uma recuperação ativa do passado". Ora, dada a concepção do atual que eu proponho, não me parece totalmente correto falar de recuperação do passado, porque a propriedade do atual emergente é exatamente a de não pertencer à cronologia. Propus denominar de impassado [impassé] essa forma de tempo que deve ser ativamente recuperado para poder ser transferido, justamente, para a categoria do passado. Foi, aliás, de M'Uzan mesmo que indicou, já faz muito tempo, que um dos objetivos da análise consiste, precisamente, em elaborar essa categoria do passado. Sinal indiscutível de que, desse passado a elaborar, o inconsciente não faz parte. Freud dizia que o inconsciente é atemporal. Creio que isso é verdade se falamos do tempo medido, cronológico. Mas me parece mais correto considerar que, no tocante ao inconsciente, trata-se mais de um tempo congelado, de um impasse no escoamento dos processos psíquicos. Donde a denominação de impassado, que me parece mais apta para designar sua natureza tanto de resistência quanto de fonte potencial de criação do novo. Pode-se, aliás, reconhecer nessa palavra "impassado" uma clara alusão ao que o próprio de M'Uzan retoma de Bataille. Em uma conversa com Robbe-Grillet, em que este se queixava de um bloqueio, Bataille teria exclamado (imagino que com entusiasmo): "Por fim o impasse!", ao que de M'Uzan acrescenta: "Pode-se quase dizer que a marca do verdadeiro escritor é a impossibilidade de escrever" (p. 4). Impossibilidade superada, embora jamais completamente; confrontação inevitável com o impassado como tempo enterrado no impasse, como essa temporalidade particular que resiste à sua transformação em tempo linear. O impassado é esse tempo cuja hora é sempre agora, tal como escrevem tanto de M'Uzan quanto Pirandello, como vimos.

A recuperação ativa do impassado, mediante a qual se realiza "a passagem do descontínuo para o contínuo", é uma transferência, uma transposição para o campo psíquico do que se apresenta como opacidade, como esse "algo de essencial e, no entanto, inefável" de que fala de M'Uzan. Na criação artística ou literária, isso se dá, segundo Pirandello, por meio de canais que continuam sendo misteriosos: "Que autor poderá alguma vez dizer", escreve ele, "como e por que um personagem nasceu na sua imaginação?". Imediatamente depois, porém, seu sentimento artístico o dirige para o papel da sedução, forma maior da introdução da diferença:

O mistério da criação artística é o próprio mistério do nascimento natural. Uma mulher, porque ama, pode desejar tornar-se mãe; mas só esse desejo, por mais intenso que seja, não basta. Um belo dia, ela se descobrirá mãe, sem saber exatamente quando isso ocorreu. Também um artista, por estar vivo, acolhe inúmeros germes de vida... (Pirandello, 1925/1977, p. 12).

Na análise, a recuperação do impassado e sua elaboração em passado efetivo se dão graças às diversas modalidades da transferência que se desenvolve no decorrer das sessões. Em ambos os casos, essa transmutação se dá no "instante de comoção", que eu também poderia chamar, sem nenhuma conotação religiosa, de "momento de graça". Momento de graça porque único e impossível de reproduzir, no qual o sujeito é como que transido, atravessado, e se descobre não o autor intencional, mas o instrumento através do qual algo outro opera. Pirandello prossegue: "... e não sabe dizer como e por que, num certo momento, um desses germes vitais se introduz na sua imaginação para tornar-se, ele também, uma criatura viva num plano superior à agitada existência cotidiana (p. 12).

A não reprodutibilidade desses momentos é algo bem conhecido. Assim, em uma entrevista dada ao jornal Le Monde alguns anos atrás, o pianista de jazz Keith Jarret relatava a experiência vivida em um concerto gravado ao vivo, durante o qual ele e seus dois cúmplices, Jack de Johnette e Gary Peacock, experimentaram, unanimemente, um forte sentimento de euforia criativa, de grande realização musical. No dia seguinte, a escuta da gravação do concerto lhes reservou uma grande decepção: não restava nada da magia da véspera. Os analistas com frequência vivem uma experiência análoga quando tentam relatar certas sessões particularmente ricas, em que os dois membros do par analítico sentiram que algo importante estava ocorrendo. É comum a experiência de a narração a um terceiro se revelar, em geral, se não sempre, incapaz de traduzir o que quer que seja do clima particular dessas sessões, e até o conteúdo delas pode parecer bastante banal. Assim, por não ser reprodutível, a sessão de análise não é objeto de ciência experimental. Mas longe de ser um defeito, isso, ao contrário, dá à nossa prática características distintivas e uma qualidade rara em nossos dias: a de oferecer um lugar único e apropriado para favorecer o devir individual e a mudança, respeitando a singularidade do sujeito. O método das ciências experimentais não pode, por definição, oferecer isso, porque a reprodutibilidade da experiência é sua pedra de toque.

A esse respeito, Michel de M'Uzan deu uma contribuição essencial ao descrever a quimera que se cria no curso de uma análise, ser heterogêneo para o qual contribuem os inconscientes do analisante e do analista, e que se constitui em entidade terceira em relação àqueles dois. Essa criação involuntária é efeito não de uma comoção [saisissement] criativa, mas, ainda assim, de uma apropriação [saisie], de uma "captura" nas redes da transferência que se tece entre analisante e analista. Destaco essa outra espécie de criação porque acredito que, na análise, é por meio de tal junção operada inconscientemente pelos dois protagonistas que podem se produzir os "momentos de graça" evocados há pouco. Esse modo de conceber o processo analítico supõe, contudo, que algumas condições estejam satisfeitas.

Tratando-se do surgimento inopinado do atual em sessão, logo, de uma temporalidade "outra", de um impassado, cabe indagar-se que modalidade de acolhimento se deve oferecer, que rede é preciso poder estender a fim de que o impassado venha prender-se em suas malhas. Vimos que, em Seis personagens à procura de um autor, aqueles seres que viviam "atualmente" seu suplício precisavam que lhes proporcionassem um palco no qual eles iriam não recitar, mas viver seu drama, vivê-lo pela primeira vez verdadeiramente, ou seja, representá-lo, enfrentar, assim, sua verdade e oferecê-la ao "olhar do pensamento"4. Mas esse enquadre não é somente espacial; ele pede um tempo de disponibilidade, e essa disponibilidade exige que se interrompa a representação em curso nos atores e nas testemunhas do drama. É notável que, na peça de Pirandello, seja literalmente preciso interromper o ensaio do vaudeville a que se entregava a trupe no momento da chegada dos seis personagens para possibilitar que estes entrassem em representação. O surgimento do que não cessa de ter lugar no mais íntimo do ser exige, por conseguinte, um enquadre espaçotemporal confiável, durante o qual é possível, para os protagonistas, deixar atenuar-se, se possível até o desaparecimento, a atividade espontânea do eu entregue a uma representação do familiar. Pode-se reconhecer nisso uma descrição do método freudiano das associações livres e da atenção equiflutuante, em que ambos colocam em suspenso o curso dirigido das representações já disponíveis. Analista e analisante poderão, por assim dizer, soltar as molas da encenação cotidiana e arrumar uma abertura para uma nova atividade de representação.

Outra condição propícia para a comoção criativa em análise parece-me decorrer em linha direta da própria natureza dessa comoção [saisissement]. Tratando-se de ser surpreendido [saisi], e até de se deixar surpreender [saisir], não seria o caso de o próprio analista "captar [saisir]" alegremente, isto é, compreender, pegar, dominar intelectualmente, o que o analisante conta. Ao contrário, trata-se de oferecer uma disponibilidade, uma abertura para a passagem da coisa "inefável" sobre a qual se acabará dizendo alguma coisa, mas o mínimo possível segundo os cânones de nossa teoria ou de nosso saber constituído. Portanto, é preciso sobretudo escutar, o que contraponho a compreender, na medida em que a com-preensão pertence não à comoção [saisissement], mas à apropriação [saisie], ao domínio.

No que concerne à intervenção do analista, Michel de M'Uzan recomenda a formulação de interpretações não saturadas, incompletas, ambíguas até. Nos exemplos que ele às vezes deu, nota-se bem que a forma da interpretação que ele preconiza não é fruto de uma deliberação, mas se impõe ao analista, ocorre-lhe no meio de uma escuta não dirigida, atravessa-o e se exprime através dele, por vezes para seu próprio espanto. Esta é uma ética do analista, que se traduz por essa disposição para escutar sem pressa de compreender, e para interpretar sem fazer exegese. Ética da disponibilidade, do ser passível, do se deixar afetar, mas ética que, se pensarmos bem, é herdeira direta do método freudiano de análise dos sonhos. Como se sabe, depois de Freud, não se olha um sonho, não se compreende um sonho à maneira de um desenho; ele é escutado e essa escuta o desmonta, o desmembra. Cada elemento disjunto é o esboço de um percurso independente ao longo de uma série associativa que lhe é própria, até o momento em que, no mapa mental desse movimento dispersivo, sobrevém um cruzamento entre duas ou mais cadeias associativas, traçando assim uma figura imprevista. Esse método pode ser superposto àquele que rege a escuta analítica como um todo, e a formulação de uma interpretação seria da ordem de um cruzamento inesperado que dá lugar a uma forma que, secundarizada demais, correria o risco de ocultar a multivocidade da coisa inconsciente. As formulações pelas quais o analista se deixa atravessar mantêm-se, portanto, na medida do possível, muito perto do que a atualidade da sessão faz aflorar. O que só é possível desde que o analista se desapegue [dessaisisse], em sessão, o quanto possa, desse personagem familiar demais, que se toma por seu próprio autor e que não é ninguém mais que seu Eu.

 

Referências

Borges, J. L. (1996). La biblioteca de Babel. In J. L. Borges, Ficciones (pp. 86-99). Madrid: Alianza. (Trabalho original publicado em 1941).         [ Links ]

Guenancia, P. (2009). Le regard de la pensé: philosophie de la représentation. Paris: PUF.         [ Links ]

M'Uzan, M. de (1977). Aperçus sur le processus de création littéraire. In M. de M'Uzan, De l'art à la mort (pp. 3-27). Paris: Gallimard. (Trabalho original publicado em 1964).         [ Links ]

Pirandello, L. (1977). Six personnages en quête d'auteur (M. Arnaud & A. Bouissy, trads.). Paris: Gallimard. (Trabalho original publicado em 1921).         [ Links ]

Pirandello, L. (1977). Préface. In L. Pirandello, Six personnages en quête d'auteur (M. Arnaud & A. Bouissy, trads., pp. 11-28). Paris: Gallimard. (Trabalho original publicado em 1925).         [ Links ]

Scarfone, D. (2012). Moments de grâce: présence et élaboration de "l'impassé". In M. Gagnebin & J. Milly (Dirs.), Michel de M'Uzan ou le saisissement créateur (pp. 31-42). Paris: Champ Vallon.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Dominique Scarfone
825, Av. Dunlop
Montreal (qc), Canada
H2V 2W6
dominique.scarfone@umontreal.ca

Recebido em 11.12.2013
Aceito em 31.1.2014

 

 

1 Texto publicado em Michel de M'Uzan ou le saisissement créateur (Scarfone, 2012).
2 NT: No original, o fragmento da peça foi traduzido para o francês pelo próprio autor.
3 Notemos que há uma diferença de tradução aqui: a Mãe, em duas versões italianas que pude consultar, grita: "il mio strazio non è finito", mas o tradutor francês parece ter lido ". non è finto" e, portanto, traduziu: "Meu suplício não é uma ficção" (1921/1977, p. 114.) O que é notável é que, em ambos os casos, isso se sustenta metapsicologicamente, porque se o suplício pudesse ser transmutado em ficção, ou seja, dramatizado, ele também poderia se tornar coisa do passado. Em outras palavras, o atual é real.
4 Conforme o título da obra de Pierre Guenancia (2009).

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