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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.48 no.2 São Paulo abr./jun. 2014

 

ARTIGOS TEMÁTICOS: INTERVENÇÕES EM PSICANÁLISE

 

Intervenções em Psicanálise - Século XXI

 

Psychoanalytic Interventions - 21st Century

 

Intervenciones en Psicoanálisis - Siglo XXI

 

 

Leda Herrmann

Psicanalista, membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Autora de Andaimes do real: a construção de um pensamento (São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007)

Correspondência

 

 


RESUMO

O texto trabalha a questão das intervenções psicanalíticas pelo ângulo das pressões que o mundo em que vivemos impõe ao seu homem e à prática analítica atual. Considera-se clínica psicanalítica as intervenções orientadas pelo método interpretativo da Psicanálise, com sua função terapêutica, mesmo aquelas que não seguem o enquadre da clínica padrão de consultório. Apresentam-se dois exemplos de intervenções em clínica extensa.

Palavras-chave: clínica extensa; clínica padrão; método interpretativo.


ABSTRACT

This paper deals with the matter of psychoanalytic interventions from the angle of the pressures the world we live in applies to its man and to current analytic practice. The interventions oriented by the psychoanalytic interpretative method, which implies therapeutic function, are considered psychoanalytic clinic, even those procedures that do not follow the traditional setting rules. The paper presents two examples of extensive clinic intervention.

Keywords: extensive clinic; standard clinic; psychoanalytic interpretative method.


RESUMEN

El texto trabaja la cuestión de las intervenciones psicoanalíticas pensadas desde el ángulo de las presiones que el mundo en que vivimos impone a su hombre y a la práctica analítica actual. Considera clínica psicoanalítica a las intervenciones que siguen el método interpretativo de Psicoanálisis, con su función terapéutica, incluso en los casos en que no siguen el encuadre de la clínica estándar de consultorio. Presenta dos ejemplos de intervenciones en clínica extensa.

Palabras clave: clínica extensa; clínica estándar; método interpretativo.


 

 

Bastante desafiador o tema deste número da Revista Brasileira de Psicanálise, presos que estamos à clínica padrão, que se estabeleceu há muito para nossa prática.

 

Desafio

O afunilamento que a história da Psicanálise impôs ao ofício por nós praticado nos tornou especialistas em terapia analítica. Isto é, foi o boom da Psicanálise como psicoterapia, iniciado na primeira metade do século passado, que provocou o encolhimento da invenção freudiana de desvelamento do sentido humano para o âmbito da criação, também freudiana, da clínica terapêutica - embora assim tenha nascido a Psicanálise pelo trabalho freudiano com a histeria e suas histéricas.

Naquela época, meados do século XX, era grande o desenvolvimento teórico psicanalítico, por uma segunda geração de psicanalistas (F Herrmann, 1986). Privilegiando algum ponto da produção freudiana, esses pensadores formaram escolas (Klein, Bion, Lacan, por exemplo) e continuaram a tarefa iniciada por Freud, de, com base nos achados clínicos, desenvolver teorias sobre configurações psíquicas e teorias sobre o sujeito, explicativas das ações psíquicas. Era também bastante forte o movimento para estabelecer com autoridade as condições técnicas desse fazer terapêutico, no âmbito da International Psychoanalytical Association (IPA), ou seja, configurava-se a clínica padrão de consultório que vige até hoje. Assim, caiu para um plano muito secundário a reflexão sobre a especificidade de nossa construção teórica, enfatizada por Freud, por exemplo, em "Os instintos e seus destinos" (1915/2010b) e "Introdução ao narcisismo" (1914/2010a); segundo essa reflexão, conceitos não têm validade garantida e sempre se encontram em via de transformação e superação pelas novas descobertas que a ação clínica proporciona, e nossas teorias são ficções - a ficção de um aparelho mental. Ao mesmo tempo, foram se estabelecendo, pela IPA, padrões (standards) para as análises de formação cuja rigidez de aplicação durou até os primeiros anos deste século, e que contaminaram a prática de consultório. Enrijecemo-nos teórica e tecnicamente.

O desafiador da proposta da Revista, parece-me, é possibilitarmo-nos flexibilidade, no âmbito das instituições oficias da IPA, para pensarmos numa extensão da clínica padrão, mesmo para a clínica de consultório. Extensa ela já se apresenta, como tratei em artigo recente (L. Herrmann, 2013), tanto devido à multiplicidade de posições psicanalíticas reveladas pela história da Psicanálise com o alargamento de configurações clínicas passíveis de nossa ação, como pelas pressões que as alterações nas condições do mundo em que vivemos impõem ao mundo e ao homem. A clínica extensa precisa ser pensada para continuar a ser sistematizada e absorvida.

Naquele mesmo artigo considero que, no século XXI, os pacientes de psicanálise nos trazem características peculiares. Há uma alteração no sofrimento psíquico, que passa a se expressar pela passagem ao corpo e ao ato, nas crises de pânico, nas adições às drogas, às dietas. Sua maneira de se expressar constrói um discurso na forma de afirmações, com muito poucas perguntas, evidenciando a dificuldade própria dos dias de hoje da autoexploração interior. Também é difícil escutar o outro e constatamos nos pacientes uma urgência pela velocidade, em receber respostas para o que não foi sequer perguntado. A subjetividade se modifica diante dessas condições do mundo, mundo que se faz conhecer por informações e propaganda transmitidas velozmente pelas mídias, e não mais de forma direta.

Frente a essas transformações no e do mundo contemporâneo, vamos encontrar uma clínica que amplia seus modos para além do padrão, que ainda permanece como tradição, predominantemente nas análises ditas didáticas, ou regulamentadas institucionalmente; isto é, vamos encontrar uma clínica que se altera nos quesitos de setting em relação à frequência, ao uso do divã e mesmo ao consultório privado. Passam a fazer parte do cardápio de nossa clínica as análises de baixa frequência semanal e em circunstâncias pouco convencionais, como atendimentos por skype ou telefone, em hospitais e noutras instituições. São escassas, porém, publicações e reflexões sobre essas experiências.

As peculiaridades da clínica atual não se restringem ao enquadre; a clínica, responde à demanda da sociedade e passa a estar presente em instituições diversas, que não se limitam a hospitais e outras da área de saúde. No entanto, não tenho dúvidas em reconhecê-la como clínica psicanalítica, uma vez que se realiza pela ação do método interpretativo, nossa marca, e cumpre função terapêutica - a cura no sentido apontado por Freud em "A questão da análise leiga" (1926/1973), possibilitar ao paciente o uso de recursos internos que estavam inacessíveis por força de repressão.

 

Intervenções

O que define a Psicanálise em seu fazer clínico é o método interpretativo inventado por Freud, que implica a escuta no e do campo transferencial. Nessa escuta, o discurso do paciente é tomado no corte da direção emocional ao interlocutor, o analista, que presentifica a momentânea configuração de sua autorrepresentação e lhe acrescenta valor de ruptura. Dessa ação ou fazer clínico, podemos dizer que o método interpretativo vale-se do poder heurístico de presença sobre o discurso individual para que se ampliem as possibilidades de representações do paciente, flexibilizando-lhe as próprias autorrepresentações. Perceber-se também perseguidor frente às suas queixas de perseguido permite-lhe tocar algumas amarras sintomáticas e ampliar seus recursos psíquicos. O fazer clínico do método interpretativo, pensado na breve forma como apresentei, implica função terapêutica e é comum a todo analista, seja qual for sua orientação teórica.1

A questão das intervenções psicanalíticas, ou intervenções que o método interpretativo possibilita, toma nesta vertente reflexiva uma conotação técnica. Assim, penso que as formas técnicas do fazer analítico estão relacionadas às injunções das teorias que informam o analista, às condições socioculturais determinantes das diferenças na subjetivação do homem no mundo em que vivemos e às emergências que esse mundo traz para a demanda do trabalho clínico.

As intervenções da Psicanálise estão no lado da técnica e não do método, que é nossa invariância. A técnica, por sua vez, é conjuntural e não pode nunca ser imobilizada em procedimento padrão, sob o risco de apartar-se da Psicanálise, do homem e do mundo.

Trago dois exemplos de intervenção psicanalítica em clínica extensa. O primeiro são reflexões minhas a partir de um projeto, do qual participei, de extensão da clínica à consulta médica, realizado em hospital escola sob a coordenação de Fabio Herrmann. O outro, em descrição mais abrangente na questão da função terapêutica e clínica extensa, foi extraído do artigo de Fabio Herrmann (2006), de quem sou herdeira, também da produção publicada.

 

Ritual de cura - a propósito de um curso sobre a função terapêutica da consulta médica

Edmilson veio ao anfiteatro, em um hospital escola, contar sua história clínica. Entrou entre tímido e intimidado, mas numa postura ereta; não nos olhava - os das cadeiras do anfiteatro (e éramos mais de vinte) e o coordenador desse curso, sentado entre ele e nós - de vez em quando arriscava o rabo dos olhos. Luís, o médico que procederia à anamnese clínica, acompanhava-o, conduzindo-o de forma solícita. Foi-lhe indicado sentar-se de frente para nós, atrás de uma mesa (a utilizada pelo professor, em sessões de aula de clínica médica). O olhar baixo que mantinha desde a chegada volta-se para o médico quando ouve suas primeiras perguntas, nome e local de origem.

"Edmilson. Do Amazonas."

Começou do começo o relato sobre sua doença: "No dia 24 de abril fez 11 meses que começou". Estávamos em fins de março. Errou o mês, não o período. E o que começou? Uma febre muito alta no dia 24 de abril do ano anterior. Enfatiza o "muito alta". Sentia-se muito mal, com calafrios. A febre e o mal-estar obrigavam-no a ir ao pronto-socorro diariamente. Depois de dez dias com muita medicação, a febre baixou, mas não o deixou mais: aparece às oito horas da manhã e desaparece às três horas da tarde. Naqueles dez dias, perdeu nove quilos. Do tratamento em pronto-socorro, sem que houvesse uma explicação para essa febre, passou por duas internações em diferentes hospitais de Manaus. O que tem, não conseguiram saber as equipes que o atenderam. Foi encaminhado para São Paulo.

Essas informações foram a resposta de Edmilson à pergunta de Luís sobre o que sentia. Respondia direta e brevemente às outras perguntas exploratórias do sintoma e voltava à história vivida naqueles onze meses: os exames que não concluíam nada, as conversas com os médicos que não conseguiam igualmente explicar-lhe o porquê da febre - lém das dores nas costas e nas pernas, que foram aparecendo, e de seu desânimo, que foi aumentando. Contando mais sobre a história de sua febre já arriscava nos olhar. Foi assim que disse ter feito 370 exames de sangue.

Aos poucos, também alguns de nós arriscávamos uma pergunta ou um comentário. Edmilson contando e respondendo nos comunicava que ele é que não conseguia uma resposta. Cada exame não conclusivo significava uma resposta adiada. Quando insistia com os médicos, o que ouvia deixava-o mais nervoso. De um, ouviu que poderia ser um câncer impossível de detectar, de outra - que comentava o resultado de plaquetas e leucócitos baixos, cujas cifras nos repete - que se esses níveis baixassem poderia vir a ter uma leucemia. "Minha cabeça fica na lua", é a expressão que usa mais de uma vez nesse relato.

Ficamos contaminados por esse não saber. Talvez por isso, nossas perguntas, as da plateia, deixaram um pouco de lado os sintomas. Alguém pergunta se está só em São Paulo, outro, há quanto tempo chegou, e um terceiro, sobre sua profissão e trabalho. Edmilson não deixa de referir a doença, os exames, os sintomas, mas mescla em suas respostas outros temas. É militar, está "encostado", a mulher o acompanhou na viagem a São Paulo paga pela Secretaria da Saúde de seu Estado, e aqui permanece, pois recebem uma ajuda de custos. Um pouco mais à vontade conta que telefona diariamente para os filhos, liga a cobrar mesmo sem saber se poderá pagar. A proximidade vai se fazendo entre nós, Edmilson, Luís, plateia, coordenador. Luís nos olha estimulando nossas perguntas, Edmilson já não mantém o olhar na mesa. Então alguém pergunta como estava a vida na época do início da doença. Entrecruzando história da doença e história da vida, a pergunta permitiu que nos encontrássemos mais de perto, médico, paciente e plateia. Edmilson conta que sua vida estava péssima: ele e a mulher estavam brigando muito, pensando em separação. Neste tempo da doença, as coisas foram mudando, o relacionamento melhorou - mas estava, naquela época, muito difícil, enfatiza.

Ao falar da doença e da vida, da doença em sua vida, vai marcando o tempo desses onze meses ou com os exames ou com o acréscimo de sintomas, principalmente as dores e desânimo. E é um tempo inconcluso: o resultado esperado, quando chega, só anuncia um próximo exame, uma conclusão para depois, um tempo para depois, para amanhã, e o temor de ser para nunca. É o tempo da angústia.

Já no final do relato, Edmilson pede para contar uma coisa que faz sua cabeça ficar na lua, e que só contou para outros dois médicos, dos muitos por quem passou. A história nos pega a todos. No dia em que a febre apareceu, e ele sabe que foi às três horas da tarde, precisava chegar em casa sem vestígios; sem nenhum cheiro, confirmou, respondendo à pergunta de um de nós. Eram quase duas horas da tarde. Teve a ideia de precisar suar muito; para isso fechou as janelas do carro e levou quarenta minutos para chegar em casa. Debaixo do sol de Manaus, às duas horas da tarde, no carro todo fechado, transpirou tudo o que era possível, não restou cheiro nem outro vestígio denunciador. Em casa, depois do banho, continuava a transpirar e a sentir muito calor, até que colocou o termômetro e constatou febre de mais de quarenta graus. A febre não abaixou com os remédios que tinha em casa, nem com os que mandou comprar por sugestão de amigos. Foi para o pronto-socorro e a febre não o deixou mais, nem a ideia de que teria sido causada por sua atitude, "por isso", como refere - e que pudemos escutar como: por meu erro, por minha culpa. Pergunta diretamente ao coordenador se essa pode ser a causa da doença, da febre. Escuta atento sua resposta de que não é provável ser essa a causa para uma febre de onze meses, que pode ter sido o ponto de partida, o pontapé inicial. Para Edmilson, configura-se outra compreensão de si e da situação vivida através de uma dúvida partilhada, uma conversa que deixa de ser solitária no âmbito de sua cabeça, mas conosco conversada. "Então o que eu tenho? Pensem no meu caso esta noite e vejam se encontram uma resposta" Alguém havia lhe perguntado se ele teria alguma pergunta para nós. Assim responde, assim se despede.

Edmilson, sua doença e sua história, despertaram em nós muito interesse. Nós também nos aproximamos emocionalmente dele. Compartilhamos compadecidamente de sua pergunta sem resposta, de seu tempo para depois, de sua angústia.

Na discussão da consulta, deste caso e dos anteriores, nossa proposta é descobrir a função terapêutica que cumpriu, e se se cumpriu. Neste, vimos que ela atravessou um "ritual de cura" semelhante aos rituais de cura próprios de culturas ditas primitivas. A consulta que perseguiu um dos atratores propostos pelo paciente, imbricamento de sintoma com sua história temporal de um "tempo para depois", mais a quebra do aprisionamento na explicação pessoal que encontrou para a doença, permitiu a Edmilson o contato com o proibido - o episódio que o levou à sauna no carro, o qual ele nem precisou contar. Tocou o real das regras do que um homem responsável pode e não pode fazer, mas propiciando-lhe a representação, até então impossível, talvez por não ter sido escutada, de que esse proibido, motivo de muita culpa, pôde ser compartilhado, ouvido e pensado não mais como sua acusação primordial, mas uma ideia a ser considerada. E é nesse corte de escuta e conversa próprio do método interpretativo e de que participam médico clínico, estudantes de medicina e um conjunto de profissionais da área da Psicanálise que se manifesta a função terapêutica, nossa amiga leal.

Finalizo meu texto, escrito à época dessa experiência, com uma observação transdisciplinar: assim, podemos dizer que esta experiência com Edmilson ou a consulta médica em geral fazem parte do ritual de cura de nossa cultura ocidental "desenvolvida".

 

Função terapêutica

A experiência de uma peculiar forma de intervenção psicanalítica, que aqui parcialmente será contada, foi levada a cabo por Fabio Herrmann em um hospital escola (F. Herrmann, 2006) no início dos anos 2000, em uma ação de clínica extensa, levando para a prática a sistematização desse tema, a que vinha se dedicando e que já caminhara por alguns escritos. Contou ainda com a parceria de Marion Minerbo.

O Centro de Estudos da Teoria dos Campos (Cetec) recebeu do setor de psicologia de um hospital escola um pedido de ajuda para a equipe de enfermagem do setor da clínica de hematologia, que trata pacientes transplantados de medula óssea com má evolução. Outras equipes de psicologia haviam recebido a mesma incumbência, tendo passado rapidamente pela experiência. Os pacientes internados chegavam bem, aparentemente, no entanto a piora em seu estado ia se apresentando sem reversão. Segundo o relato, eles "se desmanchavam a olhos vistos".

Os participantes da equipe de enfermagem, frente a esses quadros de prognóstico muito ruim, apresentavam um estado de constante sobressalto, acompanhado de depressão e angústia, que se manifestava por desentendimentos entre os membros da equipe, chegando a acusações recíprocas e até a crises psiquiátricas.

Reproduzo excertos do diário clínico, a forma que toma a escrita do artigo referido em que se encontram estas reflexões. (F Herrmann, 2006).

Diário clínico - maio de 2000

Aqui é só pressa, Professor, é tudo para ontem. Ficamos sabendo que mesmo agora há um funcionário de licença, por depressão.

Os médicos conseguem esconder-se das famílias, que perguntam pela evolução dos pacientes. Quando vão sair? A gente sabe que não vão, mas só consegue dizer: um pouquinho melhor; quem sabe, se Deus quiser... O que ninguém quer fazer, nós, as enfermeiras, temos de fazer. E depressa, senão os médicos dizem que a culpa é nossa. Aqui, é tudo para ontem.

Às vezes, a gente acaba rindo. É até falta de compaixão. Pecado. O paciente X, por exemplo. Ele vem atrás da gente a toda hora, pedindo mais remédio. Um pouquinho de paciência. Estava no posto, mas, quando passei pelo quarto, ele também estava lá, pedindo mais remédio. Falei para minha colega: tão branco, andando sem fazer barulho, parece um fantasma. Começamos a rir. O senhor entendeu? Fantasma. E ele logo vai virar fantasma, obituar. Mais remédio, o senhor sabe... Ou a gente mata, ou eles morrem. E a gente ri, imagine: alguém tem de nos perdoar...

Choram rindo. Na realidade, é tão terrível quanto engraçado, e rimos também. Nesta sala estamos vivos, mas só provisoriamente. Óbitos adiados. Com eutanásia ou não, vamos também virar fantasma. Por enquanto, rindo, afirmamos vida e humanidade. Quem nos há de perdoar, neste cantinho do mundo onde, por prudência, mesmo Deus evita pisar? Sei que não as posso perdoar, só pecar com elas do mesmo riso.

Digo-lhes umas frases simples e entrecortadas, repetindo morte, porém, em lugar de óbito. E depois: obituar, habituar com a morte, mas não adianta, não é?

Elas dizem que se salva 1 em 100 - igual ao que registra a literatura. Mas o transplante é a única chance, de qualquer modo. E os médicos exigindo perfeição, com aquela cara de que se o paciente morrer é porque atrasamos a medicação cinco minutos. Tudo para ontem.

Na loucura, uma enfermeira queria casar com um paciente terminal. E a outra, que casou com o irmão da moça que morreu? A gente casou com a hemato, Professor. Casadas com a morte.

Quase no fim, contam a história. A paciente havia dado entrada com boa aparência. Era até bonitinha. Estava de casamento marcado. Passava o tempo e começaram os sintomas graves. Mucosas ulceradas, já não podia comer, dores horríveis, sedativos cada vez mais fortes. Desmanchando. E a família a perguntar se desmarcavam ou não o casamento. As enfermeiras titubeando, enrolando, contemporizando. Afinal, chegou o sábado do casamento. Ela morreu na sexta. Com efeito: tudo para ontem.

Diário clínico - junho de 2000

Nosso primeiro encontro começara com alguém dizendo: "aqui, tudo é sempre para ontem". A frase é comum, quer dizer que estamos sempre apressados. O contexto é o atendimento a pacientes terminais, em que a perfeição da técnica e o atendimento imediato poderiam em tese significar a diferença entre a vida e a morte. Em tese. Na verdade, elas sabem que não. O um por cento [que se salva] é só perdão imprevisto, trégua de Deus, de um deus impiedoso, sedento de sangue, demoníaco. A paciente deve casar um dia depois da morte. Assim sendo, tudo para ontem, apenas demarca o tempo absurdo em que ato algum pode ser eficaz, pois é inerente seu atraso. O tempo do conhecido: não adianta, mas é preciso. Este campo deve ser rompido.

Diário clínico - novembro de 2003

Nosso trabalho dura já três anos. Da Hematologia propagou-se à enfermagem do Centro Cirúrgico e à dos Ambulatórios. Não passou disso, por enquanto. Juntaram-se a nós um médico e vários psicólogos, aproveitando para aprender a prática da função terapêutica. Descobrimos que dificilmente haverá melhor forma de ensino do ato analítico. [...] A crise da Hematologia tomou um rumo menos destrutivo, isso é claro. Por outro lado, não parece fácil incorporar os psicólogos do hospital no projeto por eles pedido. Compreensivelmente. Quem deseja romper o campo da própria infelicidade? A clínica extensa, como a clínica padrão, é mais que uma aposta no imponderável, fica à espreita dos cochilos do mal.

 

Intervenções x desafios

Iniciei minhas reflexões considerando o desafio contido no tema da Revista pela sua proposição de "intervenções", no plural, para nosso fazer psicanalítico. O versus no título desta tentativa de conclusão não aponta para um impasse, mas para uma possibilidade de integrarmos o plural na clínica psicanalítica: intervenções. O recurso que utilizei no texto não é retórico, é inerente à minha compreensão de clínica e da forma como a pratico. Deriva-se do pensamento psicanalítico crítico metodológico exposto na obra de Fabio Herrmann, de cuja construção fui testemunha e participante.

O ponto de apoio de minhas reflexões está na noção de função terapêutica, que como já escrevi neste texto permeia essa obra. Está presente nas relações humanas, mas encontra-se, privilegiadamente, na clínica psicanalítica bem conduzida, tendendo a zero nas atividades burocráticas, que até pode ser a nossa forma clínica quando nos deixamos conduzir caindo na armadilha de nos anteciparmos pela tentação de preceitos teóricos como determinantes da ação técnica.

É ela, a função terapêutica, a própria eficácia do processo interpretativo de nosso método na clínica e na formulação de conhecimentos, e que está presente nas diversas atividades humanas como uma espécie de coeficiente de método psicanalítico.

E, para finalizar, uma citação do início do texto de Fabio Herrmann (2006): "Fiquemos, pois, na mera intuição: função terapêutica é o quantum de psicanálise de uma relação humana".

 

Referências

Freud, S. (1973). The question of lay analysis. In S. Freud, The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud. (J. Strachey, trad., Vol. 20, pp. 177-258). Londres: The Hogarth Press. (Trabalho original publicado em 1926).         [ Links ]

Freud, S. (2010a). Introdução ao narcisismo. In S. Freud, Sigmund Freud: Obras Completas (P. C. Lima de Souza, trad., Vol. 12, pp. 13-50). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1914).         [ Links ]

Freud, S. (2010b). Os instintos e seus destinos. In S. Freud, Sigmund Freud: Obras Completas (P. C. Lima de Souza, trad., Vol. 12, pp. 51-81). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1915).         [ Links ]

Herrmann, F. (1986). Convergências das várias teorias psicanalíticas. Revista Brasileira de Psicanálise, 20(4),553-565.         [ Links ]

Herrmann, F. (1999). A Psicanálise, a psicanálise e as demais psicoterapias em face do absurdo. Jornal de Psicanálise, 32(58-59),93-132. (Trabalho original publicado em 1983).         [ Links ]

Herrmann, F. (2006). Morte e vida no hospital. Jornal de Psicanálise, 39(71),57-65.         [ Links ]

Herrmann, L. (2013). Transmissão da Psicanálise e a prática analítica hoje: um desafio. Jornal de Psicanálise, 46(85),21-26.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Leda Herrmann
Rua Girassol, 34/102
054330-00 São Paulo, SP
Tel: 11 3088-8123
herrmannfl@globo.com

Recebido em 3.6.2014
Aceito em 23.6.2014

 

 

1 É este um desenvolvimento específico do pensamento de Fabio Herrmann e que permeia sua obra. Ver F. Herrmann, "A Psicanálise, a psicanálise e as demais psicoterapias em face do absurdo" (1983/1999).

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