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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.48 no.2 São Paulo Apr./June 2014

 

ARTIGOS TEMÁTICOS: INTERVENÇÕES EM PSICANÁLISE

 

"Analistas praticando outra coisa"? Desafios das crianças e dos bebês à psicanálise

 

"Analysts practicing something else"? Challenges of children and infants to psychoanalysis

 

¿"Analistas practicando otra cosa"? Desafíos de los niños y los bebés para el psicoanálisis

 

 

Nara Amália Caron

Membro efetivo da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre (SPPA). Analista de crianças e adolescentes. Supervisora de grupos de observação de bebês, método Bick

Correspondência

 

 


RESUMO

A autora destaca os desafios que o contato direto com crianças e bebês traz para a teoria e a técnica psicanalítica. Ressalta a importância do método de observação de bebês criado por Esther Bick para instrumentalizar melhor o analista para lidar com fenômenos transferenciais/contratransferenciais primitivos, para o quais o setting se torna mais importante do que a interpretação. A função do observador e as transformações que ele sofre no decorrer do processo - especificamente na forma de uma escuta refinada dos fenômenos psíquicos primitivos - resultam em um setting aprimorado pela experiência de observação que se adapta a diferentes settings externos. É apresentado material de aplicações do método em ultrassonografias obstétricas, centro obstétrico e UTI neonatal com o objetivo de ilustrar o enriquecimento pessoal do analista, assim como a importante função terapêutica dessas aplicações, muito bem-vindas nessas etapas primitivas do desenvolvimento humano.

Palavras-chave: método Bick; aplicações do método Bick; setting; etapas primitivas do desenvolvimento; crianças e bebês.


ABSTRACT

The author emphasizes the challenges that direct contact with children and infants brings to psychoanalytic theory and technique. She shows the importance of the infant observation method created by Esther Bick as a tool for the analyst when dealing with primitive transference/countertransference phenomena in which the setting is more important than interpretation. The observer's function and the changes he/she undergoes throughout the process - specifically the development of a refined listening of primitive psychic phenomena - result in a setting enriched by infant observation experience which may be adapted to different external settings. Observational material taken from applications of the method to obstetric ultrasounds, at an obstetric centre and a Neonatal Intensive-Care Unit is presented aiming to illustrate the analyst's personal enrichment, as well as the important therapeutic function of these applications, which are most welcome in early developmental stages.

Keywords: Bick method; applications of the Bick method; setting; early developmental stages; children and infants.


RESUMEN

La autora subraya los desafíos que el contacto directo con niños y bebés trae a la teoría y la técnica psicoanalíticas. Pone de relieve la importancia del método de observación de bebés creado por Esther Bick para instrumentalizar mejor al analista al lidiar fenómenos transferenciales/contratransferenciales primitivos para los que el setting se hace más importante que la interpretación. La función del observador y las transformaciones que él sufre en el trascurso del proceso - específicamente en la forma de una escucha refinada de los fenómenos psíquicos primitivos - resultan en un setting perfeccionado por la experiencia de la observación que se adapta a distintos settings externos. Se presenta material de aplicaciones del método en ultrasonografías obstétricas, centro obstétrico y UCI neonatal con el objetivo de ilustrar el enriquecimiento personal del analista, así como la importante función terapéutica de esas aplicaciones, muy bienvenidas en esas etapas primitivas del desarrollo humano.

Palabras clave: método Bick; aplicaciones del método Bick; setting; etapas primitivas del desarrollo; niños y bebés.


 

 

Quando deparo com o caso errado, me modifico no sentido de ser um psicanalista que satisfaz, ou tenta satisfazer, as necessidades daquele caso especial. Acredito que este trabalho não analítico pode ser melhor realizado por um analista bem versado na técnica psicanalítica standard.
(Winnicott, 1962/1988b, p. 154).

A criança desafia a psicanálise desde sempre. Talvez por ser tão enigmática e imprevisível. Desde bebê - ou ainda intraútero -, instiga com suas contínuas mudanças, sua transitoriedade; quando se pensa apreender algo, em seguida é outra coisa; não cabe em limites, é difícil enquadrá-la. Cheia de mistérios, é fascinante e, embora esteja sempre se revelando, mostra ter muito mais a declarar. Essa criança permanece dinamicamente presente dentro do adulto, em cada um de nós; foi através dela que Freud descobriu a sexualidade infantil e publicou o resultado de suas investigações psicanalíticas, com pacientes adultos, em sua obra mais fundamental e original: "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade" (1905/1969f). Esta provocou mais reações e acusações do que todas as suas publicações anteriores, mas Freud permaneceu irredutível em suas conclusões, afirmando que no futuro elas seriam indiscutíveis.

Interessado em desvendar suas hipóteses na criança, Freud encorajava seus alunos e conhecidos a anotarem as observações da vida sexual de seus filhos: seus sonhos, seus sintomas, suas atitudes, que eram, até então, desprezados ou negados. O grupo das quartas-feiras à noite,1 iniciado em 1902, mostrava-se interessado e entusiasmado com as descobertas de Freud - a criança dentro do adulto - e com as possibilidades terapêuticas da psicanálise. Acertaram, então, que o desenvolvimento do filho do casal Graf, nascido em abril de 1903, seria acompanhado pelo grupo através de relatos escritos dos pais do menino. Assim, poderiam observar ao vivo, na criança, as hipóteses de Freud, que explicitou a sua grande expectativa de investigar diretamente na criança as suas proposições:

até mesmo um psicanalista pode confessar seu desejo de ter uma prova mais direta, e menos vaga, desses princípios fundamentais e se perguntar se não seria possível descobrir na criança, em toda sua fresca vitalidade, os impulsos e desejos sexuais que tão laboriosamente desenterramos nos adultos - especialmente se considerarmos que são parte do acervo constitutivo comum a todos os homens, e apenas intensificado no caso dos neuróticos (1909/1969a, p. 16).

Com sua capacidade de observar e de posse desses dados sobre Hans, então com 3 anos de idade, Freud publicou dois trabalhos ainda antes de seu historial clínico: "O esclarecimento sexual das crianças" (1907/1969b) e "Sobre as teorias sexuais das crianças" (1908/1969d). Em ambos ilustrou a sua teoria, mas aguardou ansiosamente a ocasião de comprová-la tratando uma criança. Esse momento surgiu - não por acaso com um menino - quando o pequeno Hans, com 5 anos, apresentou uma fobia. O quadro clínico e a oportunidade única de confirmar, em status nascendi, as suas teorias - inferidas até então somente na análise de adultos - determinaram a indicação de tratamento analítico.

Com uma coragem indomável e um talento especial, Freud resolveu os impasses técnicos que se apresentaram neste primeiro tratamento psicanalítico de uma criança: só o pai do menino, com seus indispensáveis conhecimentos psicanalíticos, poderia questionar, compreender e interpretar as associações do filho, porque reunia na mesma pessoa a autoridade de pai e a de médico, e ainda combinava o cuidado afetuoso e o interesse científico. Freud orientou e supervisionou esta análise realizada pelo sr. Graf, iniciando assim o trabalho analítico com crianças.

Embora satisfeito com o resultado desse tratamento, Freud afirmou que foi possível aplicar o método analítico só neste caso e que não seria possível nem adequado aplicá-lo em outras crianças. Manteve reservas até o final de sua vida sobre os limites e as possibilidades da análise com crianças, devido à dependência e à própria idade delas, fatos que impediam o estabelecimento do enquadre apropriado, necessário ao tratamento. Também atribuiu o fracasso da psicanálise com crianças às resistências assumidas pelos pais, dificuldades externas ao setting. Nas décadas seguintes, as crianças continuaram sendo vistas como um adulto em miniatura. A dependência infantil seguia sendo uma interferência, e a relação analista-pais-criança, um obstáculo a ser enfrentado. Negando a dependência e a condição especial da criança, a solução seria uma transposição quase direta do setting adulto para a criança, sendo esta responsável por sua doença e tratamento.

Alguns psicanalistas - Winnicott, Bick, Mahler, Spitz - romperam tabus, venceram desafios, entraram e passaram a circular mais livremente no mundo da criança, do bebê e de suas mães. Dedicaram-se ao estudo deste universo em diferentes situações e settings, trazendo importantes contribuições para a compreensão dos estágios primitivos do desenvolvimento emocional e para a teoria/técnica psicanalítica. Surgiu um pluralismo teórico que desacomodou a certeza e a ordem vigente do que era a clínica psicanalítica com crianças até então.

Quando Winnicott nos convidou a conhecer o mundo primitivo do bebê, ele trouxe para a psicanálise tudo o que havia aprendido com as crianças e suas mães. Com uma vivência clínica inigualável, com mais de quarenta anos de trabalho, milhares de atendimentos a pacientes adultos, crianças e duplas mãe-bebê, mostrou-se seguro e à vontade para confirmar suas descobertas e decretar que o inevitável tinha acontecido: os psicanalistas não poderiam mais ignorar a dependência e os estágios primitivos do desenvolvimento humano. Incansável, reiterou: "É importante reconhecer o fato da dependência. A dependência é real. É tão óbvio que os bebês e as crianças pequenas não conseguem se virar por si próprios que as simples ocorrências de dependências passam despercebidas" (1970/1988a, p. 73). E fez um alerta sobre as próprias resistências do psicanalista a entrar nesse espaço e o quanto deveria enfrentar oposições externas. Esse conjunto de resistências - internas e externas - transformava a relação mãe-bebê em local sagrado, proibido de explorar.

Com todo o cuidado que lhe era característico em relação aos fenômenos iniciais do desenvolvimento emocional, Winnicott deu prosseguimento ao seu trabalho de investigação das etapas iniciais porque viu nas sutilezas da relação mãe-bebê uma grande oportunidade de aprendizado e descobertas sobre a natureza humana: a psicose, os mecanismos psicóticos e a técnica analítica. Descreve um estado natural do bebê de extrema imaturidade, no qual ainda não há um ser constituído, não há uma unidade e os seus vários aspectos ainda estão desconectados.

Há falta de reunião num si mesmo, falta de integração psicossomática e também no espaço e no tempo. Enfim, falta inteireza. É um estado "ainda não", pois ainda não há alguém ali com desejos, representação mental, mecanismos de defesa. Esse ser não integrado, não consciente emerge de um estado de solidão essencial e está continuamente a pique de sofrer agonias impensáveis - ser feito em pedaços; cair para sempre; perder a orientação ou qualquer conexão com o próprio corpo; morrer e morrer e morrer -, que são a essência das ansiedades psicóticas. Refere Winnicott que essas agonias originais são comumente evitadas pelos cuidados maternos:

Quando uma mãe, através da identificação com seu bebê, é capaz de sustentá-lo de maneira natural, o bebê não tem de saber que é constituído de uma coleção de partes separadas. O bebê é uma barriga unida a um dorso, tem membros soltos, e particularmente, uma cabeça solta: todas estas partes são reunidas pela mãe que segura a criança e, com suas mãos, elas se tornam uma só (1969/1994, p. 432).

Nessa fase mais primitiva, a mãe encontra-se num estado muito especial, numa condição psicológica que Winnicott nomeou de preocupação materna primária. Nessa condição especial, a mãe

fornece um setting no qual a constituição do bebê pode se mostrar, suas tendências de desenvolvimento podem começar a se revelar e o bebê pode mostrar um movimento espontâneo e dominar as sensações apropriadas a esta fase inicial da vida (1956/1993, p. 495).

Esse primeiro setting, que se constitui na relação inicial mãe-bebê, foi valorizado por Winnicott no trabalho clínico e fundamentou uma teoria original da técnica que ampliou o conceito de transferência ligada à dependência em vários estágios do cuidado do lactente e da criança. Nessas situações, Winnicott afirma que a comunicação é direta, às vezes no não dito; alerta para a fala do analista e os riscos das interpretações prematuras, que são invasivas e iatrogênicas. Não raro, o setting se torna mais importante do que a interpretação. Este é um trabalho que exige muito do analista e implica uma variedade de contratransferência na qual o terapeuta vive processos similares aos das mães que cuidam de seus bebês. É provável que a consistência, a previsibilidade, a atitude, a constância, a preocupação do analista pelo seu paciente sejam mais importantes do que sua capacidade interpretativa e seus conhecimentos teóricos.

Winnicott foi um dos principais responsáveis pelas adaptações da técnica às necessidades de cada caso conforme sua etapa evolutiva. Promoveu mudanças e uma abertura maior na psicanálise, revitalizando a singularidade e a criatividade pessoal no setting analítico. A criança passou a ser vista, escutada e compreendida não mais como adulto em miniatura, mas como um ser em desenvolvimento e com características específicas.

Foram, então, se delineando diferenças fundamentais entre o trabalho com adulto e aquele com criança, definindo-se especificidades na clínica infantil. Abriram-se novas possibilidades no tratamento das crianças, mas o trabalho tornou-se mais complexo e exigente para o analista.

Com o processo analítico estabelecido entre analista, criança e pais, o desafio se agigantou. Aumenta a população do setting, e todos os participantes informam, reagem, transferem ansiedades, conflitos ao analista. A contratransferência é geralmente excessiva e a natureza da comunicação da criança é mais primitiva e concreta. O interjogo transferencial-contratransferencial que se instala é igualmente mais complexo, criando-se uma das situações mais difíceis e exigentes para quem exerce a psicanálise nessa área. O analista ficou mobilizado e novamente desafiado em seus conhecimentos, em suas experiências e em sua técnica estabelecida - como Freud nos primórdios da psicanálise com criança -, apesar de usar todo o seu arsenal teórico básico. A necessidade de uma formação mais aprimorada e ampliada para o trabalho nessa área também se impôs, incluindo uma experiência direta para aprofundar o conhecimento e acompanhar o desenvolvimento normal e patológico.

Contemporânea de Winnicott, Esther Bick não apenas nos convidou a entrar no "lugar sagrado" da relação mãe-bebê como nos ofereceu o método para observar os fenômenos que lá se encontram. Depois de viver experiências frustrantes com uma pesquisa acerca do desenvolvimento infantil, em um estudo sobre gêmeos, ela concluiu que para entender o desenvolvimento da personalidade humana, sem levar em conta as teorias vigentes, deveria estudar a vida diária do bebê em seu ambiente familiar. Criou, então, o método de observação de bebês na Tavistock Clinic, em Londres.2

O objetivo era a formação profissional do terapeuta de crianças: instrumentalizá-lo melhor para observar e desenvolver sua capacidade receptiva de modo a lidar com as intensas ansiedades provocadas pelo trabalho com o emocional primitivo. Bick acreditava que a experiência de observação era importante por diversas razões, mas principalmente para que os terapeutas compreendessem com mais clareza a vivência infantil de seus pequenos pacientes; aprendessem sobre a conduta não verbal da criança e o seu brincar, assim como sobre a conduta da criança que não fala e não brinca; entendessem as informações trazidas pelos pais. Por fim, o método oferece, a cada observador, uma excelente oportunidade tanto de acompanhar o desenvolvimento de um bebê desde o seu nascimento, em seu ambiente e em sua relação com a família, quanto de descobrir por si mesmo como se originam e desenvolvem tais relações. O setting, com tendência a usar princípios técnicos psicanalíticos, mostra estreito vínculo com a psicanálise: atenção aos mínimos detalhes, observação do contexto, estudo da continuidade genética, tipo de contrato de trabalho, supervisão continuada, compreensão dos conflitos e sentimentos com seus dinamismos. O observador não deve fazer anotações durante a observação nem trabalhar com hipóteses ou categorias de fatos a serem observados a priori.

É marcante o desafio vivenciado pelo observador ao sair "da zona de conforto" do seu consultório, onde tem um setting demarcado com teoria e técnica conhecidas, e buscar, através de um intermediário, uma grávida que aceite a sua presença em sua casa, após o nascimento do bebê, uma hora por semana durante dois anos, com o objetivo de aprender sobre o desenvolvimento emocional de um bebê.

O observador participa dessa experiência orientado a despir-se, tanto quanto possível, dos seus hábitos terapêuticos e das teorias que fundamentam o seu dia a dia, para poder então somente observar. Além disso, deve ser discreto, atento, receptivo, delicado e não crítico, não aconselhar nem interpretar. Como o método não objetiva o tratamento, mas sim a formação do psicanalista, favorece que o observador possa mergulhar na vivência emocional respeitando estritamente todas as manifestações de vida. O observador é o instrumento do processo.

Contando com sua disponibilidade interna, um certo vazio interior, o observador assume uma condição eminentemente receptiva, sendo envolvido profundamente nesta dinâmica viva da observação.

Um dos grandes desafios do primeiro momento - a observação - é a intensa mobilização interna provocada pela experiência viva da dupla mãe-bebê: o observador é arremessado em um mundo de sensações e ansiedades primitivas que o atingem em diferentes graus e de diferentes maneiras, conforme sua estrutura pessoal. Entra em contato com estados primitivos de desamparo, dependência, solidão, vida/morte, usualmente vivenciados como alheios ou estranhos, para utilizar uma expressão de Freud (1919/1969c). A escuta envolve todos os sentidos, estimulando a regressão a estados primitivos e à comunicação cenestésica, que provocam vivências emocionais e sensações físicas intensas, sem palavras, no observador. Ele realiza uma efetiva participação não verbalizada, não agente, mas vivenciada. Inclui-se no processo sem, no entanto, sentir-se comprometido a desempenhar papéis que lhe possam ser atribuídos, como os de terapeuta, conselheiro, juiz. Isso não exclui a possibilidade de o observador ser usado, como um observador participante e, portanto, privilegiado (Bick, 1964).

Dessa forma, sua presença pode ser percebida e usada para compartilhar, numa linguagem verbal ou não, as emoções, as angústias e os sofrimentos da dupla mãe-bebê. O observador está em intensa atividade psíquica quando está observando - é passivo e abstinente apenas na ação. A experiência confirma como é fundamental tolerar o não saber, o não compreender; suportar as diferenças e os estilos próprios de cada pessoa; não impor a sua personalidade; compreender que não há regras de como agir, porque cada situação é única. Treina o observador a ser mais modesto e cuidadoso em suas afirmações e previsões; a conviver com a realidade e a não modificá-la. Confirma a importância das contribuições dos pais reais na relação mãe-bebê e da comunicação não verbal na estruturação do psiquismo e da própria psicopatologia da criança. É um exercício de humildade diante do ser humano, tão complexo e singular desde o momento em que é gerado até a sua morte. A elaboração dessa profunda experiência emocional promove grandes mudanças no observador: refina a escuta psicanalítica através das emoções e do próprio corpo, e desenvolve ferramentas para levar a psicanálise além do consultório, "extramuros".

Bick formulou uma teoria sobre o desenvolvimento primitivo que precede o momento em que o bebê começa a sentir-se suficientemente sustentado mentalmente pela mãe, a qual compreende e gerencia o seu desamparo.

Tanto Bick quanto Winnicott deixaram um consistente legado teórico baseado em observações detalhadas e na elaboração de ideias referentes à primeiríssima infância e à infância propriamente dita, mas se abstiveram de desenvolver técnicas para o atendimento de bebês de até 3 anos de idade. Assim sendo, os bebês e suas mães não se beneficiaram dos ensinamentos que proporcionaram à teoria e à técnica analítica, talvez em parte devido à grande preocupação desses autores em não interferir na relação inicial mãe-bebê.

Cabe lembrar que, quando Esther Bick criou seu método, preocupou-se com o treinamento da não interferência do observador. Ao mesmo tempo, percebeu o potencial terapêutico do método. Surpreendeu-se com a facilidade com que as mães aceitavam a presença do observador em suas casas e como explicitavam claramente a apreciação pelas suas visitas sistemáticas.

Ao longo de nossa experiência, vimo-nos em diversas ocasiões transitando da observação de bebês à clínica. Embora os métodos e objetivos sejam diferentes, foram surgindo naturalmente conexões, com implicações para o trabalho clínico com bebês e suas mães, já que nesse contexto o analista lida essencialmente com fenômenos transferenciais/contratransferenciais primitivos para os quais o setting se torna mais importante do que a interpretação. Pensamos num trânsito entre os dois métodos que permita uma troca, um uso criativo com fertilizações mútuas.

Considerando o potencial terapêutico do método e estimuladas por ele a olhar psicanaliticamente fenômenos psíquicos sempre mais primitivos, iniciamos a sua aplicação a etapas iniciais do desenvolvimento, como a gestação, acompanhando ultrassonografias obstétricas (Caron & Maltz, 1994; Caron, 2000; Caron, Fonseca & Kompinsky, 2000; Caron, Fonseca & Lopes, 2008; Caron & Fonseca, 2011); o parto, com acompanhamento em salas de pré-parto e parto (Donelli, Caron & Lopes, 2012; Caron, Lopes & Donelli, 2013); e a pre-maturidade, na UTI neonatal (Moreira, Gerhardt, Steibel, Silveira, Caron & Lopes, 2011).

Pensamos que o fio condutor pelo qual se dá a passagem da observação standard para a aplicação do método está na função do observador e nas transformações que ele sofre no decorrer da experiência continuada de dois anos, especificamente na forma de uma escuta refinada dos fenômenos psíquicos primitivos. O observador leva um setting aprimorado, uma ferramenta que se adapta ao contexto externo, seja ele um centro obstétrico, uma UTI neonatal ou uma sala de ultrassonografia obstétrica.

 

Observação e acompanhamento clínico no setting ultrassonográfico

Com o objetivo de compreender a relação mãe-bebê durante a gravidez, acompanhamos durante vários anos as ultrassonografias obstétricas realizadas na Clínica Alpha, em Porto Alegre, sempre pela mesma ultrassonografista, e as muitas transformações que ocorreram nesse tempo: os avanços tecnológicos, as variações das pessoas presentes ao exame e o clima emocional que se instalava. No início, a mãe costumava comparecer sozinha, o clima era de intimidade, "quase segredo". Simultaneamente à evolução tecnológica, observamos mudanças nos participantes: passou a ser frequente a presença do pai, depois de irmãos, avós e, até mesmo, bisavós. O exame permite um rápido acesso ao espaço intrauterino, o que é facilitado pelo próprio setting: a sala é ligeiramente escura, silenciosa, de tamanho aconchegante.

É impactante o desafio de entrar no ambiente intrauterino, escutar o seu silêncio, ver a sua escuridão e também descobrir, com encantamento, a vida que ali se desenvolve, independente do mundo lá fora. Com os relatos dos observadores, realizamos uma análise em conjunto de todos os participantes do exame e constatamos que, em função da intensa mobilização interna de cada um frente à imagem e ao setting criado, todos sofrem um impacto emocional que favorece a regressão, deixando-os mais permeáveis, transparentes, expressando mais facilmente suas sensações e sentimentos de desamparo, solidão, vulnerabilidade, ambivalência, rivalidade. Confirmamos também como a observação de ecografias permite um corte transversal no processo de tornar-se mãe, pai, irmão, avós, bisavós e a visualização de aspectos desse processo. O feto também promove uma reorganização de lugar e papel na dinâmica familiar e transgeracional.

Verificamos como os presentes investem narcisicamente no bebê, que passa a ser vivenciado como parte indiscriminada de cada um. Eles se defendem de desilusões, renúncias e desintegração utilizando a imagem do feto como um espelho multifacetado que reflete a onipotência, o poder e a autoridade dos presentes, que se tornam o centro das atenções, verdadeiras "majestades", competindo com o feto pelo espaço, pelo amor, pela visibilidade. O bebê nessas circunstâncias desaparece, invertendo-se a expressão de Freud (1914/1969e) -"sua majestade o bebê". Vemos o bebê e "suas majestades".

Num exame no qual se confirma o sexo masculino do bebê - um bebê grande -, este é visto como extensão do pênis do pai e reflexo de sua potência e masculinidade. Quando a médica refere que o feto tem em torno de quatro quilos, o pai, de modo ostensivo, sem a menor crítica, coça o saco escrotal e dá uma puxada nas calças; olha para a observadora, sorrindo orgulhoso e satisfeito com o tamanho de "seu bebê".

Em outro exame, confirmado o sexo feminino do feto, o pai começa a andar pela sala, falando alto e forte, agressivo com a mulher, que segundo ele não faz nada bem feito; inconformado, confronta a ecografista: "Vocês têm mesmo certeza do que dizem? Afinal, como é que podem afirmar? Baseados em quê? Eu não vejo nada, é tudo borrado!". Mesmo com os genitais contornados no visor, ele segue agitado, solicitando mais e mais informações. Não satisfeito, acaba saindo, batendo a porta e não retorna mais para este ambiente feminino desafiador e frustrante.

As crianças, por sua vez, contam verdades do seu mundo mágico para quem as escuta e respeita. Com a magia e a onipotência de seu pensamento, lutam impiedosamente para satisfazer suas necessidades, em especial a exclusão de seus rivais - os irmãos.

Uma menina de 3 anos passa todo o exame no colo do pai, tentando distraí-lo ou colocando-se em frente ao visor para impedir que ele veja o feto. Ao mesmo tempo, chama a atenção da mãe de várias maneiras, para que também ela não consiga olhar para o feto. A menina está ansiosa, não sossega um minuto no intuito de atingir seu objetivo. Terminado o exame, acalma-se, pega a mão do pai e da mãe, saindo da sala com passo firme e feliz. Já na porta, olha para trás com um notável sorriso vitorioso e, abanando para a tela do visor, diz: "Tchau, nenê! Tchau, nenê!"

O acolhimento da equipe possibilitou às crianças expressarem angústias, ódios, rivalidades, amor e desejos, desde os mais vividos até aqueles que nem ousamos admitir. Esse contexto ultrassonográfico promove um nível de profunda comunicação, satisfação e realização. Constituiu-se um setting no qual a equipe e a criança compartilham de um brinquedo criativo. A criança cria algo que já está aí e não está nem dentro nem fora do útero da mãe; tampouco de si própria. Não é um eu nem um não eu.

Esta é a proposta acordada por todos. Vivendo essa ilusão, vai surgindo uma desilusão gradual, sinalizada pela presença da discriminação, da alteridade e de certa aceitação da realidade. Nessa situação, a criança exercita sua onipotência mágica, criando do nada a ilusão de um irmão, que é apresentado, desenhado,3 aceito. Integramos os relatos do observador, os dados da criança, as falas dos pais e da equipe utilizando o referencial psicanalítico, similar às associações livres de um processo analítico.

Os desenhos de algumas crianças são como sonhos numa sessão de análise. São uma maneira de nomearem algo que vivem no momento, de comunicarem seus medos e angústias primitivas para alguém que as escuta e respeita. É comum os irmãos se colocarem dentro da mãe, rivalizando com ela e o feto. O retorno ao útero materno traz também temores de ficar retido ou tornar-se um usurpador injusto que mobiliza remorso e culpa fraterna.

Uma menina de 5 anos acompanha a mãe no exame de 34 semanas de gestação do irmão. Simpática e falante, pergunta muito, está curiosa em relação às medidas, ao espaço, ao tamanho do feto e do útero. Quando entrega o desenho (figura 1), diz que precisa falar com a médica. Explica, com naturalidade, que ela é a figura maior e a menor é o irmão. Ambos estão nessa casa, que tem duas portas. Preocupa-se muito com o tamanho das portas. A de cor laranja, maior, é para ela sair, e a menor, rosa, é para o irmão sair. As portas estão fechadas e ela não sabe quem sairá antes nem o que acontecerá se as portas não se abrirem.

 

 

Em nosso meio, a confirmação do sexo masculino é sempre bem-aceita pelos pais, que enxergam com clareza as imagens e não necessitam de confirmação. Quando o feto é feminino, isso não ocorre: os pais duvidam da imagem - "Está tudo borrado", "É um vazio"; repetem o exame para comprovar se há erro da ultrassonografista ou para ver se não cresceu um pênis no feto.

É notável como nas crianças acontece algo similar: todos os fetos - sem exceção - que em exames se confirmou serem do sexo masculino tiveram seus genitais desenhados de maneira clara e discriminada pelos irmãos (figura 2), tanto meninos como meninas.

 

 

Quando da confirmação do sexo feminino dos fetos, acontece o oposto. Tanto os irmãos como as irmãs não os desenharam, tendo, às vezes, comentado não enxergarem, não saberem, serem bebês feios. Dos mais de trinta desenhos de fetos femininos, só uma menina desenhou a irmã (figura 3).

 

 

A presença viva do observador, com sua capacidade receptiva e a leitura das imagens pelo ultrassonografista, podem fornecer um setting continente, facilitador do processo de tornar-se pai, mãe, irmão, avós, que ajuda a organizar a instalação das ligações com o bebê. A imagem sozinha, sem a participação do ultrassonografista, não tem valor e pode até ser traumática. Sugerimos ser este um novo ritual de iniciação que pode colaborar para o nascimento psíquico de um novo ser. O feto não é mais um desconhecido, pois escancara já boa parte de si e, junto com isso, o interior do ventre de sua mãe. Um menino de 5 anos, olhando a imagem da irmã, disse de forma muito espontânea: "Ué, já nasceu?!".

 

Observação e acompanhamento clínico de mulheres em trabalho de parto e parto num centro obstétrico

Apesar do contexto diferente, da diversidade de situações e da rotatividade de pacientes, manteve-se o setting da observação através da constância de dia, horário, local e equipe de profissionais, bem como da supervisão coletiva semanal, durante 19 meses.

Os relatos deixavam claro que não era uma tarefa fácil manter-se observando eventos, por vezes dramáticos, que evocavam a possibilidade da morte, que revelavam o desespero, pela dor física e emocional, de uma separação iminente, e que denunciavam também uma demanda por cuidados emocionais. Havia uma crueza, uma superexposição, um afloramento que desarmava a observadora. O centro obstétrico parecia um ambiente que aproximava as pessoas de algo que tinham de esconder, algo que revela mais do que gostariam, que vai além da intimidade, desnuda a alma, põe em evidência os medos e as angústias. A contradição, as mensagens ambíguas, tudo isso desarma e abate. Relata a observadora:

Fiquei um bom tempo parada na entrada, sem conseguir entrar [...] Não havia espaço para nada. Se alguém quisesse passar, precisaria espremer e ainda contar com a boa vontade do colega para lhe dar espaço. E uma das mulheres berrava, gritava, dizendo que estava nascendo [...] Fui meio constrangida, achando que devia estar com outra roupa, ou quem sabe eu deveria ficar parada, para não sentir que poderia estar atrapalhando alguma coisa

Palavras e símbolos deram lugar a expressões de sofrimento, desagrado, angústia e vergonha, compartilhadas pela observadora. Essa proximidade com o primitivo assusta, e algo até então familiar a qualquer pessoa, como defecar, vomitar e sangrar, passa a provocar uma sensação de estranheza e uma necessidade de omitir e até ocultar tais manifestações, que são constantemente negadas e escondidas no convívio social. Mas ali cheiros e cores se misturavam para formar uma tela rica de detalhes que nunca poderiam ter sido vistos em outro ambiente. A necessidade de controle parece ser vivida de forma intensa pelas mulheres, perpassando todo o trabalho de parto e o parto em si. E a falta de controle sobre esse processo, que quando desencadeado não pode ser interrompido nem revertido, pode provocar grande ansiedade nas pacientes.

O médico a examinou, disse que estava com 6 cm de dilatação e pediu para que uma das técnicas limpasse Caren, que tinha evacuado. [...] Ela voltou para a cama e, ao se sentar, já sujou de novo a cama com fezes, que pareciam sair sem o seu controle [...] Caren disse que conheceu uma paciente que teve seu bebê mais cedo [...] Gostaria de fazer uma cesariana, assim como a colega fez [...] Chamou por alguém, fui até ela, e ela me disse que estava com medo que seu bebê iria nascer ali mesmo, e ninguém ia ver. Perguntei se ela queria que eu chamasse alguém, e ela suplicou que sim [...] O médico a examinou novamente e constatou que ela já estava com 7 cm. Pelo menos, Caren sabia que o bebê não estava saindo dela, se esvaindo, assim como suas fezes.

A vontade de ir embora, de sair daquele ambiente, de retomar as rédeas da própria vida e se colocar novamente no controle também foi experimentada pela observadora:

Eu já estava ali há quase duas horas e comecei a ficar muito cansada. Tinha muita fome, estava com frio e com dor na barriga, talvez de fome, não sei bem. Tinha muita vontade de ficar e também muita vontade de ir embora e ver outras coisas. Talvez passear no shopping, ir ao cinema. Mas estava cansada. Acho que estava cansada era daquilo tudo...

Outro aspecto comum às mulheres ali internadas foi descrito pela observadora como alienação: uma espécie de estado alterado de consciência que fazia com que as mulheres ficassem alheias ao mundo, ao seu entorno, interagissem pouco com o ambiente à sua volta, verbalizassem pouco e até dormissem durante a evolução do trabalho de parto e mesmo durante o parto.

Havia quatro pacientes ali, todas bastante quietas, como se estivessem dormindo, e não quis incomodar [...] Júlia permaneceu quase todo o tempo deitada e virada para a parede. Consegui ver seu rosto apenas em um momento quando ela se sentou na cama e se ajeitou para virar de lado. Ela me viu ali parada e sorriu, para novamente se deitar e desaparecer - às vezes me lembro do mar, de como essas mulheres parecem mergulhar num mar sem fim, vindo à superfície em poucos momentos, talvez para mostrar que ainda estão ali. Na verdade, sabemos que estão ali, mas não sabemos muito bem por onde andam.

O sentimento de solidão percebido em muitas mulheres faz pensar em como elas estão, realmente, sozinhas para enfrentar o nascimento de um filho. Apesar de se encontrarem em um ambiente hospitalar, cercadas por profissionais, equipamentos, materiais e tecnologia, o processo todo do nascimento é solitário e precisa ser vivido assim pelas mulheres.

Constatamos que, mesmo sendo o parto um evento de curta duração, é uma experiência intensa e tem um potencial desorganizador - pela sobrecarga emocional e por ser capaz de interromper, ao menos momentaneamente, a linha de continuidade do senso de existir da parturiente. Percebe-se em muitas delas o desespero diante do risco de estar entrando em um espaço estranho, apavorante, desafiando a morte e a loucura. Vivenciar a regressão física e emocional que ocorre no parto é realmente um desafio máximo para a mulher, em seus limites e flexibilidade no transitar em diferentes níveis de sua estrutura psíquica, mesmo que esteja realizando um dos mais importantes desejos de sua vida.

A observadora descreveu como foi gratificante a possibilidade de desenvolver uma capacidade empática, de identificação e cumplicidade com as mulheres, deixar-se usar pelas parturientes, podendo oferecer uma espécie de contenção emocional similar àquela exigida na função materna. Permanecer junto, escutar, acolher, não criticar e vivenciar as experiências inconscientes das parturientes são aspectos da postura do observador que exercem uma função terapêutica, muito bem-vinda neste momento desafiador da vida da mulher. Tanto as mulheres quanto a observadora usufruíram dessa experiência - que, vivida semana após semana, pode adquirir algum sentido, deixando claro o quanto se pode sair enriquecido e modificado dela.

 

Observação e acompanhamento clínico de bebês prematuros em UTI neonatal

Quando entramos em uma UTI neonatal - que acolhe prematuros incapazes de sustentar funções simples e vitais como respirar, manter a temperatura corporal e engolir alimento, e que sobrevivem exclusivamente pela presença da tecnologia -, o impacto, as ansiedades e o desafio no observador se multiplicam. O tamanho dos bebês, sua aparência, os barulhos desordenados, os cheiros fortes, o limite tênue entre vida e morte, os procedimentos extremamente invasivos chocam e colocam o observador numa posição de receptor de angústias muito primitivas e caóticas. Além disso, esses bebês não contam com a adaptação viva e empática da mãe, tão essencial na passagem da vida intra para a extrauterina e nos primeiros tempos de existência.

Um bebê de 640 gramas e 24 semanas mostra-se muito instável, é um desafio para a observadora manter-se próxima dele:

Começo a ter sensações corporais que vão aumentando gradativamente, como calor, contração do meu estômago e os meus batimentos cardíacos parecem fracos [...] As sensações vão se intensificando, e começo a suar e meus pés a formigar. Percebo, então, que minha pressão devia estar caindo. Sinto necessidade de me afastar de Henrique e sentar, evitando um possível desmaio e buscando minha recuperação. (3ª observação, 1 semana e 4 dias)

Vejo que está quase chegando à metade da observação e tenho a sensação de que gostaria que ela já estivesse acabando, pois tenho sono, cansaço, calor e vontade de ir embora. Após a observação, vou me sentindo gradativamente mais acordada e inteira novamente, e fico surpresa com a intensidade daquele ambiente que faz com que o meu corpo entre em desequilíbrio. (6ª observação, 2 semanas e 4 dias)

O contato com o mundo ainda mais primitivo do bebê prematuro proporciona ao psicanalista um enriquecimento em sua clínica porque os aspectos observados nesses bebês estão presentes em todos os nossos pacientes.

Como dito anteriormente, desde o início Esther Bick destacou o potencial terapêutico indireto que as famílias observadas obtinham da relação com o observador. Partindo das experiências descritas, surgiu a ideia de utilizar o método Bick como ferramenta para o atendimento clínico das mães, no intuito de proporcionar uma mínima continuidade e uma presença emocional que ajudasse a tolerar o intolerável. Os atendimentos ocorriam nas dependências do hospital, durante a internação do bebê, e tinham certa mobilidade quanto ao local - ora em sala isolada, ora nos corredores, ora mesmo na sala de UTI -, possibilitando sempre que o terapeuta pudesse ir ao encontro das necessidades de cada mãe. Por essa razão, chamamos o terapeuta de itinerante.

A frequência era adequada a cada caso, assim como o tempo da sessão. Na prematuridade, os corpos da mãe e do bebê se separam abruptamente, gerando um desencontro e um descompasso em seus ritmos. Tanto a mãe quanto o bebê se veem prematuramente em suas funções. Além disso, a díade depara com uma impossibilidade real de aproximação física pela condição do bebê e as rotinas médicas; somam-se ainda a falta de conexão da equipe com o bebê e sua mãe e o caos do ambiente.

Chego à UTI. Vou direto à incubadora de Laura e não a encontro. Me sinto desesperada, pois olho e vejo outro bebê em seu lugar. Muitas coisas passam pela minha cabeça, boas e ruins. Será que Laura teve alta? Será que foi para a Unidade Canguru? Pergunto para uma enfermeira e esta diz não saber de quem estou falando; pergunto para outra e esta diz que Laura havia ido para outra sala. Como não saber do paradeiro de um bebê que estava há mais de um mês internado e já está com 1.100gramas? Volto à UTI, no horário marcado com a mãe, e novamente vou até a sala onde Laura se encontrava da última vez e de novo não a encontro. A enfermeira diz que Laura havia descido para o Canguru. Me vejo muito contente e imagino a cena do encontro no Canguru. Chego lá e a enfermeira da unidade não sabia de nenhum bebê ou mãe com esses nomes. Tento contato com a mãe por telefone, mas não tenho sucesso. Volto para a UTI e então fico sabendo que ela foi para o isolamento, devido a uma infecção. Finalmente, localizo o bebê na sua incubadora.

Outro trecho de sessão, relatado quando uma bebê tem 2 meses de vida e pesa 1.300 gramas, mostra que o importante é o não verbal ser captado, compreendido e vivenciado junto com a mãe e o bebê:

A mãe conta que sua filha está muito agitada. Percebo que a bebê está enrolada em uma fralda, como se fosse uma contenção, parecendo estar muito incômoda. Ficamos em silêncio observando Marina acordada. Eu a vejo como um bebê, vejo vida em seu movimento. Os pais parecem muito felizes e orgulhosos. Marina se mexe muito, e a mãe diz que ela parece uma minhoca e, como uma minhoca, ela vai se contorcendo muito dentro da fralda, ergue a coluna, ergue a cabeça, levanta a perna [...] É tanto movimento que da contenção escapa um braço e logo outro e com seus dois bracinhos empurra para baixo: para mim, parece uma linda borboleta saindo do casulo. A mãe diz: "Parece que ela está nascendo, saindo do útero, deve ter sido assim [...]". Eu sorrio e digo a ela que sim, que pensei algo parecido, mas a mim pareceu uma borboleta saindo do casulo. O pai me olha espantado e diz com emoção: "Nossa, eu também pensei".

 

Finalizando

A elaboração da profunda experiência emocional do observador com o método standard e suas aplicações, como gestação, parto e prematuridade, promove o desenvolvimento de uma escuta refinada dos fenômenos psíquicos do início da vida e consequentes transformações no trabalho clínico, não apenas no setting analítico como em outros settings, extramuros.

Além dos benefícios para a formação do analista, observamos também os benefícios intrínsecos para as mães e os bebês da presença viva e receptiva do observador/analista, que facilita os processos de desenvolvimento e especialmente de integração.

 

Referências

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Correspondência:
Nara Amália Caron
Av. Carlos Gomes, 1.111, ap. 701
90480-004 Porto Alegre, RS
Tel: 51 3332-1412
nacaron@portoweb.com.br

Recebido em 1.6.2014
Aceito em 23.6.2014

 

 

1 M. Graf e a esposa, que se analisara com Freud; Bass; M. Reitler; Heller; Weiss; Tausk; Federn; Sachs.
2 O método Bick se divide em três momentos: (1) observação com um setting constante de visitas semanais de uma hora, durante dois anos; (2) relato escrito, com palavras simples, para traduzir o que foi vivido essencialmente de forma sensorial e primitiva; (3) supervisão em grupo semanal, levando o relato ao grupo para aprofundar o conhecimento e a compreensão da relação inicial e primitiva mãe-bebê.
3 Além da observação no setting ultrassonográfico, entregamos às crianças um conjunto simples de recursos gráficos, solicitando a elas que desenhassem o que tinham visto durante o exame. Foi-lhes enfatizada a total liberdade de participarem ou não. Todas aceitaram o convite.

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