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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.48 no.2 São Paulo abr./jun. 2014

 

ARTIGOS TEMÁTICOS: INTERVENÇÕES EM PSICANÁLISE

 

Intervenção e perplexidade

 

Intervention and perplexity

 

Intervención y perplejidad

 

 

Maria Elisabeth Cimenti

Membro efetivo da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre (SPPA)

Correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo apresenta o relato de uma experiência clínica com um grupo de crianças. Refere-se a uma vivência terapêutica transferencial surpreendente pela intensidade e riqueza do material produzido. Trata-se de um trabalho compartilhado com mais quatro colegas, que foi tecnicamente discutido e revisado pela equipe no decorrer do desenvolvimento. Destaco, ainda, os pilares teórico-técnicos principais, salientando a presença, a escuta analítica, o apoio no discurso e a função do corte na sessão.

Palavras-chave: clínica de crianças em grupo; transferência; presença do analista; discurso.


ABSTRACT

This paper presents the report of a clinical experience with a group of children. It refers to a transferential therapeutic experience surprising in the intensity and wealth of the material produced. It is a piece of work shared among four other peers, technically discussed and revised by the team in the process of development. I highlight, also, the main theoretical and technical pillars, stressing presence, analytic listening, the use of discourse and the function of cutting the session.

Keywords: clinic of children in a group; transference; presence of the analyst; discourse.


RESUMEN

Este artículo presenta el relato de una experiencia clínica con un grupo de niños. Se refiere a una vivencia terapéutica transferencial sorprendente por la intensidad y riqueza del material producido. Se trata de un trabajo compartido con cuatro colegas, siendo técnicamente discutido y revisado por el equipo en el transcurso del desarrollo. Destaco, también, los pilares teórico-técnicos principales, subrayando la presencia, la escucha analítica, el apoyo en el discurso y la función del corte en la sesión.

Palabras clave: clínica de niños en grupo; transferencia; presencia del analista; discurso.


 

 

um menino de 3 anos a quem certa vez ouvi suplicar, desde o quarto onde o haviam encerrado às escuras: "Tia, fala-me; tenho medo porque está muito escuro". E a tia lhe pergunta: "O que ganhas com isso? De todos os modos, não podes ver-me". Ao que respondeu o menino: "Não importa, há mais luz quando alguém fala".
Sigmund Freud

Quantas histórias escutamos... Quantos sentimentos compartilhamos... João entra na primeira sessão com os pés virados para dentro, como se tivesse um grave defeito físico ao andar, e um ar de tonto, que causava a impressão de um menino autista. Começa a rodar pela sala, provocando surpresa. Quem fez a triagem não havia avisado que o paciente tinha qualquer dificuldade para andar, e o que aparecia ali era impossível ter passado despercebido.

A: Te sentes lesionado para caminhar e tocar a tua vida, seguir sem zonzeira. Te sentes muito machucado.

O menino vai se aprumando e, ao final da sessão, está caminhando normalmente.

Luís está muito agitado na sala, não consegue sentar. Mostra-se provocativo, brigão, bate nas coisas. De repente, fala:

Luís: A minha mãe está presa, por isso eu não vejo ela.

A: Nós, seres humanos, erramos. Alguns de nós cometemos um erro maior, aí vamos presos...

Luís chega à mesa, pega massa de modelar e começa a fazer uma espada.

Maria: Os homens transam com as mulheres, depois fazem filho nelas e vão embora. É assim...

A: Deve dar medo crescer, namorar e ficar abandonada como achas que as mulheres ficam.

Lúcia: Nunca morei em uma casa com meu pai e minha mãe...

A: Sentes falta disto.

Isabel: Sei o que é isso! Hã... Hã... Hã [Faz movimentos com o corpo, com a respiração ofegante, reproduzindo claramente uma relação sexual].

A: Desejas que a gente saiba que já passaste pela experiência de adultos e que é difícil, sendo uma criança, saber o que fazer com isso.

João: Mãos ao alto! Mãos ao alto! Eu tenho ódio! Eu tenho ódio!

A analista levanta os dois braços. E fica escutando os gritos e ordens do menino.

Tais situações se passaram no tratamento de crianças atendidas num grupo terapêutico, realizado em uma instituição privada. São cinco crianças de 4 a 7 anos de idade, institucionalizadas por abandono ou porque seus pais perderam o pátrio poder em função de negligência e abusos.

Iniciei o trabalho com uma colega cocoordenadora e mais três observadoras, que ficavam na sala de espelhos. Quinzenalmente, duas dessas colegas observadoras realizavam um grupo com os monitores das instituições onde viviam as crianças e que as acompanhavam. Visávamos a estabelecer um vínculo que sustentasse a presença da criança. Nestas oportunidades, ainda pensávamos formas de manejar as situações difíceis que os monitores enfrentavam no dia a dia, tal como fazíamos com os pais das crianças que atendíamos individualmente.

O primeiro interrogante que se impôs a nosso pensamento foi: que crianças encontramos? Eram crianças como as que se apresentavam em nosso consultório particular, com a ressalva de que pareciam pequenos adultos em muitos momentos. Já tinham experimentado situações de perda, violência e abuso, que apenas conseguíamos imaginar. Por isso, eram sensíveis e vigilantes. Uma menina, por exemplo, mal entrara na sala e já sabia onde acender a luz ou onde estavam as folhas para desenhar. No entanto, muitas vezes brincavam como crianças que eram, divertindo-se com o jogo. Apresentavam-se bastante francos. Certo dia, uma menina me disse: "Para de falar! Tu fala muito! Agora eu quero falar!"

Pensei que, de fato, talvez eu estivesse falando demais e que poderia escutar melhor se me calasse. Outros pacientes já haviam referido isso e eu sabia que precisava observar, mas nunca houvera esse tipo de assinalamento em um momento tão inicial do trabalho. Encantou-me ver essa criança falar com firmeza para que sua reclamação fosse escutada. Lembrou-me a paciente de Freud, Emmy, que solicitou que ele a escutasse. E se Freud conseguiu significar a sua prática atendendo à solicitação de seus pacientes, por que eu não deveria crescer escutando essa menina com seriedade e rever meu trabalho a partir daí? Calei-me.

Dentro desse clima, foi se estabelecendo uma intensidade transferencial quase impossível de transmitir verbalmente. As crianças iam se conhecendo, brincavam, brigavam entre si, em alguns momentos competiam. Em determinada sessão, um menino começou a fazer um pênis com massa de modelar e pintá-lo de vermelho forte. Outras crianças fizeram o mesmo e, ao final da sessão, mais três tinham confeccionado grandes pênis de diferentes cores e brincavam excitadamente, apontando uns para os outros. A única menina que não confeccionou um pênis foi a que disse saber o que era "isso" e que encenou com movimentos uma relação sexual. Nesse instante, percebemos que todas as crianças que ali estavam haviam presenciado relações sexuais ou sofrido abusos. Buscamos na história dessas crianças e foi confirmado esse tipo de vivência. Nas sessões, o clima de excitação era evidente, transbordando para a provocação e certa dose de violência. Os meninos se perseguiam entre si, ameaçando um ao outro. Pensei que aquilo era o inferno e senti um profundo mal-estar e vontade de fugir dali. A seguir, pensei que estas crianças já haviam vivido o inferno e era justamente isso que deveriam apresentar ali. Interpretei que eles se sentiam muito excitados com tudo aquilo, mas que essa excitação toda também servia para esconderem o quanto se sentiam machucados e sofriam com isso; que todos nós tínhamos os nossos machucados e podíamos tentar aprender a lidar com eles. Uma menina respondeu: "Mas tu não tens machucado! Duvido que tu tenhas!". Mostrei para ela um arranhãozinho que tinha na mão. Ela olhou e, do alto de sua sabedoria, falou com certo tom de ironia: "Isso aí não é nada!".

A essa altura do trabalho tivemos de recolher as tintas, porque as pinturas transbordavam, saíam das margens das folhas e acabavam com algumas marcas pela sala. Combinamos essa retirada com eles, o que foi aceito com tranquilidade. Preocuparam-se, porém, se também seria retirada a cola; reafirmamos que não. Seguiram trabalhando. A presença de pênis e conteúdos sexuais foi cedendo espaço a um clima de maior competição, chegando ao ponto de termos de separar e conter os meninos, além do fato de uma menina ter se mostrado muito deprimida, gerando preocupação no grupo de profissionais. Mas, para nossa surpresa, essa menina, à medida que se sentiu olhada, cuidada, pôde se expressar cada vez mais e, assim, criar voz no grupo.

Entretanto, ainda em muitos momentos parecia que o inferno dominava a sessão. Mas estes momentos se alternavam com outros de calmaria. Às vezes, era impressionante como as crianças ficavam agitadas na sala; ao final da sessão, porém, saíam silenciosas pelo corredor, como se tudo lá dentro tivesse corrido na maior paz. Somente uma vez um menino saiu bastante agitado, debatendo-se e precisando ser contido pelo monitor; mas na sessão seguinte retornou calmo e prosseguiu trabalhando. Pareciam desejar testar tudo até o limite do possível.

Pergunto-me com frequência: que lugar as histórias dos pacientes, suas dores e os infinitos desdobres primitivos ocupam em nosso inconsciente? Com certeza, utilizamos alguns filtros para nos proteger, mas a dor do primitivo em causa nos convoca a todo momento. Lacan (citado por Bassols et al., 1993) acentua que devemos cuidar para que os conceitos permaneçam solidários à experiência da qual procedem, até que a distância entre conceito e experiência desapareça. Como escutar a narrativa de um sujeito, fazendo eco à sua história, e ao mesmo tempo tentar articular uma compreensão dela?

La Sagna assinala que o inferno do trabalho que nossa prática exige "não poderá se dar sem 'um certo paraíso': aquele dos raros momentos de paz" (1993, p. 51). E isso vale, a meu ver, tanto para o analisante como para o analista.

Segundo Blanchot, os homens sempre tiveram alguma noção do inferno. Pressentiam que ali, onde se encontravam, "o inferno se oferecia. A danação não é um pensamento fácil de manipular" (2007, p. 144). Refere que alguém pode ser muito próximo a nós, muito íntimo, mas sem relação, porque as muralhas caíram, as que também separam,

as que servem também para transmitir os sinais, a linguagem das prisões. É preciso então novamente erguer um muro, pedir um pouco de indiferença, essa calma distante com a qual se equilibram as vidas. Desejo ingênuo que se forma depois de já se ter realizado [...] há apenas o deserto, mas este, e sua seca verdade e em sua presença árida, de repente nos é próximo, familiar, amigo (C. Blanchot, 2007, p. 141).

Convivemos com essas intensidades através da experiência transferencial. O que se apresenta ao analista é a transferência, que o coloca no não lugar e demanda que aceite a trama na qual cada paciente o envolve, com seus vaivéns intermináveis.

Isso requer algumas condições fundamentais. "Quando a análise se desenvolve, porque avança bem, o analista é requerido como presença" (Vegh, 2001, p. 47). Segundo Lacan, é a transferência a "mola do inconsciente" (1998, p. 244), e ela é sustentada pela presença do analista.

Diz Lacan, ao abordar a transferência: "pressupõe que um homem a sustente e que seja um homem real" (1998, p. 332). Tal presença irá favorecer a emergência do imaginário do sujeito, com todo o seu turbilhão pulsional a ser significado simbolicamente sempre que possível. Pênis voadores, manipulados, "má-nipulados", gerando angústia, excitação angustiante. Os embates corporais, não mais sendo um pênis que ataca, mas todo o corpo, a totalidade.

Não havendo sustentação para a transferência através da presença do analista, na melhor das hipóteses, aparece o acting out. Assim se dá no grupo quando, em uma sessão, a coterapeuta não pôde comparecer. Neste dia, além dela, mais duas crianças faltaram. Como consequência, um dos meninos se mostra muito agitado, agressivo, precisando ser contido durante a sessão e, ademais, conduzido na saída pelo monitor, conforme comentado antes. As ausências reais tornaram inoperante, naquele momento, a palavra.

Portanto, a presença do analista com uma escuta atenta é fundamental. Mas o que seria uma escuta atenta? Seria poder se manter dentro de uma postura em que "falar quer dizer". Para Lacan, não apenas o sentido do discurso depende de quem o escuta, como também é "de sua acolhida que depende quem o diz" (1998, p. 333, itálico do autor). Desde aí, fica claro o quanto a escuta analítica é revestida de responsabilidade, mas ainda deixa entrever como uma análise deve ser sustentada pelo dito. Ao analista não cabe se furtar à ideia de que o sujeito é constituído em seu discurso; cabe, sim, se distinguir por fazer, de uma função exercida por todos, um uso que não está ao alcance de todo mundo. E ele pode fazer isso simplesmente acolhendo a fala do outro num silêncio de escuta - quando se cala em vez de responder. Neste sentido, fala verdadeira pode ser muito diferente de discurso verdadeiro. Enquanto este último apresenta um compromisso com o conhecimento do real, a fala verdadeira tem a ver com o reconhecimento do ser pelo sujeito. E é sobre a base dessa fala que se apoia a escuta analítica. Por isso, segundo Lacan (1998), o analista deve aspirar a um domínio tal de sua fala de modo que ela seja idêntica a seu ser. Mas, de fato, poderia falar bem pouco ou quase nada para, no lugar, escutar. Assim, poderia esperar de um tratamento levado a termo restabelecer um sujeito com suas próprias palavras, por meio das quais reconhecesse a lei de seu próprio ser. Dessa forma, um tratamento dirigiria a cura dos sintomas no sentido de uma fala verdadeira que se passa entre sujeitos - numa análise convencional, entre dois sujeitos; no trabalho clínico aqui relatado, entre mais sujeitos.

Entra em jogo ainda um termo fundamental de todo tratamento: a função do corte, função que implica o término da sessão - a meu ver, independente de quaisquer modalidades de tempo, mas que apresente um limite de continuidade - e, por outro lado, o ato da interpretação. Aqui se insere algo que pode ser designado como o "lugar da falta" (Lacan, 2005, p. 159); seria o que permite ao sujeito apreender-se como falta, exigindo um luto pelas totalidades do narcisismo, na medida em que precisa dar-se conta de que existe para o analista uma outra pessoa para quem ele representa uma falta.

Claro está que, no caso de sujeitos marcados por faltas tão precoces e importantes como as crianças apresentadas neste artigo, a função de corte suscitará reações fortes em muitos momentos. Contudo, o contato com elas, mediante este tipo de trabalho, tem me convencido de que esta expectativa não é de modo algum matemática. Há variações significativas na construção da estrutura do sujeito - dependendo também de fatores sutis e incalculáveis -, nas quais entram relações com objetos de desejo, como o olhar e a voz, com todas as suas nuances evanescentes.

Por último, considero importante colocar algumas questões que o trabalho com estas crianças me suscitou: será somente no divã que se faz psicanálise? Ou psicanálise é um modo de pensar que pode resultar em outras formas de fazer valorizadas? Será que, ao separarmos o ouro puro de outros metais de menos valor (Freud, 1919/2010), não desconstituímos outros tipos de abordagens, talvez mais pertinentes para a realidade em que vivemos, e ficamos impedidos de pensar nosso fazer com liberdade? A psicanálise é considerada por alguns como uma prática burguesa e reacionária. Pensamos nestas críticas como alguma coisa da ordem do dito que merece uma escuta? Ou simplesmente seguimos como analistas surdos? Conseguimos nos mover nas nossas teorias e na nossa técnica sem nos sentirmos amarrados pelas cordas como Odisseu, para não ceder ao canto das sereias? Podemos nos interrogar.

 

Referências

Bassols, M. et al. (1993). Jacques Lacan e a transmissão da clínica psicanalítica. In F. Giroud et al. (Orgs.), Lacan, você conhece? Palestras do encontro Jacques Lacan (pp. 100-103). São Paulo: Cultura.         [ Links ]

Blanchot, M. (2007). A conversa infinita, 2: a experiência limite (J. Moura Jr., trad.). São Paulo: Escuta.         [ Links ]

Freud, S. (2010). Caminhos da terapia psicanalítica. In S. Freud, Obras completas (P. C. de Souza, trad., Vol. 14, pp. 279-292). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1919).         [ Links ]

La Sagna, Ph. (1993). Sim, mas como dizer? In F. Giroud et al. (Orgs.), Lacan, você conhece? Palestras do encontro Jacques Lacan (pp. 49-54). São Paulo: Cultura.         [ Links ]

Lacan, J. (1998). Escritos (V. Ribeiro, trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

Lacan, J. (2005). O seminário, livro 10: a angústia (V. Ribeiro, trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

Vegh, I. (2001). As intervenções do analista. Rio de janeiro: Cia. de Freud.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Maria Elizabeth Cimenti
Rua João Abott, 319/401
90430-130 Porto Alegre, RS
Tel: 51 3328-3790
bethcimenti@hotmail.com

Recebido em 30.5.2014
Aceito em 18.6.2014

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