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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.48 no.1 São Paulo jan./abr. 2014

 

RESENHAS

 

Il circuito della sofferenza Uno studio evoluzionistico sulla follia1

 

 

Marisa Pelella Mélega

Médica e doutora em língua e literatura italiana pela Universidade de São Paulo (USP); psicanalista e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)

Correspondência

 

 

Autor: Volfango Lusetti
Editora: Armando Editore, Roma, 2011, 592 pp.
Resenhado por: Marisa Pelella Mélega
Tradução livre de: Marisa Pelella Mélega

 

 

Volfango Lusetti é médico psiquiatra italiano, com formação psicanalítica na Learning Associazione Italiana di Analisi Mentale (LAIAM), fundada por Ignázio Majore, e tornou-se analista didata da Sociedade Italiana de Psicanálise (SPI) nos anos 1960, da qual se demitiu por divergências teóricas e pessoais. Desde 2004 é catedrático do departamento psiquiátrico do hospital de Tivoli. Em 2008, foi nomeado "Acadêmico Lancisiano". Lusetti já publicou vários artigos em revistas especializadas. Entre suas obras estão Correspondência negada (2008), escrita com outros colegas e dedicada a Basaglia - trata-se de uma coletânea de cartas de pacientes internados no hospital psiquiátrico de Volterra (Itália) endereçadas às suas famílias; Funzione del padre e psicosi (2008); Psicopatologia antropológica (2008); Il cannibalismo e la nascita della coscienza (2008) e Lapredazione nellafiaba (2010)2.

Lusetti pode ser considerado um autor audacioso, pois, com suas hipóteses, coloca em crise todo aparato teórico da psiquiatria, especialidade que professa desde 1975. Ele relata certa descrença quanto à possibilidade de a psiquiatria poder chegar sozinha a "desvendar" o mistério das doenças mentais. Para tanto, lembra-nos que uma abordagem do tipo evolucionista das doenças mentais foi imaginada como possível por várias vezes, mas sempre abandonada. Kraepelin e Freud são os exemplos ilustres.

Em O circuito do sofrimento (2011), ele propõe uma série de hipóteses sobre a origem do homem, da mente, da linguagem e da consciência, que prescindem completamente da hipótese médica. A psicanálise tentou ir em direção aos conteúdos e às finalidades do comportamento "psicopatológico", atribuindo-lhe a ação de forças psíquicas ancestrais em sua origem; adotando, portanto, um ponto de vista antropológico. Esse caminho foi logo abandonado, em detrimento dos aspectos patológicos e ontogenéticos.

Se nos ocuparmos dos conteúdos dos pensamentos dos "doentes mentais", veremos que eles são caracterizados por um componente persecutório em todos os quadros mentais. Esse componente emerge inclusive nos distúrbios de matriz orgânica - demências, epilepsias, alguns tipos de autismos, entre outros. Enfim, a ideação predatório-persecutório é um modelo comportamental de base, tanto na patologia quanto na normalidade (por exemplo, em situação de estresse).

O livro de Lusetti caracteriza-se como ambicioso porque se propõe não somente desobstruir uma estagnação teórica que, segundo ele, existe tanto na psicopatologia quanto na concepção psicodinâmica da mente fundada por Sigmund Freud, mas se propõe a superar tal estagnação por meio de uma hipótese omnicompreensiva da mente humana. Esta passa a ser vista como algo que se desenvolveu unitariamente, seja em seus aspectos patológicos, seja em seu funcionamento normal.

Em seu livro anterior - Il cannibalismo e la nascita della coscienza -, o autor afirma que há duas questões não resolvidas pela psicopatologia e pela psicanálise. A saber:

1) A psicopatologia, concentrando-se nos "distúrbios formais do pensamento e da percepção", teria negligenciado e desvalorizado os misteriosos e inquietantes conteúdos persecutórios próprios do pensamento patológico por serem não atendíveis. Pois bem, neste livro, Lusetti sustenta que as alterações persecutórias do "conteúdo do pensamento" não são, de modo algum, irrelevantes, nem são um acidental produto da doença, como entendido classicamente pela psicopatologia de qualquer orientação. De fato, tais alterações existem, ainda que de forma atenuada, quase na totalidade dos sujeitos "normais", e traços mais imponentes estão presentes nos contos de fada e na narrativa dos mitos e das religiões universais. Nos "doentes mentais", os conteúdos persecutórios se entrelaçam tão estreitamente com as alterações "formais" que nos conduzem a fazer hipóteses sobre uma origem e uma explicação comum a estas.

2) A Psicanálise - que partiu da genial intuição de Freud, de que a mente humana "normal" e "patológica" seria movida dinamicamente dos derivados psíquicos de forças biológicas de base -parece-nos não ter desenvolvido adequadamente essa intuição; dela permanecem conceitos como Eros e Tanatos, "libido" e recalcamento, que, em sua imprecisão biológica, não deixam espaço a nenhuma verificação ou, como diria Popper, a nenhuma "falsificação". Por exemplo, o instinto de morte, entendido como tendências à entropia, ao caos e ao inorgânico, não encontra correspondência biológica alguma na agressividade e na predação que, na verdade, defendem a vida e até mesmo ajudam-na fortemente a selecioná-la e a diferenciá-la.

Do mesmo modo, a sexualidade, que para Freud estava na base da civilização e da evolução da mente humana pelo mecanismo da repressão/sublimação, não é a mais antiga nem a principal força biológica que defende a vida; esta é precedida, nesse papel, pela reprodução não sexuada (mitose), ou pela predação-agressividade (apoptose). Portanto, a sexualidade mal se presta a fazer as funções do hipotético "motor primário", entendido em sentido dinâmico, do funcionamento mental do homem.

A proposta do autor em seu precedente ensaio era identificar a hipotética força biológica "primária" do funcionamento mental e da evolução humana postulada por Freud não na sexualidade (ou em sua sublimação), mas sim na sociabilidade, ou, mais precisamente, na ação propulsora que é exercitada pela forma mais extrema de agressividade predatória que a vida conhece: o canibalismo.

Essa hipótese, todavia, pela sua audácia, era alvo de muitas críticas. Talvez a primeira e mais consistente seja a seguinte: por que será que os progenitores do homem, e somente estes, teriam desenvolvido uma insólita e extraordinária atitude canibalística e saído dela ilesos, já que tais comportamentos, na quase totalidade das outras espécies (particularmente os mamíferos), são rigidamente proscritos ou severamente restritos a casos esporádicos, com a finalidade de se defender da extinção?

Neste seu novo livro, Lusetti se propõe dar uma resposta a essa objeção, e o faz reavaliando o rol da sexualidade, mas em sentido diverso do freudiano: talvez nossos progenitores não tenham sido mais canibalísticos do que os de outras espécies, mas a primeira compensação anticanibalística que adotaram, a sexual (lembrar que a sexualidade humana perene e a abolição do estro feminino possibilitaram compensar a pressão canibalesca com ofertas sexuais), se tornou veículo do canibalismo; em suma, a plasticidade da sexualidade absorveu e veiculou aquele canibalismo (sem aboli-lo, e, sim, atenuando-o) que tinha a tarefa de se opor, tornando-o compatível com a sobrevivência da espécie e "desarmazenando-o" (libertando-o), fazendo-o sair das rígidas barreiras biológicas a que as outras espécies o haviam submetido. No entanto, isso permitiu à nossa espécie, única entre todas, também desfrutar do formidável empurrão seletivo (no sentido evolucionista darwiniano) que o canibalismo potencialmente sustentava, já que tendia a constituir, para uma particular espécie, um ambiente fortemente seletivo representado pela própria espécie; portanto, tornava possível implementar o mecanismo evolutivo em si.

O feliz percurso evolutivo do homem tornou-se possível, segundo Lusetti, pelo fato de que a sexualidade, que se baseia na meiose (uma transmissão do patrimônio genético, como foi notado pelo psicanalista Ignazio Majore, consiste em uma divisão ao meio e em mesclar um com o outro, portanto um encontro com a morte), representa uma ligação entre forças biológicas mais antigas e opostas, que, cada uma a seu modo, defende e difunde a vida: a apoptose, ou morte celular programada, a qual se assemelha no plano instintivo a uma forma de predação. A sexualidade se assemelha à mitose porque, em parte, conserva o patrimônio genético, e se baseia em soluções já consolidadas; mas também se assemelha à apoptose, porque inova e perturba os equilíbrios preexistentes. Pois bem, essa autêntica via entre a conservação e a inovação da vida, que é a sexualidade, por causa de sua forma humana perene, teria possibilitado ao homem, pela primeira vez, colocá-la no circuito com a finalidade de ser uma compensação anticanibalística.

Portanto, a mescla de instintos como a predação (que aponta para a inovação) e a sociabilidade (seu natural contrapeso que aponta para a conservação), ou seja, modelos de comportamentos que estiveram sempre separados, permite desfrutar a potencialidade vital de ambos e dissolvê-los, como rígidos instintos animais, até produzir, em seu lugar, códigos plásticos simbólicos e culturais que nos caracterizam.

Dito de outro modo, a sexualidade humana, em vez de sublimar-se, como queria Freud, teria sido "empurrada", pelo canibalismo, para hipertrofiar-se, produzindo, com isso, um efeito sublimador (e de desestruturação e fusão recíproca) sobre outros instintos - a predação e a sociabilidade -, implementando em particular a sociabilidade e transformando-a em uma comunicação social antipredatória "apaziguadora" e, ao mesmo tempo, infiltrada da própria predação.

De tal modo, no lugar do canibalismo se produziu primeiramente uma sexualidade predatória, cujos traços aparecem nas perversões sexuais, ou seja, uma forma de sexualidade que incorporou a predação canibalística para neutralizá-la, mas que acabou por veiculá-la e repropô-la.

Sucessivamente, ou talvez contemporaneamente, segundo Lusetti, produziu-se uma comunicação de tipo linguístico (a linguagem simbólica), também com a finalidade de apaziguamento, e anticanibalística. O pensamento delirante-alucinatório, segundo esse autor, é um derivado instintivo de ordem social que incorporou a predação canibalística com o objetivo de neutralizá-la, exatamente como a sexualidade fez nas perversões. Entretanto, diferentemente desta última, revelou-se muito mais capaz de difundi-la na esfera das relações sociais, porque mais adequada em torná-la reversível e comunicável e, portanto, social.

Para concluir, em sua obra O circuito do sofrimento, Volfango Lusetti tornou muito mais lógica e plausível sua hipótese canibalística acerca da origem da mente; contemporaneamente colocou, sob uma luz nova, o conceito freudiano de "sublimação", dando-lhe um fundamento biológico diverso daquele clássico e, talvez, mais consciente.

 

 

Correspondência:
Marisa Pelella Mélega
Rua Demóstenes, 627 / 11
04614-013 São Paulo, SP
Tel.: (11) 5092-3883
pmelega@uol.com.br

 

 

1 O circuito do sofrimento - Um estudo evolutivo acerca da loucura.
2 Função do pai e psicose; Psicopatologia antropológica; Canibalismo e o nascimento da consciência; A predação e o conto de fadas.

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