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Revista Brasileira de Psicanálise

versión impresa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.48 no.2 São Paulo abr./jun. 2014

 

ARTIGOS TEMÁTICOS: INTERVENÇÕES EM PSICANÁLISE

 

Envoltório psíquico, envoltório onírico: a função do grupo na instituição Projetos Terapêuticos

 

Psychic envelope, oneiric envelope: the function of the group in the institution Projetos Terapêuticos

 

Envoltorio psíquico, envoltorio onírico: la función del grupo en la institución Projetos Terapêuticos

 

 

Cristina Parada FranchI; Rodrigo BlumII

IMembro filiado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, coordenadora do Núcleo de Transmissão e Pesquisa na instituição Projetos Terapêuticos
IIMembro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, coordenador de grupos na instituição Projetos Terapêuticos

Correspondência

 

 


RESUMO

Partindo da perspectiva teórico-clínica psicanalítica de que o grupo pode ser instrumento de intermediação paradoxal e fecundo no tratamento das psicoses, pretendemos neste artigo apresentar a clínica de grupos desenvolvida na instituição Projetos Terapêuticos. Para tanto, ao longo do texto, trabalharemos as ideias de Didier Anzieu e René Kaës sobre os envoltórios psíquicos e oníricos grupais, bem como sobre as funções constitutivas e reparadoras desses envoltórios para psiquismos em que os contornos são imprecisos ou fragmentados.

Palavras-chave: psicose; grupos; instituição; intermediário; projetos; envoltório psíquico; contrato narcísico; intervenção.


ABSTRACT

Starting from a clinical and theoretic psychoanalytical perspective that the group can be a paradoxical and fruitful instrument for intermediation in the treatment of psychoses, we intend to present in this work the clinic of groups developed in the institution Projetos Terapêuticos. To this end, throughout the text, we will develop the ideas of Didier Anzieu and René Kaës on the psychic and oneiric envelopes of the group, as well as on the constituent and repairing functions that the envelopes represent for psychisms where the contours are vague or fragmented.

Keywords: psychosis; groups; institution; intermediate; projects; psychic envelopes; narcissistic contract; intervention.


RESUMEN

A partir de la perspectiva teórico-clínica psicoanalítica de que el grupo puede ser instrumento de intermediación paradójico y fructífero en el tratamiento de las psicosis, en este trabajo nos proponemos presentar la clínica de grupos desarrollada en la institución Projetos Terapêuticos. Para ello, a lo largo del texto, trabajaremos las ideas de Didier Anzieu y René Kaës sobre las envolturas psíquicas y oníricas grupales, así como sobre sus funciones constituyentes y reparadoras para las psiques donde los contornos son vagos o fragmentados.

Palabras clave: psicosis; grupos; institución; intermediario; proyectos; envoltura psíquica; contrato narcisista; intervención.


 

 

Introdução

O material aqui elaborado pretende perseguir os rastros que temos deixado ao longo dos anos de trabalho na instituição Projetos Terapêuticos1 - instituição de tratamento para pessoas que passaram por crises psíquicas graves e buscam uma retomada de vida -, rastros que nos permitem ilustrar e embasar uma sustentação teórica, desde uma perspectiva psicanalítica, para nossa escolha de trabalhar com grupos. A escolha desta ferramenta na constituição de nossos dispositivos de ação não é aleatória, mas diretamente ligada ao tipo de sofrimento a que nossos pacientes estão submetidos - que exige que se estabeleçam ou restabeleçam as condições de um continente psíquico plurissubjetivo2, de modo que o grupo possa se revestir aos poucos de uma envoltura psíquica capaz de ser internalizada e, então, receber fantasias e objetos de identificação necessários à retomada de uma existência mais plena.

Na década de 1960, psicanalistas franceses, entre eles Didier Anzieu, reuniram-se para formar o Centro de Estudos Franceses para a Formação e Pesquisa a Respeito de Grupos, o Ceffrap, dedicado a pensar a prática com grupos sob o ponto de vista teórico da psicanálise. Na esteira das novas formulações teóricas sobre grupos que nasciam deste centro, René Kaës, na década de 1970, começa a esboçar suas ideias sobre uma metapsicologia dos grupos capaz de dialogar com a metapsicologia psicanalítica. Essa importante produção teórica traz novamente para o cenário da psicanálise a questão da grupalidade, que já fora desenvolvida por Freud nos textos sociais e ganha então maior visibilidade e aprofundamento com a prática e a teorização desses psicanalistas.

 

O grupo e as teorias

Fazendo uma pequena digressão sobre a teoria freudiana, Kaës (1999) nos ajudará a pensar os alicerces das teorias psicanalíticas de grupos, tendo como base três modelos freudianos fundamentais. De "Totem e tabu" (Freud, 1913/1990e) a "Moisés e a religião monoteísta" (Freud, 1939/1990c), Kaës nos convida a pensar os processos e formações psíquicas que estarão em jogo na passagem qualitativa do indivíduo à série e da série ao conjunto intersubjetivo organizado. Para ele, a hipótese de uma organização grupal da psique individual nasce em "Totem e tabu", quando a realidade psíquica própria do conjunto se desprende dos efeitos da aliança fraterna para matar o pai da horda primitiva. O consequente sentimento de culpa e a incorporação do pai assassinado, juntamente com o enunciado das proibições, tornarão possível a passagem da horda ao grupo instituído na cultura. A proibição do assassinato e a exogamia tornam possíveis os intercâmbios simbólicos. Será em "Psicologia das massas e análise do eu" (Freud, 1921/1990d) que se vai propor um segundo modelo do processo psíquico de agrupamento: aqui, o que estará em jogo será o papel decisivo das identificações na ordenação da estrutura libidinal dos vínculos intersubjetivos. Em "O mal-estar na cultura" (Freud, 1930/1990b), Freud propõe um terceiro modelo: o pacto de renúncia à realização direta dos fins pulsionais possibilita o amor e o desenvolvimento das obras da cultura. O narcisismo das pequenas diferenças delimita a pertinência, a identidade e a continuidade do conjunto; distingue cada grupo de qualquer outro. A comunidade que resulta deste pacto está fundada sobre o direito, garantindo a proteção e as obrigações obtidas em troca desta limitação.

Segundo Kaës (1999), estes enunciados contêm três hipóteses fundamentais: a hipótese de uma organização grupal da psique individual; a hipótese de que o grupo é o lugar de uma realidade psíquica específica; e a de que a realidade psíquica do grupo precede ao sujeito e à estrutura. Para o autor, a realidade psíquica grupal compõe-se por dois conceitos que se articulam: o de grupalidade psíquica e o de grupos internos. A grupalidade psíquica descreve uma organização e um funcionamento da psique, originários e constantes, em que esta estaria estruturalmente organizada como um grupo. O conceito de grupo interno especifica o de grupalidade psíquica: um grupo interno é uma configuração de vínculos intrapsíquicos entre pulsões e objetos, suas representações de palavra ou de coisa, e entre instâncias do aparelho psíquico, imagos ou personagens. Alguns exemplos de grupos internos seriam as redes identificatórias, as instâncias do aparelho psíquico, os sistemas de relação de objeto, a imagem corporal e a horda originária interna. Através destas configurações ou de seus derivados o sujeito se representa.

A hipótese de que a realidade psíquica do grupo precede ao sujeito e à estrutura nos leva a pensar que aqueles a quem tratamos estão marcados por falhas na constituição do si mesmo nos primórdios de sua diferenciação do objeto, já que se apresentam mergulhados em patologias vinculares e familiares que se desdobram na impossibilidade da vida social e dos vínculos culturais. Os poucos vínculos que conseguem manter são geralmente explosivos ou implosivos. A passagem do indivíduo à série e da série à cultura, à comunidade dos irmãos, seria o caminho da constituição de um envoltório psíquico capaz de fazer frente à rivalidade fraterna, aos sentimentos hostis e aos pensamentos assassinos que uns têm para com os outros. Entretanto, os estudos de Meltzer (1993) apontam para estados primitivos da psique cujos contornos imprecisos e fronteiras mal definidas criariam zonas indistintas entre o si mesmo e os outros.

Desde as primeiras trocas entre a mãe e o bebê, desde o projeto da maternidade, a mãe inscreve o infans em seu próprio narcisismo, funda-o em sua própria psique e no espaço psíquico da família. Aulagnier (1979) descreveu como "contrato narcísico" a formação de um espaço psíquico comum e compartilhado, sustentado por um apoio mútuo dos narcisismos na relação pais-filhos. Seguirá teorizando que o pictograma de união-rejeição - que caracteriza o processo originário - descreve o primeiríssimo acionamento da substância comum que reúne mãe e filho em um vínculo somatopsíquico compartilhado: o espaço seio-boca. O processo primário consecutivo é a fantasia do envoltório comum. O processo secundário se qualificaria no momento da separação, em que o pensar sobre esse espaço comum acontecesse, assim como o traço unário, que cria o "como um", também estaria fundado num vínculo anterior. Processos como esses prefigurariam e organizariam os espaços psíquicos nos conjuntos pluripsíquicos. Missenard afirma: "a psique comum é a parte de si mesmo de que a criança terá de se separar, em parte através dos sucessivos processos identificatórios que marcarão as grandes etapas do seu desenvolvimento" (1985, citado por Kaës, 2004, p. 58).

Em "Sobre o narcisismo: uma introdução" (Freud, 1914/1990a), Freud dirá que "sua majestade, o bebê" foi sonhado pela mãe quando estava em seu ventre, e já antes de se fixar ali, por ela, pelo pai e por todo o grupo familiar; o filho é sonhado como portador da esperança de realizar os sonhos de desejos irrealizados daqueles que o precederam e o geraram, apoiando, nestes, seu narcisismo primário. A mãe e todos os outros sonham o bebê imaginário, incluem-no em seus sonhos, atribuem-lhe um lugar. O psiquismo dele não está separado - está inscrito na organização onírica inconsciente do casal e da família. Será nessa organização que seu desenvolvimento afetivo, mental e relacional poderá ocorrer, segundo linhas de força e estrutura em parte preestabelecidas por seus sonhos comuns. As primeiras identificações, vínculos, ideais, mecanismos de defesa, pensamentos se apoiarão no que Kaës (2004) chamará de "berço onírico originário", lugar primeiro do espaço psíquico comum e posteriormente compartilhado. Continuará dizendo que serão as falhas que ocorrem nesse espaço e com os processos que o sustentam que farão os personagens de nosso enredo nos procurar.

Missenard (1985) indica que a chegada de um recém-nascido provoca movimentos regressivos nos membros de uma família, colocando-os em contato com as partes infantis de sua própria história e, sobretudo, com os mitos familiares nos quais estão representadas as figuras ancestrais e o lugar que os filhos devem ocupar na família. Conclui, em acordo com o que os estudos sobre a transmissão da vida psíquica entre as gerações confirmam, dizendo que o que não pôde ser representado na psique materna será deslocado para a psique da criança. Ruffiot (1981) dirá que, nas famílias com sintomatologia psicótica, o modo de existência predominante caracteriza-se pela tentativa de se libertar da corporeidade individual, de negar as diferenças sexuais e intergeracionais.

Kaës (2004) continuará dizendo que, se o sonho está ligado a essa organização psíquica inconsciente transmitida e compartilhada, abrem-se dois caminhos para a atividade onírica. Por um lado, pode-se supor que as inscrições que deixaram traços na psique do pai ou da mãe, mas que não puderam ser representadas e transformadas por um processo de simbolização primária, não poderão reaparecer nos sonhos da criança: esta não pode sonhar o que os pais não puderam transformar. Por outro lado, quando os pais - ou qualquer outro sujeito que cumpra uma função onírica em um espaço comum e compartilhado - podem transformar, por meio de seus sonhos, as inscrições que congelam a criança em uma cena mortífera, esta ganhará acesso a uma outra organização de seu espaço psíquico.

Anzieu (1966) defenderá a tese de que os sujeitos humanos vão a grupos da mesma maneira que, em seu sono, entram a sonhar. Acredita que o grupo pode constituir um objeto legítimo da investigação e da prática psicanalítica, abrindo caminho para o conhecimento da realidade psíquica e de seu objeto teórico: o inconsciente. A analogia que ele faz entre sonho e grupo seria uma nova via de acesso ao inconsciente; o grupo é outra cena da representação e de realização do desejo inconsciente. A cena intrapsíquica, onde o sonho é elaborado, se deslocaria para a cena do grupo, onde é representado. Kaës (1999) dirá que isso coloca em destaque duas ideias de Freud, abordadas em "Totem e tabu" (1913/1990e) e, sobretudo, em "Psicologia das massas e análise do eu" (1921/1990d). Uma delas é a de uma continuidade entre o espaço intrapsíquico e o que Kaës chama de espaços psíquicos comuns e compartilhados; a outra reforçaria a análise freudiana do estado de multidão ou de massa como formação coletiva onírica (hipnótica, diria Freud) regida pelos processos primários. Kaës considera, por retrospecção, que este seria o estatuto da horda primitiva: um sonho de grupo, transformado em mito, que trataria da questão da origem e da causa dos laços de grupo.

Anzieu (1975/1995) supõe que o grupo, como o sonho, é um aparelho de transformação psíquica; entretanto, para que o sonho seja produzido, é necessário que se conceba o espaço psíquico como um espaço tridimensional contornado. Da mesma maneira, para que uma cena onírica ocorra dentro de um grupo, será necessária a constituição de um espaço psíquico grupal comum e compartilhado. Para pensar essa constituição, Anzieu recorrerá ao conceito winnicottiano de espaço transicional, espaço em que se forma a ilusão da criança e que supõe uma experiência subjetiva e intersubjetiva de tolerância e confiança, em que coexistam, sem crise nem conflito, o dentro e o fora, o eu e o não eu, os outros e o si mesmo, o meu e o não meu, o já presente e o ainda não advindo - experiência da ilusão fundadora, de uma continuidade entre realidade psíquica e realidade externa, mas que também conterá o tempo da desilusão, que anunciará a diferenciação. O mesmo ocorrerá no espaço grupal: à medida que a experiência da ilusão for possível, o grupo será lugar de uma experiência prévia à simbolização e à diferenciação; a ilusão envolverá o grupo em uma membrana fértil, continente, protetora e filtrante, necessária para as aproximações com o mundo externo em seu trabalho de diferenciação. Este envoltório grupal traça um duplo limite, é uma fronteira entre o mundo interno e o mundo externo, entre o fora do grupo, em relação ao qual funciona como barreira de proteção, e o intragrupo, em que desempenha o papel de uma barreira de contenção. O envoltório do sonho também se caracteriza por essas funções, mas carrega em si uma função reparadora, de restauração da capacidade de sonhar, e uma função de filtro entre os restos diurnos produzidos no vínculo e os restos noturnos de cada sonhador, restituindo ao sonhador sua subjetividade no grupo. Poder-se-ia supor que, no grupo, o envoltório onírico sustentaria e repararia o envoltório grupal. Este será o envoltório necessário para que as cenas oníricas se produzam e para que sua figurabilidade comece a criar novas tessituras representacionais. Entretanto, a constituição de uma envoltura psíquica grupal é uma aquisição gradativa. A experiência que vamos relatar a seguir tem a intenção de ilustrar um pouco desse processo gradual.

 

A clínica de projetos

Às vésperas de começar um curso profissionalizante, Vicente nos interroga através de teorias que começara a tecer sobre as origens de sua doença; essas teorias giravam em torno de abusos que teria sofrido em sua infância por parte dos pais. Convidava-nos para "interpretações", ao mesmo tempo que nos submergia em um estado de paralisia e de desânimo tal que nos dava vontade de desistir de tudo. Sua posição desistente e oscilante nos colocava - e a ele também - seguidamente próximos das bordas. Os limites do dentro e do fora se apresentavam de forma crítica, tanto no âmbito individual como no grupal-institucional. Vicente dizia que talvez fosse o caso de voltar para a terapia individual; falou, em seguida, que sua mãe o tinha levado para uma entrevista com um psicanalista muito conceituado, que tinha sido muito bom, mas que era muito caro. Dali a uma semana, contou que sua mãe o levara para ver o mesmo curso profissionalizante, mas em uma instituição para deficientes mentais. O relato é povoado por termos como "mongoloides" e "débeis". O corpo está largado no sofá; os cigarros obturam os silêncios. Submersos nas teorias e no clima de desistência, parecíamos não encontrar palavras para falar do óbvio. Usar da franqueza e do bom senso era como ultrapassar uma parede de pedras. Conseguimos, enfim, dizer que ele estava com muito medo de começar o curso. Retomamos o já vivido; recontar a história era um alívio e embasava aquilo de que falávamos... Lembramos o outro curso que ele havia feito: tinha sido difícil chegar, perdia o ônibus, saía mais cedo, em uma das aulas vira outros rostos no da professora... Mesmo assim, conseguira frequentar oitenta por cento das aulas. Apontamos que aquilo tinha ocorrido bem no começo do tratamento, e que agora ele já estava circulando com muito mais autonomia pela cidade e entre as pessoas. Falamos que esse curso era uma escolha mais afinada com suas aptidões, além de ser um curso em que poria a "mão na massa" em vez de ficar sentado assistindo aula (coisa que já tínhamos identificado como algo que o assustava muito).

Percebemos que as palavras que poderiam dar sustentação e tessituras para a envoltura psíquica grupal tinham de estar inscritas nas experiências já vividas juntos, dentro do grupo; a mitologia interna poderia nos ajudar a lançar adiante e propiciar um fora menos aterrorizador, ajudar a sair do binômio gênio-demente trazido de casa e ir reinvestindo a rede representacional que vínhamos construindo ao longo do tempo, recontando as histórias que incluíam dificuldades, conquistas, acontecimentos compartilhados, sentimentos etc. Palavras que fossem criando intermediações para esse binômio eram o recurso de maior potência para suportar com maior flexibilidade os impactos da relação com o fora.

Kaës (1999) nos dirá que as funções de representação estão estreitamente associadas aos processos de simbolização e de pensamento; que uma dessas funções será criar autorrepresentações do grupo - inscritas nos contos, nos mitos, nas ideologias e utopias produzidas pelo discurso do grupo - para o grupo e para seus membros, proporcionando os marcos interpretativos da realidade para o conjunto do grupo.

Diz a fisiologia que o impacto é fundamental para o fortalecimento dos ossos, que os esportes de impacto previnem a osteoporose. Entretanto, as quedas podem ser fatais. O equilíbrio entre o acolhimento, o ato criativo e o lançar adiante é a medida mais difícil de ser encontrada por um corpo institucional na prevenção das quedas fatais, tanto para a equipe como para os pacientes e suas famílias. Percebíamos que Vicente precisava ser acolhido em suas teorias; era necessário algum tempo de continência dentro de nós, do grupo e da instituição. Entendíamos suas construções delirantes como um movimento criativo, como tentativas de dar conta de um excesso pulsional que transbordava, sem sentido.

Ao mesmo tempo, a pressão vinda de casa apontava para sua incapacidade de desgrudar-se do conhecido mundo das debilidades. O trabalho exigia a força e a delicadeza das situações constitutivas. Depois de algum tempo, conseguimos fazer um movimento institucional: fomos, dois terapeutas da instituição, conversar com o mestre do curso profissionalizante. A ideia era fazer um movimento de abertura de caminho no campo social. Encontramos na firmeza do mestre a certeza de que podíamos facilitar o caminho, mas o impacto do aprendizado Vicente teria de suportar sozinho. Essa saída para o mundo deu-nos força para usar de franqueza, com ele e com a família - aquilo que temos chamado de "parrésia" -, e lançar adiante o projeto que tinha germinado dentro do campo institucional. Na Grécia Antiga, "parrésia" significava o ato de dizer a verdade, de falar o que se pensa do outro, experiência de alteridade e franqueza; uma prática, instituída entre os valores éticos, de que a verdade tem seu valor e que não expressá-la comporta um risco; quando se fala para o outro sobre esse outro, o valor está justamente no falar, na marca da diferença.

A experiência de não existência é marcada pelo não reconhecimento no olhar do outro, e o descongelamento do verdadeiro self dá-se a partir de uma comunicação verdadeira. Temos observado que comunicações verdadeiras vão dando contorno ao grupo "pela pele do vizinho"; as experiências individuais são tomadas como modelo e passam a ser experimentadas pelos membros entre si.

Podemos pensar em um modelo de simultaneidade quando falamos de membrana psíquica: a experiência individual, inserida na grupal, que está inserida na institucional, que está inserida na social. Essas membranas interpenetram-se, fazem trocas e retroalimentações. Entretanto, sabemos que o sofrimento psíquico daqueles a quem tratamos está marcado por falhas primordiais; as membranas individuais são frágeis, muitas vezes protéticas, pouco permeáveis e se desfazem com facilidade ante os impactos da relação com o mundo. A experiência de não existência reverbera em simultaneidade dentro do grupo e da instituição.

O veículo de sustentação de uma possibilidade de existência ainda não experimentada será o projeto. É através de sua concepção que pensamos o lugar da continuidade e da constituição de um grupo. Até esse momento, a experiência que relatamos tratava de um indivíduo em um grupo. Melhor ainda, tratava de um agrupamento sem existência grupal. É no momento em que a instituição se abre e faz um investimento no territorio que o dentro e o fora começam a se delinear com mais clareza e os lugares passam a se estabelecer com maior potencialidade. Vicente deixa de ser um gênio em potencial, ou um "filho da mãe", para vir a ser aprendiz de marceneiro. Sua entrada no mundo do trabalho será o gérmen da constituição grupal. Essa experiência se multiplicará ao longo dos próximos meses.

Kaës afirma:

Pela origem de seu apoio e pela natureza de seus conteúdos, formados essencialmente de seus objetos e de seus processos de identificação, o Eu é grupo e, como grupo, é ainda fronteira, limite, filtro e barreira. A um só tempo ele é todos esses objetos e faz-se representar por alguns dentre eles, à sua imagem para um outro, ou para o Outro que nele olha, o observa, o admira ou o odeia. Enfim, o Eu é grupal por seu apoio na função primordial do agrupamento das pulsões e dos objetos desempenhados pelo Eu maternal, primeiro espelho do infans (1997, p. 146).

Faltando três meses para a conclusão do curso básico de marcenaria, Paulo traz para Vicente um cartão de uma marcenaria na Vila Madalena, na qual precisam de ajudantes. O projeto de Vicente deixa de ser exclusividade dele para se tornar objeto do grupo, e o grupo é tomado como espaço transicional, em que o teste da realidade, no confronto com os objetos externos, gera a ação criativa e a experiência do nascimento do Eu.

 

A clínica e o grupo

Passaremos agora a relatar um encontro do Grupo de Projetos - encontro que faz parte de uma grade da programação institucional composta por quatro grupos semanais e um grupo de pais quinzenal. Cadeia libidinal contida por um corpo institucional marcado originariamente pela representação de projeto - pro-jectare: lançar adiante. O campo onírico institucional carrega a continuidade como traço fundante e determinante na sustentação da ilusão necessária para esse tipo de trabalho.

 

27 de março de 2007

Tivemos um grupo como há muito não tínhamos: um grupo mais quieto, com menos gente e com certo ar de descanso; um grupo de conversas soltas, mais descompromissado, mas não menos interessante. Desde o início, o tema girou em torno das diferenças e do momento de cada um, de como é importante e complexo estar em um grupo, sobretudo quando o respeito às singularidades é ponto de partida para um estar coletivo.

Um pedido feito por Helena e uma dura intervenção de José marcaram quase todo o desenrolar da dinâmica grupal.

Fernanda diz que está gostando de estar em grupo, que isso vem lhe fazendo bem; tem podido organizar sua vida um pouco mais e, principalmente, pensar em como ganhar produtividade no que projeta. Entretanto, ainda assim, não sabe muito bem o que está fazendo no Projetos Terapêuticos. A ambivalência evidenciada por Fernanda aponta justamente para sua dificuldade de estabelecer um projeto. O grupo tem o papel de trazer essa dificuldade à tona ou, ainda, de ajudá-la na elaboração de um projeto viável e possível. Este é o principal objeto desse grupo e do programa desenvolvido na instituição Projetos Terapêuticos: construir coletivamente projetos terapêuticos, ou seja, estabelecer um plano de significações e conquistas capaz de construir um lugar subjetivo condizente com as possibilidades de cada pessoa.

José também começa o grupo manifestando interesse em fazer desse tempo algo mais proveitoso, algo que realmente o ajude a sair daqui.

Helena, então, diz que gostaria de sair na sexta-feira para comprar novelos para sua produção. Conta também que comprou um casaquinho, na sexta-feira anterior, para servir de modelo para futuras produções para uma loja. Nesse momento, José, muito incomodado, quase bravo, fala em tom ríspido:

- Por que temos que sair na sexta para comprar linha e agulha?Por que não se vai sozinho fazer esse tipo de coisa? Por que todo mundo precisa ir junto com alguém que quer algo totalmente individual?Assim não dá... Assim é melhor nem vir na sexta!

O clima pesa um pouco, Helena fica cabisbaixa, mas logo em seguida se inicia uma conversa bem interessante sobre o que significa a saída em grupo na sexta, sobre o que realmente incomoda José, sobre a sua falsa ideia de que pode e faz as coisas sozinho. Aparece a questão de sua carteirinha de ônibus, que ele disse que iria providenciar com o pai mas até agora não o fizera; aparece a diferença entre fazer algo para o outro ou com o outro; enfim, o tema/incômodo de José em sair para ajudar Helena no seu projeto rende uma conversa muito proveitosa para o grupo e, sobretudo, para ele, principalmente se pensarmos que conseguiu manifestar o incômodo e não se encolher e sumir do grupo. Fernanda e Lúcia também falam bastante sobre a importância de ajudar os outros nas saídas e sobre o sentido de estar em grupo.

O tempo passa em torno dessa conversa; outros assuntos entremeiam o "papo": piadas, queixas, ideias...

Paulo chega bastante atrasado. Está animado com uma novidade. Diz que vai ser aprendiz de mosaicista. Conta que esteve sábado, com a mãe, na feira da Vila e que acabou indo a um ateliê de mosaico. Nesse lugar, conheceu uma pessoa (parece que um dos donos) que lhe ofereceu um curso; porém, diante da dificuldade financeira manifestada pela mãe, a pessoa (Eduardo), que segundo Paulo "foi com a cara" dele, propôs-lhe um lugar de aprendiz. A partir da semana seguinte, às segundas-feiras pela manhã, Paulo passaria a ajudar no ateliê e a aprender sobre mosaico. Iria primeiro limpar peças, lixar, observar - enfim, seria um aprendiz. Eduardo enfatizou que seria bom começar devagar, uma vez por semana. Paulo estava inteiro, finalmente parecia ter encontrado uma boa medida, ou seja, passaria a ser um aprendiz.

O grupo ficou animado com a notícia e voltou ao início da conversa: a importância da saída em grupo na sexta-feira para que os projetos avancem.

No final do grupo, José se desculpa por ter sido um pouco agressivo nas palavras; ao mesmo tempo, demonstra seu interesse em sugerir algo próprio para uma saída, como se ele também pudesse se beneficiar da companhia dos outros, ainda que não seja um projeto tão definido como os de Helena ou Paulo. Fica claro, para ele, que é muito melhor vir ao grupo, expor o incômodo e, quem sabe, propor algo em vez de ficar em casa, encapsulado pela paranoia, e não aparecer mais.

Fomos para o café. Mauro fez questão de ir até a padaria e trazer um bolo de chocolate.

Nos relatos individuais, a experiência rica e potente do trabalho grupal se mostra viva. O relato escrito é a última parte do trabalho grupal. Nesse momento, o singular tem seu espaço reservado e o discurso oral dá lugar ao escrito. É quando cada paciente tem a oportunidade de relatar suas impressões, reflexões, sensações, lembranças e associações de forma mais individualizada e própria. O relato escrito é, ao mesmo tempo, fonte de singularidade e de coletivização. Ao término da escrita, cada paciente lê seu relato para todos, compartilhando impressões e elaborações com seus pares.

 

O grupo e a potencialidade

No início desse longo processo, o temor era que a carga mortífera de um grupo composto pela fragmentação e pelo sofrimento psíquico de seus integrantes pudesse desfazer a frágil membrana conquistada; passados dois anos de trabalho e investimento, percebemos que a intimidade grupal tornou-se uma verdadeira potência no acolhimento dos excessos pulsionais. Formar grupos, estar em grupos e sustentar o trabalho em grupos requer um grande investimento. Para dar sustentação ao trabalho grupal de encontro e confronto com a estranheza dos afetos e representações dissonantes ou mesmo ressonantes, é fundamental entendermos a importância do encontro plurissubjetivo. Ou seja, tomando a hipótese freudiana de que o inconsciente originário constitui-se da ruptura das paraexcitações, os participantes, ao estarem em grupo, vivem experiências de transbordamento e de falência no tocante à capacidade de associar os estímulos excitantes com representações. O intuito de estabelecer continência e acolhimento às experiências potencialmente chamadas de traumatogênicas provocará a necessária criação de espaços e dispositivos paraexcitadores. Portanto, será o aparelho grupal plurissubjetivo o campo de encontro potente e fértil para o jogo complexo de proteções e identificações recíprocas.

Kaës dirá:

Formar grupos e estar em grupos suscita uma tensão fundamental entre as exigências de contribuir para a unidade do grupo e para a manutenção do narcisismo grupal, e as do sujeito singular em seu desejo de ser um fim em si mesmo e de se diferenciar dos outros. É de se esperar que o sonho e o relato do sonho, produção pessoal, mas a partir daí compartilhável, acompanhem essa oscilação e mobilizem essa tensão (2004, p. 132).

O grupo, como espaço de trabalho e de criatividade, é aqui muito mais que um recurso técnico ou teórico. A grupalidade, na instituição Projetos Terapêuticos, possui um caráter vital tanto para os pacientes envolvidos com o programa de tratamento quanto para os terapeutas. Trabalhamos sempre em grupo e com grupos. Pensar na potencialidade criativa de um grupo é, antes de tudo, estabelecer um campo de ação vital e plural: vital na perspectiva de um espaço que possibilite as diferenças e as experimentações; plural no cruzamento de linhas e vias, em que a continuidade da existência é um precipitado resultante da fusão de lembranças de objetos passados com a representação de objetos presentes. Nesse sentido, o grupo é o lugar por excelência da figurabilidade e da representabilidade. A rede representacional é tecida na trama do projeto terapêutico. A costura de um projeto terapêutico dar-se-á, como vimos, na articulação dos planos individual e coletivo. O projeto será sempre regido no âmbito das representações, para além do desejo individual. A concepção de homem que estabelecemos, em nossa instituição e no trabalho que desenvolvemos, tem na imprevisibilidade humana seu motor de articulação e de produção de subjetividades. Apostando na coletividade e na sua potência criativa, construímos projetos terapêuticos. Conceber um projeto de vida é muito mais do que uma simples determinação de metas ou tarefas. Projeto é um vir a ser, um lugar transitório, um espaço de criação e um meio de intimidade. Criar um lugar diferenciado para o outro e respeitar o lugar subjetivo dos outros significa garantir uma passagem para o dentro e para o fora, um meio de experimentações, um grupo, uma continuidade da existência.

 

Referências

Anzieu, D. (1966). Etude psychanalytique des groupes réels. Les Temps Modernes, 242,56-73.         [ Links ]

Anzieu, D. (1995). O grupo e o inconsciente (A. Fuks & H. Gurovitz, trads.). São Paulo: Casa do Psicólogo. (Trabalho original publicado em 1975).         [ Links ]

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Recebido em 30.5.2014
Aceito em 11.6.2014

 

 

1 A instituição foi fundada no ano de 2000.
2 Conceito elaborado por René Kaës cuja ideia primordial é a experiência plural do face a face dos diversos sujeitos do grupo, que gera tensão e condições que se assemelham àquelas que concorrem para a formação do inconsciente originário, levando em consideração que, para Freud, o originário se constitui por ocasião da ruptura do paraexcitações (conceito este que será desenvolvido ao longo do texto).

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