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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.48 no.2 São Paulo Apr./June 2014

 

RESENHAS

 

Por uma psicanálise viva

 

 

Maria Cristina Perdomo

Psicanalista, membro, professora e supervisora do Departamento Formação em Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae

Correspondência

 

 

Autor: Homero Vettorazzo
Organizadoras: Ana Raquel B. M. Ribeiro, Luciana B. Khair & Lucianne S.A. de Menezes - Departamento Formação em Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae Editora: Primavera, 2013, 260p.
Resenhado por: Maria Cristina Perdomo

 

 

Homero Vettorazzo nos oferece, através das linhas deste texto, uma metodologia de trabalho, uma teorização sobre sua experiência clínica, mas sobretudo um vivido contato com o fazer analítico e a ressonância dessa experiência, desse encontro, na esfera psíquica do analista.

Dizer "na esfera psíquica do analista" soa aos meus ouvidos algo muito técnico e distante do que realmente está colocado em Por uma psicanálise viva. Ao percorrer as páginas deste livro, o leitor será levado a uma experiência, de si e do outro, que poucas vezes encontramos em escritos psicanalíticos. Somos convidados, ao avançar na leitura dos textos, a entrar em recintos da casa reservados somente aos íntimos e, às vezes, reservados a ninguém mais do que a si mesmo.

Não se trata de uma escrita para mostrar a casa arrumada. Trata-se de uma escrita viva, para pôr em palavras aquilo que insiste, aquilo que assoma sem nunca se mostrar por inteiro, aquilo que é pensado, sonhado ou sentido no encontro de um processo de análise.

O livro apresenta duas vertentes, como nos esclarecem as organizadoras na introdução. Embora essas vertentes pareçam divididas entre o pessoal/histórico do autor e os aspectos teó-rico/clínicos, as duas seções apontam para o pessoal: o pessoal da história subjetiva, o pessoal da transferência, o pessoal da ressonância das palavras, o pessoal da formação, o pessoal do trajeto institucional, enfim, a experiência de tornar-se e ser analista.

Os paradoxos inquietantes e intensos não são obviados. São tomados "pelas hastes" - não para dissolvê-los em respostas acadêmicas e moralmente tranquilizadoras, mas para vê-los de perto, para estabelecer um contato íntimo com eles. Não é para tranquilizar-se ou tranquilizar o leitor que Homero Vettorazzo escreve. Ele escreve para poder pensar e para fazer pensar; também para nos ajudar a perder o medo do pensamento, para nos encorajar a nos apropriamos dele sem nos ater a uma dogmática institucional, social ou teórica que dite os rumos. Convida-nos, com sua experiência e com a comunicação dela, a "fazer trabalhar" nossas teorias, abrindo assim a possibilidade de criação.

Em várias passagens do texto, após momentos de grande rigor teórico, de esforço para entender a teorização dos autores-inspiradores, vemos o autor dedicar-se a um exercício de extrema liberdade que permite a criação. As ideias próprias tomam corpo, materialidade e palavra. Elas são pensadas, articuladas e doadas ao leitor.

A escrita é um movimento de doação, mas só podemos doar aquilo que possuímos, aquilo que é próprio. A formalização da experiência analítica por meio do código da escrita constitui um modo de outorgar-lhe comunicabilidade. É formalizar, e não formatar, no sentido de enclausurar conceitos. Os exemplos, os aqui chamados casos clínicos, são disparadores de pensamento, não de ideologia.

No interior daquela experiência, variada e móvel, que é a sessão analítica, Homero Vettorazzo se mantém atento à emergência da palavra e sua sonoridade. Os desdobramentos desse estranho/íntimo são, para a dupla analisante/analista, o cerne do trabalho. É a possibilidade de ressituar na ordem do estranhamento aquilo que está posto, desde sempre e como efeito da resistência, na ordem da familiaridade o que permite a apertura para novas cadeias associativas, livrando-se e livrando o analisante do aprisionamento fantasmático.

Não obstante, os conceitos centrais e caros à psicanálise balizam o processo. Os exemplos clínicos, nas suas diferenças históricas e transferenciais, permitem estudar as constantes do fenômeno psíquico: a emergência do inconsciente, a linguagem, os afetos e a mobilidade energética.

Voltemos à questão do estranho/familiar. Não é à toa que Clarice Lispector é uma interlocutora escolhida "a dedo", mas, ao mesmo tempo, uma interlocutora que já estava nele como espinho na carne. Explico: antes de pensar em psicanálise, Homero Vettorazzo se debruçava sobre as ressonâncias que autores como ela traziam para o seu íntimo. Ler, receber, metabolizar e transformar-se - esse é o movimento, esse é o poder da literatura no tocante à linguagem, ao jogo "de" e "com" as palavras. É a letra que se faz carne, que toma corpo e toma o corpo; é o eterno jogo de amor e encantamento com a linguagem.

Levar o estilo literário para o texto psicanalítico é algo que o próprio Freud fez com maestria. Importa sublinhar que a escrita literária é uma escrita liberadora, em que a implicação do próprio sujeito que enuncia assoma no interstício da junção das palavras. É nesse sentido que, no início desta resenha, falo de um "pôr em cena" o pessoal nos vários âmbitos da pessoa Homero Vettorazzo.

Tive o privilégio de dividir com ele mais de vinte anos de caminho profissional e de discutir os manuscritos nos tempos da produção de alguns dos textos presentes neste livro. Mas aconteceu algo curioso comigo na leitura para o trabalho de resenha: a visão de conjunto, como as peças de um quebra-cabeça que finalmente se encaixam e formam uma nova figura, me surpreendeu.

Nunca havia tido, com a clareza com que o faço hoje, essa visão da obra de seu pensamento, dos efeitos que produz naquele que dela se aproxima - o prazer de seguir, em seus labirintos, a construção de um caminho único e pessoal.

Talvez ele mesmo se surpreendesse com a visão de conjunto, como nos surpreendemos em alguns momentos do instigante percurso analítico.

 

 

Correspondência:
Maria Cristina Perdomo
Rua João Moura, 627, conj. 94
05412-000 São Paulo, SP
Tel: 11 3085-9181
perdomo.cristina@gmail.com

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