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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.48 no.2 São Paulo abr./jun. 2014

 

EDITORIAL

 

Editorial

 

 

Bernardo Tanis

Editor

 

 

Intervenções em psicanálise

Superado o luto, percebemos que a nossa elevada estima dos bens culturais não sofreu com a descoberta de sua precariedade. Reconstruiremos tudo o que a guerra destruiu, e talvez em terreno mais firme e de modo mais duradouro do que antes.
(Freud, "A transitoriedade", 1916)

A ética em psicanálise existe como elemento constitutivo do fazer do psicanalista, seja na experiência da sua própria análise, seja na clínica com seus analisandos, no compromisso com o desenvolvimento do campo do conhecimento no qual sua práxis incide ou nas instituições às quais o analista se vincula. Assim como o Drang, um dos quatro elementos assinalados por Freud como constitutivos da pulsão, que representa a exigência de trabalho imposta ao aparelho psíquico, a singular ética inerente ao método psicanalítico nos convoca permanentemente a um aprofundamento dos limites e possibilidades de nossa experiência, dos avanços e retrocessos a que estamos sujeitos.

Ao dedicar um número temático de nossa revista às Intervenções em psicanálise, reconhecemos as transformações presentes no campo subjetivo oriundas de mudanças significativas na nossa cultura; reconhecemos também o amadurecimento da clínica, do campo de conhecimento e reflexão da psicanálise, a qual, embora sujeita (muitas vezes) a dogmatismos e ideologias, busca assintoticamente se aproximar, na sua pluralidade, dos diferentes modos de subjetivação, construindo uma clínica capaz de oferecer um espaço de transformação para os diferentes modos em que o sofrimento psíquico se manifesta.

A transitoriedade introduz a dimensão temporal de todo saber, revela a força do novo e convoca o analista ao permanente exercício de diálogo entre passado e presente, ao reconhecimento do perecedouro e do invariante inerente ao método e sua ética. O tom de esperança expresso na epígrafe freudiana nem sempre foi mantido pelo pai da psicanálise, que, poucos anos após esse escrito, reconheceu a dimensão desagregadora da pulsão de morte. No entanto, os trabalhos publicados neste número resgatam com vigor, ousadia e criatividade clínica, e não menos rigor metapsicológico, a dialética própria ao luto por uma clínica padrão idealizada e o encontro com a potência transformadora de uma psicanálise viva, seja no espaço do consultório, seja nos múltiplos espaços nos quais a psicanálise pode contribuir.

Os trabalhos em resposta à carta-convite, publicada na sequência deste editorial, se estendem por diversos campos e contextos, e são de uma riqueza e variedade que mostram a força e o potencial criativo das intervenções psicanalíticas na sua multiplicidade. Inicialmente, Bernard Miodownik não se furta à complexa tarefa de abordar o tema da frequência de sessões e sua relação com a manutenção do método psicanalítico. O autor nos apresenta o rico debate internacional sobre o tema, assim como sua experiência clínica, abrindo interessantes indagações para os leitores.

Régine Prat, renomada psicanalista francesa, indaga a interpretação a partir de seus efeitos e discute um tema de extrema atualidade clínico-teórica: os diferentes níveis de interpretação que se harmonizam com o nível de simbolização do analisando. Daniel Kupermann, por meio de um percurso histórico-crítico - desde Freud até o brincar compartilhado de Winnicott, passando pelas ousadas e criativas experiências de Ferenczi -, busca desconstruir a ideia de que a clínica é, privilegiadamente, um exercício interpretativo.

O trabalho de Leda Herrmann, em torno da clínica extensa, sustenta uma discriminação entre método interpretativo e técnica, sendo o primeiro considerado como fundamento da clínica e a segunda sujeita às contingências e contextos nos quais a psicanálise poderá contribuir. Os ricos artigos de Nara Amália Caron e Maria Elisabeth Cimenti abordam interessantes possibilidades de intervenção e pesquisa clínica no âmbito da psicanálise com crianças. Caron amplia o campo de aplicação do método de observação de Esther Bick para novas situações, como ultrassonografias obstétricas, com importantes desdobramentos. Cimenti relata uma experiência de psicanálise com crianças em grupo, enfatizando os pilares teórico-clínicos que sustentam o campo interpretativo nesta configuração.

Cristina Parada Franch e Rodrigo Blum apresentam um trabalho com grupos no tratamento das psicoses. A clínica grupal, inspirada no trabalho de Didier Anzieu e René Kaës, é descrita como instrumento privilegiado de intervenção e pesquisa clínica na instituição Projetos Terapêuticos. Já o artigo de Maria Teresa Naylor Rocha e colegas da SBPRJ, por meio da reafirmação da exclusão social como experiência traumática, busca refletir acerca dos aspectos teórico-clínicos envolvidos na prática extensa com populações vulneráveis.

João A. Frayze-Pereira, a partir da pergunta "A arte salva?", nos conduz pelos meandros de uma rica reflexão sobre a questão dos limites e das relações entre ideologia/ saber, tradição/esquecimento da origem nos campos da arte e da psicanálise.

Os trabalhos da seção Artigos, enviados espontaneamente para a rbp, testemunham e ilustram os desafios clínicos e as reflexões dos autores em torno da clínica atual.

O texto de Jean-Claude Rolland, publicado como Intercâmbio, procura examinar em detalhe as operações específicas do procedimento analítico (que contribuem para restaurar as condições de renúncia aos objetos edipianos), em particular as diferentes desconexões (significante/significado, conteúdo ideativo/envoltório conceitual) e as transposições incessantes das moções de desejo entre linguagem de imagem e linguagem verbal.

Muitas das resenhas e lançamentos que integram este número se alinham com os temas discutidos pelos autores. Acreditamos que o conjunto das colaborações apresentadas poderá contribuir substancialmente para o avanço dos debates em torno da clínica em um mundo em mutação e para o uso criativo do dispositivo psicanalítico nesses novos contextos.

A todos, uma boa leitura!

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