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Revista Brasileira de Psicanálise

versión impresa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.48 no.2 São Paulo abr./jun. 2014

 

ARTIGOS

 

Sobre o humor na comunicação entre analista e analisando

 

On humor in the communication between analyst and analysand

 

Acerca del humor en la comunicación entre analista y paciente

 

 

Antonio Luiz Serpa PessanhaI; Maria Lúcia Castilho RomeraII; Marcelo Moraes ForonesIII

IMembro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)
IIMembro associado da SBPSP e professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia (UFU)
IIIPsicanalista pelo Instituto Sedes Sapientiae, São Paulo

Correspondência

 

 


RESUMO

Neste artigo, os autores procuram investigar nuances do humor na experiência clínica psicanalítica. Descrevem algumas das situações vivenciadas pelo analista no seu cotidiano em que, não raro, frente a certos disparates engendrados pelo inconsciente, se depara com o "só rindo". Compartilham algumas experiências que contribuíram para a percepção do humor como uma ferramenta capaz de favorecer a liberdade mental do analista em seu ofício. Apoiados em modelos extraídos da música e da poesia, interligados a elementos da metapsicologia freudiana, buscam expressar aquilo que apreenderam como função e lugar do humor na constituição de uma parceria analítica. Neste sentido, viram favorecidos elos entre o vasto mundo teórico e as peculiaridades da história dos membros da dupla, contribuindo para a retomada da produção de conhecimento pessoal e progresso interior de cada um e, portanto, da psicanálise.

Palavras-chave: psicanálise; humor; relação analítica; liberdade mental.


ABSTRACT

In this paper, the authors seek to investigate nuances of humor in the psychoanalytic experience. They describe some of the situations experienced by the analyst in his daily work in which, not infrequently, facing certain nonsenses engendered by the unconscious, he deals with the concept that "laughter is the only solution". They share some experiences which point to the perception of humor as a tool for the promotion of mental freedom of the analyst in performing his craft. Supported by some models extracted from music and poetry, connected with elements of Freudian metapsychology, they try to express what they learned about the function and the place of humor in the development of the analytical partnership. In this sense, they found favored links between the wide theoretical world and the peculiarities of the history of the members of the duo, allowing the resumption of the production of personal knowledge, of individual inner progress and, therefore, of psychoanalysis.

Keywords: psychoanalysis; humor; analytical relationship; mental freedom.


RESUMEN

En este artículo, los autores tratan de investigar los matices del humor en la experiencia psicoanalítica. Describen algunas de las situaciones vividas por el analista en su actividad diaria cuando, no pocas veces, ante ciertos absurdos generados por el inconsciente, se encuentra con el "solo riendo". Comparten algunas experiencias que fomentaron la percepción del humor como una herramienta capaz de favorecer la libertad mental del analista en su actividad. Modelos extraídos de la música y la poesía, entrelazados con los elementos de la metapsicología freudiana, tratan de expresar lo que aprendieron de la función y el lugar del humor en la formación de una colaboración analítica. En este sentido, vieron favorecidos los vínculos entre el amplio mundo teórico y las peculiaridades de la historia de los miembros del par, lo que permite la producción de conocimiento personal y el progreso interior de cada uno y, por lo tanto, del psicoanálisis.

Palabras clave: psicoanálisis; humor; relación analítica; libertad mental.


 

 

Fellow-citizens, we cannot escape history.
(Abraham Lincoln)

Este artigo é a versão escrita da apresentação oral, em forma de painel, feita no Congresso da Federação Psicanalítica da América Latina - Fepal, em São Paulo, no ano de 2012. Seus autores reuniram-se em torno de algumas experiências compartilhadas em seu histórico pessoal: a presença de traços de humor em suas personalidades, a hesitação em exprimir tais elementos no âmbito analítico durante os primeiros anos de trabalho e a posterior constatação de sua iniludível utilidade no lidar com diversas configurações clínicas. Perceberam no humor uma ferramenta capaz de favorecer a liberdade mental do analista em seu ofício e um dos possíveis elos entre o vasto mundo teórico e as peculiaridades da história dos membros da dupla analítica, de modo a incrementar sua criatividade e seu sentido de parceria, que contribuem para a retomada da produção de conhecimento pessoal e progresso interior.

 

Fontes inspiradoras

Baseamos nossas considerações em três fontes. A primeira não consiste em novidade para nenhum analista: é o absurdo característico do sonho que permeia qualquer sessão. O absurdo propulsiona certo clima que mistura, como em diversos idiomas, ações de brincar, representar e jogar, reunidos naquilo que São Tomás de Aquino considerou necessário para a conversa (e para a vida) humana - ludus.1

A segunda fonte provém de uma conhecida carta enviada por Freud ao pastor e discípulo Oskar Pfister em 5 de junho de 1910:

Ora, essas coisas psicanalíticas só são compreensíveis se forem relativamente completas e detalhadas, exatamente como a própria análise só funciona se o paciente descer das abstrações substitutivas até os ínfimos detalhes. Disso resulta que a discrição é incompatível com uma boa exposição sobre a psicanálise. É preciso ser sem escrúpulos, expor-se, arriscar-se, trair-se, comportar-se como o artista que compra tintas com o dinheiro da casa e queima os móveis para que o modelo não sinta frio. Sem alguma dessas ações criminosas, não se pode fazer nada direito (Freud & Pfister, 1998, pp. 53-57, itálicos nossos).

O tom desafiador e provocativo desse comentário remete-nos à irreverência, à inconse-quência, à espontaneidade e ao improviso como condições facilitadoras do trabalho analítico.

A terceira e decisiva inspiração para nosso artigo é uma outra carta, esta enviada por François Roustang (1984) para uma revista brasileira. Nela, o analista francês sugere, com óbvia dose de humor, que talvez tenha descoberto o "segredo da analisabilidade". Este seria a capacidade que o eventual cliente revela para não se levar sempre tão a sério, e até rir de si próprio uma vez ou outra, como - diz o autor - percebemos que os judeus fazem em suas famosas piadas.

Tais estímulos uniram-se à nossa adesão ao conceito de relações objetais. Ativas desde os primórdios da vida, elas são tão importantes na estrutura e na organização da personalidade que, em certas ocasiões, testemunhamos em nossos clientes uma verdadeira assem-bleia desses objetos internos, em tudo similares a turbulentas reuniões de condomínio, cujo resultado oscila entre drama e comédia.

Ora, nessas "reuniões de família" internas de cada cliente, sempre pode aparecer alguém bem-humorado, algum membro brincalhão e gozador. As evocações dessas figuras introjetadas despertam frequentemente reações de acolhimento. Isto pode servir como ponto de partida para harmonizar a pobreza, a tristeza, a alegria, o heroísmo, a dor e os mitos que caracterizam a infância normal e brotarão com diversos graus de turbulência no decorrer da análise.

Por isso o uso da técnica requer do analista espontaneidade e flexibilidade, sem perda da seriedade no comunicar conhecimento, evitando a fala formal, engessada e excessivamente sisuda. A comunicação pode ser despida de dogmatismo, traduzida numa espécie de saber com sabor, ou seja, com humor. Assim, a palavra readquire seu sentido original de fluido maleável e capaz de favorecer o trânsito da alegria à tristeza, da tragédia à comédia.

A relação analítica, como se sabe, é apenas um novo convívio no qual o analisando tende a reencontrar os objetos internos com que convive desde os primeiros momentos de vida. O resultado desse convívio depende menos de intenções curativas2 e mais da escuta paciente. Nela, a arte do analista aproxima-se do inventor, que compõe novos objetos com material antigo, ou do ator, que busca as emoções escondidas na plateia. Isso faz da psicanálise um ofício que nos obriga a colocar em relação harmônica o ser analista com o ser do analista. Nossa experiência sugeriu como o humor pode ser vital no enfrentamento desse desafio cotidiano.

 

Considerações metapsicológicas

Freud escreveu "Os chistes e sua relação com o inconsciente" (1905/1969a) concomitantemente aos "Três ensaios sobre a sexualidade". Ele andava colecionando anedotas de judeus e várias vezes citou-as para exemplificar ou para demonstrar a existência do inconsciente. Havia evidências de que esse assunto já estava em sua mente desde os seus escritos sobre A interpretação dos sonhos, e que isso lhe fora apontado por Fliess. A obra de Theodor Lipps, estudioso de psicologia e estética a quem se atribui a introdução do termo empatia na psicologia, muito influenciou ou motivou Freud a escrever sobre os chistes.

Todo trabalho ou texto que é vivificado pela linguagem dá um sério problema para a tradução. Ainda mais os chistes, pois neles o sentido advém da familiaridade com a linguagem comum. Contar piadas ou "causos" toca fundo na cultura (na raiz coletiva) e no âmbito individual (nos objetos internos). Neste sentido, o riso e o cômico se transformam num dispositivo de resistência ao duplo desenraizamento de que somos frequentemente vítimas no mundo hoje.

Há inúmeras considerações acerca do termo alemão Witz, que no sentido amplo significa "espirituosidade", mas traduz-se também por "engraçado", "espirituoso" e "estranho". Na tradução inglesa, joke remete à imagem. Vemos, portanto, perspectivas bem distintas fundadas na diversidade cultural.

Freud definiu Witz, ancorado no citado Lipps e em vários outros autores, como

"algo cômico de um ponto de vista inteiramente subjetivo", isto é, "algo que nós produzimos que se liga à nossa atitude como tal, e diante do que mantemos sempre uma relação de sujeito, nunca de objeto, nem mesmo objeto voluntário" (1905/1969a, p. 21).

O texto sobre o chiste não teve o peso dos demais escritos à época. Nas "Conferências introdutórias" (1916-17), Freud chega a dizer que o teria desviado temporariamente de seu caminho. Em "Um estudo autobiográfico" (1925), refere-se a ele de modo levemente depreciativo. Já em 1927, escreve "O humor", um breve artigo em que retoma esta temática.

A localização do artigo de 1927 no conjunto das Obras completas é muito interessante: fica entre aqueles que tratam principalmente de arte, literatura ou teoria da estética, tipos libidinais e sexualidade feminina. Nele, Freud utilizou sua concepção estrutural da mente, recentemente proposta, para lançar nova luz sobre este (considerado) obscuro problema.

Para compreender a gênese da produção do prazer humorístico, sugere que é o movimento de quebra de expectativa e, consequentemente, de economia de energia que dá origem a ele. Neste sentido, quando alguém é colocado em situação constrangedora, no lugar de expressar o ódio, experimentado sob forma de violência, produz uma piada ou chiste. Esta economia resulta em prazer humorístico no ouvinte, entendido como alguém perante o qual um outro produz humor. O processo em um afeta o outro. Tal forma específica do que poderíamos considerar coincidência é abordada por Freud nesse mesmo texto: "o processo no ouvinte deve ter copiado o do humorista". E ainda pondera: "Evidentemente a solução do problema deve ser buscada no humorista; no ouvinte, temos de supor que existe apenas um eco, uma cópia, desse processo desconhecido" (1927/1969b, p. 190).

Sendo assim, espectador e humorista compartilham da experiência de poupar o afeto que a situação, naturalmente, criaria. Mas como o humorista ocasiona a atitude mental que torna supérflua a liberação de afeto? Qual é a dinâmica de sua adoção da atitude humorística? As respostas começam com algumas de suas características fundamentais.

Além de seu dom liberador (como o chiste e o cômico), o humor possui traços de grandeza e elevação (que faltam aos já citados). Tal grandeza, para Freud, reside no triunfo do narcisismo, na afirmação vitoriosa da invulnerabilidade do ego. O ego se recusa a ser afligido e enfrenta altivamente os traumas do mundo externo transformando-os em ocasiões para obter prazer. E conclui sabiamente: "O humor não é resignado, mas rebelde" (1927/1969b, p. 191, itálico nosso).3

Há triunfo do ego e do princípio do prazer, que pode aqui se afirmar contra a crueldade das circunstâncias reais. Estas duas características - rejeição das reivindicações da realidade e efetivação do princípio do prazer - aproximam o humor dos processos regressivos ou reativos típicos da psicopatologia, desde a neurose até a loucura. No entanto, na atitude humorística os limites da saúde mental não são ultrapassados. Por quê? Freud cita a dinâmica de investimento e desinvestimento das estruturas psíquicas, particularmente entre ego e superego. Entende que o humorista comporta-se como o adulto frente à criança, "quando identifica e sorri da trivialidade dos interesses e sofrimentos que parecem tão grandes a esta última" (1927/1969b, p. 191).

Portanto, a atitude humorística retira a ênfase psíquica do ego, transportando-a para o superego. "Para o superego, assim inflado, o ego pode parecer minúsculo e, com essa nova distribuição de energia, pode tornar-se coisa fácil para o superego reprimir as possibilidades de reação do ego" (p. 192). Dentro desta estrutura é que se dribla o engessamento do ego grandalhão, todo poderoso e que, para manter-se nessa idealização, pode chegar até o sintoma ("se não amolece, adoece").

Freud atribui, desse modo, novas funções ao superego: não só o amo severo, mas o amoroso afável (brincalhão), concedendo um certo prazer ao sofrido ego que, mediante o reconhecimento afetuoso de sua pequenez, pode prescindir de violências como ataques ao vínculo, ao pensamento e ao corpo, implicados em todo transtorno mental. E continua: "Entretanto (sem saber exatamente por que), encaramos este prazer menos intenso como possuindo um caráter de valor muito alto, sentimos que ele é especialmente liberador e enobrecedor" (1927/1969b, p. 194). Conclui dizendo haver muito a aprender sobre a natureza do superego e sua função de agente paterno consolador através de fenômenos como o humor.4

A seguir, apresentamos dois relatos que podem ajudar a visualização desses aportes teóricos na clínica psicanalítica.

 

Exemplos clínicos

Três divãs ou dois em um

Era um tempo do meio do dia. Exatamente às doze horas combináramos nosso encontro. Ela tinha reservas em relação a esse horário, mas já me acostumara, pelo menos um pouco, com as reservas a quase tudo da senhora Amargura. Talvez seja este nome, fictício, o mais real ou o que chega mais próximo do real desta pessoa, que está comigo há uns bons três anos. Eu saíra do consultório um pouco antes do horário a ela destinado, para fazer alguma coisa. Ao voltar, saindo do elevador, vejo-a aflita vindo em minha direção: "Eu estava te ligando, pois toquei, toquei o porteiro eletrônico, bati na porta e nada! Eu já cheguei em cima da hora! Mas você me desculpe, é que..." Fomos caminhando pelo corredor, ela balbuciando algo e eu pegando as chaves, até que entramos no consultório ou... na nossa caverna encantada e, às vezes, assustadora! Ela então disse: "Ai, Maria Lúcia, você me desculpe esse jeito, mas é que estou com tanta, tanta coisa... difícil..." e eu completei: "Que não cabe no divã?". Ela riu e eu também, enquanto pedi que aguardasse mais um pouquinho na sala de espera que eu a chamaria para entrar.

Enquanto acomodava as coisas em minha sala, me peguei pensando de forma brincalhona que iria precisar de um divã muito maior para caber tanta coisa, inclusive a fúria para comigo por aquilo que, para mim, não seria um atraso, mas uma quase pontualidade britânica à brasileira. Ela entrou e, antes de se deitar no divã, me disse:

Ai, Maria Lúcia, você falou isso de não caber no divã, mas é que eu vinha pensando que tenho três coisas importantíssimas para tratar aqui e nem sei por onde começar, porque não dá tempo de tudo: minha mãe e eu; meu amigo - ou sei lá o que o Serafim é meu; além de eu comigo mesma. Aí o tempo meio apertado e você meio atrasada... Acho que nem estava atrasada... Mas, ai, meu Deus, é tanta coisa!!

Então eu disse a ela: "Acho que foi um atraso pequenino. Não deu nem tempo de eu providenciar três divãs, e então vamos ter de nos virar com um só mesmo!" Ela riu e falou: "Vamos tentar, né?" Havia uma tensão entre nós, mas o clima de transbordamento se atenuara; ela gaguejava, demonstrando não saber ainda o que fazer ou qual caminho tomar. Eu aguardei um pouco, ainda pensando nos três divãs.

Senhora Amargura está com quase 60 anos de idade. Perdeu o pai recentemente, depois de uns seis meses de batalha contra uma doença avassaladora. Ela não se casou, a não ser com o seu trabalho, ao qual se dedica de forma, por assim dizer, exaustiva. Mora sozinha. Seus pais e irmãos estão em outra cidade, bem pequena e muito distante desta em que vive. Teve um amante, ou amigo - ou "namorante", como prefere dizer em muitos momentos (cog-nominado por mim de Serafim) - por uns vinte anos; um homem casado, que vinha de vez em quando vê-la. Construiu uma espécie de gaiola em torno de si mesma. Contou-me certa vez de uma foto que tirara de duas amigas de infância que foram lanchar em sua casa. Na foto, as duas apareciam sentadas no sofá, mas com os pés para fora do tapete, em um esforço muito grande para não sujá-lo. Com a doença do pai, teve de experimentar os arranhões próprios da intimidade com os irmãos, os pais e os funcionários que com eles trabalhavam; teve de sair do seu lugar, ocupar novos e exigentes espaços, ou seja, despregar-se de si mesma.

Fabio Herrmann, tratando da onipotência e da eternização do eu, constata que "a onipotência transforma o universo numa prisão de que o eu, como um deus solitário, é único prisioneiro" (1999, p. 71).

Nesta sessão dos três divãs, o transcurso da conversa foi na direção do não saber o que fazer com a mãe, que atualmente encontra-se em sua casa. Acha que a presença da mãe a afasta de seu "namorante", o qual insiste em lhe dizer nutrir por ela somente uma amizade - algo que ela insiste peremptoriamente em recusar. Vive numa espécie de alucinose e monta diferentes estratagemas ou arapucas de sedução para depois, em vista da frustração, lamentar-se ou amargar-se de sua vida. Em um dado momento, ponderei com ela sobre o sentimento de estar espremida em meio ao amigo-namorado, a mãe, o pai morto, os irmãos, as empregadas - e agora todos entrando em sua vida-casa, sem que ela soubesse como fazer para recebê-los. Ela se contrapôs dizendo que fazia de tudo, mas que as coisas não ficavam nos seus lugares. Coloquei para ela que o trânsito por esse universo me parecia enorme e não havia como as coisas ficarem nos seus devidos lugares; acrescentei que, apesar de serem três coisas que ela apontara no início da sessão, talvez nós pudéssemos acomodá-las em uma única, que seria: como dividir o espaço da sua habitação, ou do seu coração. Ao final, já informada de que o tempo terminara, me disse:

Enquanto você falava, eu pensei que, como você sabe, já há muito tempo faço refeiçõesfora de casa - com frequência, o McDonald's, com sua funcionalidade, é o ideal para mim; como aquele sanduíche de três andares. Mas acho que vou ter de aprender a saborear a lata do dois em um, marmelada e goiabada, que minha mãe sempre colocava como sobremesa.

Eu lhe disse: "Dois em um". E ela acrescentou: "Quem sabe arranjo o queijo".

Acredito que um outro nome fictício para minha paciente poderia insinuar-se a partir dessa espécie de atropelo que nos tomou desde o início da sessão: de senhora Amargura para senhora Amarcura; não qualquer forma de amor, mas uma particular, inspirada na poesia de Oswald de Andrade (1974, p. 157):

Amor

Humor.

 

A carta-bomba

A sessão aconteceu num dia de inverno, nublado e frio, em horário cedo o suficiente para me fazer acender as luzes do consultório e para não se ouvir o rumor matinal das ruas. A cliente chega quase sem atraso e, quando me dirijo à porta da sala, vejo que traz na mão esquerda algo que lembra (e de fato era) um envelope. O braço vem quase imóvel e distante do corpo, como se na mão carregasse algo perigoso ou repulsivo. Nessa posição, ela me cumprimenta com o semblante mais carregado que o céu daquela manhã e dirige-se imediatamente para o divã.

Tinha 36 anos nessa ocasião. Era casada, com um filho e uma relação conjugal sem maiores conflitos. Procurara-me logo após retornar do exterior, onde residira por quatro anos e trabalhara no mercado econômico em atividade de relevo, conforme sempre sonhara. Quis fazer análise porque, desde que partira para o estrangeiro, ingressou numa longa sequência de sintomas físicos de causas jamais identificadas e efeitos que comprometiam seu bem-estar. Até aquele momento, trabalhávamos com três sessões semanais havia já dois anos.

Suas sessões eram literalmente ocupadas pelas histórias com o pai, descrito como obeso, lamuriento e interesseiro. Não trabalhava há tempos devido a uma saúde que só ele considerava precária. Por conta disso, a todo instante solicitava auxílio financeiro em grau visivelmente superior às suas reais necessidades. Ela escapava como podia, para ser invariavelmente tachada de "filha ingrata". Falava do pai com hostilidade; nele parecia ver somente o lado persecutório e voraz que não conseguia reconhecer em si própria.

Nem bem se deitou no divã, ergueu o envelope, certificando-se de que eu não teria como não vê-lo, e disse:

Recebi esta carta ontem. É do meu pai!5 Passei o dia todo tão nervosa que não tive coragem de abrir. Aí tive uma ideia e falei para o Fulano (o marido): "E se eu abrisse lá no Marcelo?". Aí ele disse: "Isso mesmo! Ótima ideia! Não abra aqui; abra lá no Marcelo." Aí eu trouxe a carta. Posso abrir?

Respondi:

Então é carta-bomba! Se você trouxe para abrir aqui, um lugar seguro, quem sabe até asséptico - e eu de máscara, com uma daquelas capas de segurança antirradioativas, quem sabe acionando um robozinho para abrir uma carta do seu pai - , então só pode ser isso: é carta-bomba!

Minha intervenção correspondeu ipsis litteris ao clima emocional das associações despertadas em mim pela cliente, seus gestos, suas palavras, somados ao dia escuro e ao nosso isolamento naquele instante. Emergiu de minha memória uma sensação de perigo e solidão idêntica à dos plantões em que, vez por outra, via-me deixado pela enfermagem do hospital psiquiátrico, a portas fechadas com pacientes em agitação psicomotora. Ao mesmo tempo, tudo parecia excessivo, como num filme de espionagem cujo desfecho inofensivo, depois das peripécias de praxe, qualquer espectador é capaz de antecipar.

A interpretação despertou nela um riso discreto e palavras de assentimento. Alegou sentir-se, de fato, mais segura lendo a carta na minha presença, como se eu garantisse a pronta elaboração de qualquer angústia que acaso aparecesse. Isso criava uma deixa para mencionar a voracidade e a incontinência dela própria, bastante similar à do pai. Conversamos um pouco sobre esses temas sem maior profundidade - seria mesmo esperar demais que todo esse material fosse elaborado numa sessão como aquela. De modo que passamos à leitura da carta-bomba.

A decepção foi grande. Dali não saiu nada de assustador. Era um longo monólogo autobiográfico do pai, missivista de baixa categoria, sublinhando os infortúnios que justificariam, segundo ele, mais uma doação pecuniária. Ao terminar, a cliente comentou, num tom agridoce, como temera tanto algo que agora parecia tão pequeno. A bomba não passava de um traque. Pensei em dizer-lhe: "E avanti a lui tremava tutta Roma!"6, mas ela não entendia de ópera e acabamos encerrando aquela sessão.

Tempos depois, enquanto ela falava sobre o pai, ocorreu-me que devia fazer uns meses que ele não comparecia às nossas sessões. De fato, eles não se tornaram um modelo de bom relacionamento, mas aquela espécie de Falstaff, obeso, voraz eachacado, começara afinal a pesar menos dolorosamente sobre o corpo e a alma da cliente - creio - desde nossa conversa sobre a carta-bomba.

 

Comentários finais

Qualquer analista, no seu ofício cotidiano de escuta, não raro, frente a certos disparates engendrados pelo inconsciente, se depara com o "só rindo", ou seja, situações que nos remetem ao primeiro chiste narrado por Freud em sua coletânea - o condenado, numa manhã de segunda-feira, é levado pelas ruas rumo ao patíbulo e pensa consigo: "Bela maneira de começar a semana..." (1905/1969a, p. 126).

Tal condição pode circunscrever uma posição de ruptura. A interpretação psicanalítica torna-se possível mediante uma postura metodológica interrogante e interpretante - e consequentemente disruptiva: ali, onde algo era, já não é mais. E o que é? Já é outra coisa que se esvai, apreende e solta, fugaz. O saber é fugaz (ao contrário do que se imagina). Entretanto, é justamente de sua fluidez que advém a solidez da sabedoria. Então poderiamos dizer que, no "só rindo", a relação com o outro se estabelece em pacto de captura e ruptura, relativizando infinitamente a linearidade. Parece tratar-se de uma espécie de diagonalização do tempo e do espaço. A diagonal insinua a dúvida, a inquietação; indica movimento e nos movimenta. Uma das fortes inspirações para tal apreensão vem de uma ideia de Fabio Herrmann: "os conceitos teóricos da psicanálise valem, principalmente, como formas de pôr em movimento nossa descoberta do desconhecimento essencial à vida psíquica dos homens, o inconsciente" (1999, p. 187).

Os analistas tendem a discorrer teoricamente sobre o humor, investigá-lo, conhecer seus segredos, porém não costumam considerá-lo como parte de sua prática clínica. Nós mesmos, como dissemos no começo deste artigo, mantivemos o humor por muito tempo restrito à nossa história pessoal e aos momentos de lazer. Raramente ele entrava no setting. Caso escapasse, era considerado como atuação de algum resto de imaturidade a ser elaborado em diversas sublimações.

A seu tempo, cada um de nós acabou percebendo que essa aspiração a uma postura profissional séria (na verdade sisuda) e idealizada desnaturava nossa história pessoal e nos transformava em analistas anódinos, impessoais, distantes e quase omissos frente ao cortejo emocional que os clientes perfilavam. Arriscávamos a construção de uma espécie de falso self analítico, afastado de nossas origens e incapaz de qualquer eficácia clínica.

A experiência clínica não demorou a corrigir nossas expectativas. O humor não era apenas uma faceta importante de nossos objetos internos; ele era também uma ferramenta de trabalho útil e eficiente no lidar com a rigidez de configurações narcísicas, o pânico frente aos objetos persecutórios, certas preconcepções tidas como indiscutíveis e outras situações clínicas que podem congestionar o mundo mental por sessões a fio.

É bom dizer que o humor a que nos referimos não precisa estar presente o tempo todo nem manifestar-se em gracejos ou atitudes cômicas cuja inadequação dispensa comentários. Trata-se de uma disposição interior do analista, similar àquela mencionada por Roustang em sua carta. Tal disposição pode emergir conforme o necessário e mostrar-se de várias formas, de acordo com os exemplos expostos. O analista ocupado pelo humor (e aqui entendemos o termo ocupar no sentido de Besetzung, sugerido por Freud) adquire a liberdade imprescindível para escutar e abordar as questões emocionais com que se depara cotidianamente.

O elemento surpresa também deve ser considerado. O riso se impõe, por assim dizer. Descobrimos com ele, ou através de sua expressividade em nós, que o outro existe, pois a toda hora ele nos desbanca. Claro que há o riso defensivo (que talvez devesse ter outro nome; algo que lembrasse um afeto metralhado, estereotipado). Já o "só rindo" não possibilita qualquer engano (salvo o da Monalisa?), pois se institui a partir de uma leveza ímpar frente ao peso natural da vida.

Ao saber que o tema do Congresso da Fepal de 2012 seria "Invenção - Tradição", um dos autores deste artigo, apaixonado por música, fez uma associação quase instantânea com as Invenções em duas e três partes, que Bach escreveu ao longo de três anos e que chamou de método aufrichtige - "sincero", "honesto" (Leisinger, 2002). Tentou convencer seus outros dois colegas a aceitar que o título do trabalho para aquele Congresso aludisse à obra bachiana, argumentando que qualquer atividade duradoura e digna daqueles adjetivos pode associar-se ao nosso ofício e suas duas partes habituais, analista e cliente. Além disso, o contraponto, arte que Bach desenvolveu ao clímax que se conhece, também pode servir de metáfora para a arte do analista, cujas palavras se contrapõem ao discurso do analisando e criam novas possibilidades de harmonia com seus aspectos desconhecidos e rejeitados.7

O argumento, então, foi aceito. Afinal, as palavras, a música e o humor são criações humanas exclusivas em relação a outras espécies; são produzidos continuamente e vivem em suspensão, quase invisíveis, cabendo a alguns espíritos sensíveis - e cremos que os analistas estão entre eles - a função de apontá-los e usá-los com proveito, em benefício próprio e alheio. São como o sertão de Riobaldo: estão em toda parte.

 

Referências

Andrade, O. de (1974). Primeiro caderno de poesias do aluno Oswald de Andrade. In O. de Andrade, Obras completas de Oswald de Andrade (p. 157). São Paulo: Globo; Secretaria de Estado da Cultura.         [ Links ]

Freud, S. (1969a). Os chistes e sua relação com o inconsciente. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 7, pp. 13-207). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1905).         [ Links ]

Freud, S. (1969b). O humor. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 21, pp. 188-194). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1927).         [ Links ]

Freud, S & Pfister, O. (1998). Cartas entre Freud e Pfister (1909-1939) (K. H. K. Wondracek & D. Junge, trad.) Viçosa: Ultimato.         [ Links ]

Herrmann, F. (1999). O Eu no fígado da pedra. In F. Herrmann, A Psique e o Eu (pp. 43-143). São Paulo: Hépsyqué         [ Links ].

Leisinger, U. (Ed.). (2002). Bach in Leipzig - Bach und Leipzig. Hildesheim; New York: Olms.         [ Links ]

Rosenbaum, Y. (2012). Invenção e memória na antropofagia oswaldiana. Revista Brasileira de Psicanálise, 46(3),151-160.         [ Links ]

Roustang, F. (1984). Meu caro amigo. Cadernos de Psicanálise, 5(31).         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Antonio Luiz Serpa Pessanha
Rua Itacolomi, 601, cj. 55
01239-020 São Paulo, SP
Tel: 11 3256-2918
alspessanha@gmail.com

Maria Lúcia Castilho Romera
Av. Floriano Peixoto, 615, sala 308
38400-100 Uberlândia, MG
Tel: 34 3236-7985
mluciaro@terra.com.br

Marcelo Moraes Forones
Rua Pará, 76, cj. 62
01243-020 São Paulo, SP
Tel: 11 3214-6364
forones@uol.com.br

Recebido em 10.9.2013
Aceito em 14.11.2013

 

 

1 "Ludus est necessarius ad conversationem humanae vitae", ou "brincar é necessário para a vida humana" (São Tomás de Aquino, Suma Teológica II-II, 168, 3, ad 3).
2 Lembremos que "terapia" vem de Qepaneia ("terapéia"), que significa "andar junto", termo despido, portanto, de intenções curativas. O próprio Freud aprovava a frase que ouviu dos cirurgiões franceses: "Eu costuro, Deus cura...".
3 Em recente artigo publicado na Revista Brasileira de Psicanálise, Yudith Rosenbaum afirma que "a paródia e o humor seriam antídotos para vencer velhas estruturas sociais e psíquicas" (2012, p. 157), e reconhece que Freud já havia antecipado isso no artigo sobre chistes.
4 Lembremos que "O humor é a polidez do desespero", frase atribuída a nada menos que três autores, todos franceses: Chris Marker, Marcel Duhamel e (mais provável) Boris Vian.
5 Ambos moravam em São Paulo; mandar cartas para parentes na mesma cidade constitui, em pleno terceiro milênio, um gesto que sugere tanto ironia quanto certa pomposidade e histrionismo.
6 "E diante dele tremia toda Roma!" (Illica & Giacosa, Tosca, ato II, cena 5).
7 Como exemplo, imagine o leitor que uma sessão analítica pudesse comparar-se à Invenção em dó maior (bwv 772), a primeira da coleção escrita por Bach. Ainda nessa comparação, imagine que a mão direita do executante (digamos Glenn Gould) correspondesse à fala do cliente, e a esquerda, ao comentário do analista.

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