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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.48 no.2 São Paulo Apr./June 2014

 

RESENHAS

 

Illusions et désillusions du travail psychanalytique

 

 

Nelson Ernesto Coelho Junior

Professor doutor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP), psicanalista e autor de Ética e técnica em psicanálise (2008, Escuta), em coautoria com Luís Claudio Figueiredo, e Dimensões da intersubjetividade (2012, Fapesp/Escuta), organizado com Perla Klautau e Pedro Salem, entre outros livros e artigos

Correspondência

 

 

Autor: André Green
Editora: Odile Jacob, Paris, 2010, 276p.
Resenhado por: Nelson Ernesto Coelho Junior

 

 

A psicanálise contemporânea, suas ilusões e desilusões

Illusions et désillusions du travail psychanalytique é o penúltimo livro publicado em vida por André Green (o último foi Du signe au discours [Do signo ao discurso], 2011). Com esse livro, Green deu início ao conjunto final de obras que planejou levar a público por meio de sua parceria com o psicanalista argentino Fernando Urribarri. A colaboração entre os dois analistas de diferentes gerações durou pouco mais de uma década, mas mesmo após a morte de Green vem dando frutos continuados, com mais três livros publicados nos dois últimos anos.1 No discurso proferido em 27 de janeiro de 2012, no Cemitério Père Lachaise, durante a cerimônia de adeus a André Green, Urribarri relembrou:

Tendo colaborado com André Green em cada um de seus livros, e nos seus principais projetos dos últimos dez anos, tive a oportunidade de viver intimamente seu compromisso com a verdade e sua comovente abertura ao outro. Desde que me propus a ajudá-lo na preparação de Idées directrices (2001), compartilhando uma semana juntos, gravando nossas conversas para então elaborá-las e reescrevê-las como livro, até o ano passado, quando enfrentamos a tarefa de seleção e discussão de seus artigos inéditos a fim de compilar em dois volumes que serão publicados em breve. Passando, é claro, pelos convites para escrever o posfácio de Illusions et désillusions (2010), ou o prefácio de Du signe au discours (2011). Eu sempre perguntava o que ele estava esperando, o que gostaria que eu abordasse ou priorizasse quanto à forma ou ao conteúdo. Em todas as ocasiões, me deu a mesma resposta: "Meu querido Fernando, deixo isso em suas mãos" (Urribarri, 2013, p. 29).

Com essa referência inicial espero ter indicado uma das circunstâncias singulares da vida de Green no período em que foi produzido esse instigante livro. Para os que acompanharam a obra de Green, desde O discurso vivo (1973) até O pensamento clínico (2002), haverá por certo o estranhamento de encontrar uma linguagem mais acessível e uma simplicidade de exposição inabitual. Nem por isso trata-se de um texto menos rigoroso ou menos complexo, ou até mesmo menos autoral. Ao contrário, em Ilusões e desilusões o leitor se deparará com a intimidade clínica de Green, com o que possivelmente poderá ser considerado o seu testamento clínico, com seus efeitos e consequências ainda por serem devidamente reconhecidos. Como afirma Green ao final do livro, "é um trabalho guiado pela prática analítica e pela teoria que a prática permite extrair" (p. 223).2 Mas é, acima de tudo, um livro corajoso. São os fracassos da psicanálise, são suas desilusões que Green procura enfrentar e analisar. Para isso, porém, ele não recorre a comentários sobre a história e a geografia da psicanálise e seus descaminhos (embora aqui e ali o faça de modo sucinto). O que ele faz é repensar seus próprios fracassos clínicos, que, se não foram fracassos completos, revelam seguramente a história de tratamentos de pacientes "particularmente resistentes, na verdade pacientes rebeldes à ação analítica" (p. 218).

O fato de Green escrever sobre os seus fracassos como analista precisa ser considerado, a meu ver, como uma das características fundamentais de um autor interessado, como poucos, em um trabalho investigativo e crítico da psicanálise e suas práticas. E, também, como a marca de um autor intensamente devotado ao desenvolvimento da psicanálise em suas diversas dimensões e formas de atuação. Em vez de enaltecer os sucessos e as virtudes da psicanálise em sua centenária história, Green se propõe a discutir desilusões e fracassos. Na realidade, ele prefere denominar desilusões, e não fracassos, os impasses clínicos e teóricos enfrentados por cada um de nós nos momentos de menos sucesso de uma psicanálise.

O curto ensaio que abre o livro é uma pequena surpresa: "Marilyn Monroe: a morte de um ícone". Não é propriamente a vida (ou mesmo a morte) de Marilyn e suas desventuras em geral que interessam a Green, mas sim o que supostamente teria sido um dos maiores fracassos da psicanálise, o tratamento dela com Ralph Greenson (psicanalista norte-americano, da Costa Oeste, muito próximo de Anna Freud). Após trinta meses, a análise termina com a morte de Marilyn em situação não plenamente explicada (suicídio, overdose...). Green questiona as dificuldades contratransferenciais de Greenson e o fato de que, além da análise, ele também se colocava como o responsável pela medicação de Marilyn. Mas, de toda forma, restam as questões habituais surgidas diante de um insucesso analítico: seria Marilyn inanalisável? Ou a rede de relações sociais e de pacientes de Greenson (entre eles, alguns dos amantes de Marilyn) teria tornado a necessária neutralidade analítica inviável nesse caso? A "culpa" seria de Marilyn ou de Greenson?

Por meio desse ensaio introdutório, Green prepara o leitor para a discussão de um grupo de questões que acompanham o conjunto de textos publicados no livro: como abordar uma análise fracassada? De quem foi a culpa? Trata-se de culpa, de incompetência, de inabilidade, de incompatibilidade ou de alguma outra coisa? A psicanálise tem limites em suas ambições clínicas? E, por fim, como distinguir os limites da psicanálise dos limites de um psicanalista?

Green já pensava há muitos anos em algumas respostas para essas perguntas. Por exemplo, no texto "Masoquismo(s) e narcisismo nos fracassos da análise e a reação terapêutica negativa", publicado em 1993 no livro O trabalho do negativo, ele afirma:

Duas posições muito gerais dividem os sentimentos do analista confrontado com o fracasso: a projeção paranoica ("A falha é do paciente, que era inanalisável, portanto, responsável pelo resultado negativo da análise") e a autoacusação depressiva ("A falha é do mau analista, mal analisado"). Essa segunda eventualidade, por ser mais disposta a reconhecer a parte do analista no fracasso do tratamento, não deveria enganar. Pois se poderia interpretar esse julgamento dirigido a si mesmo como resposta protetora à reprovação muito mais severa do outro. Nos dois casos, o sentimento de culpa é facilmente discernível. Surpreenderá também - além do fato de que os limites da análise não são levados em conta aí - a omissão pura e simples de qualquer referência à ignorância persistente em que nos encontramos quanto às possibilidades de mudança do psiquismo, como se não fosse preciso admitir que muitos recônditos dele permanecessem desconhecidos para nós. [...] Se o papel do sentimento de culpa e do masoquismo foi há muito tempo reconhecido no fracasso da psicanálise, o do narcisismo, ainda que pressentido, foi muito menos considerado (1993/2011, pp. 142-143).

Na parte teórica inicial, nos vários pequenos textos que preparam a apresentação dos estudos clínicos, Green retoma ideias já expostas anteriormente (como é o caso dos artigos que tomam o pensamento lacaniano sobre a linguagem como objeto) e temas que o ocuparam por muitas décadas: os casos-limite, o enquadre e sua interpretação, a pulsão de morte, fusão e desfusão pulsionais, o trabalho do negativo e as diferenças entre psicanálise e psicoterapia. Vou me deter no penúltimo desses pequenos capítulos, que tem por título "Causas e remédios: questões". Já no primeiro parágrafo, Green propõe as seguintes questões:

Por que essas desilusões com o trabalho psicanalítico, quais são as suas causas e, finalmente, como suplantar estes estados? Como o psicanalista consegue ser bem-sucedido? É possível encontrar os meios para isso ou estamos fadados a aceitar a cronicidade que não deixa outra solução a não ser um tratamento paliativo destinado a durar a vida inteira? (p. 109).

Entendo que, com essas interrogações, Green procurou enfrentar algumas das tensões vividas pelo campo psicanalítico contemporâneo, acirradas pelas críticas relativas à sua suposta ineficiência, que partem principalmente dos adeptos da terapia cognitivo-comportamental. Mas, ao mesmo tempo, Green não parece recusar os impasses colocados à psicanálise do interior de seu próprio campo. O problema é delicado, as causas não são sempre evidentes e o remédio não está à mão. É possível, porém, apontar elementos característicos ou até estruturais de fracassos e sucessos analíticos.

Na conclusão da primeira parte do livro, Green elenca os principais elementos das dificuldades de uma análise: "a tenacidade das fixações, a potência das pulsões destrutivas, o caráter 'solidificado' do masoquismo, a dificuldade do ego em renunciar às suas defesas narcísicas arcaicas e a rigidez das resistências" (p. 129). Para ele, essas marcas estão presentes nas desilusões verdadeiras que acompanham o trabalho de cada um de nós analistas.

No outro polo desse grande espectro que vai do fracasso ao sucesso, Green enumera as formas de reconhecimento de um trabalho analítico bem-sucedido: a variedade, a diversidade e a riqueza dos investimentos, com uma prioridade para as relações com outrem; a ausência de rigidez das fixações e defesas; a suavidade e a mobilidade do funcionamento psíquico; a capacidade de amar e também odiar sem se deixar levar por uma atitude passional; a possibilidade de investir positivamente as duas imagos parentais; uma convivência de compartilhamento pouco conflitiva entre amar e trabalhar; a possibilidade, quando as circunstâncias assim exigem, de fazer o luto sem que ele se torne interminável; a faculdade de suportar as decepções e as frustrações, assim como o reconhecimento do privilégio de amar. Green, no entanto, acrescenta um alerta ao final da enumeração dos elementos necessários para um pleno sucesso analítico: "Quem poderia pretender se aproximar de tal ideal?" (p. 133).

Na segunda parte do livro, "Estudo clínico", Green apresenta sete casos, que acompanhou como supervisor ou que teve a oportunidade de discutir em grupos de trabalho e que se destacam pela dificuldade que colocaram para a prática analítica. Na sequência, apresenta alguns de seus próprios casos que envolveram desilusões:

Pensando nos casos que relatarei a seguir, não tenho o sentimento de me arrepender de ter tratado estes pacientes, mesmo que muitas vezes tenha ficado impaciente diante de suas resistências ou tenha sentido decepção diante da obstinação que eles mostraram, em uma época em que ainda ignorava aquilo que depois viria a denominar de trabalho do negativo. Eu me deparei com estes casos muito cedo em minha carreira, em geral porque professores ou analistas mais velhos superestimaram minhas capacidades terapêuticas. Nunca me considerei um terapeuta capaz de grandes proezas, mas posso dizer que me esforcei em me manter um analista, sempre tendo em conta aquilo que eu imaginava serem as necessidades de meus pacientes. [...] Não que hoje eu tenha sucesso onde no começo eu fracassei; mas tenho a impressão de melhor compreender a razão de ser de algumas angústias, assim como a necessidade de certas defesas, em pessoas que parecem não poder correr o risco de uma mudança que as exporia perigosamente (p. 172).

O material clínico e as ideias que Green nos oferece na segunda parte do livro são, indiscutivelmente, de grande valor para o desenvolvimento da reflexão necessária para uma melhor compreensão das dificuldades enfrentadas pela psicanálise contemporânea. Material raro em seus outros livros, os casos descritos nos aproximam do Green analista, de sua prática e de seus afetos como clínico. De forma muito transparente, Green espera contribuir com sua experiência para ajudar outros analistas a "evitar certos erros ou mesmo certas ilusões" (p. 173) - ou, como indica na página inicial:

Esse livro é o resultado de mais de cinquenta anos de prática psicanalítica. Reúne as ideias recolhidas em minha experiência. Não toda a minha experiência, que é mais diversa e que foi, habitualmente, fonte de uma grande satisfação, quando fui capaz de ajudar e às vezes curar alguns de meus pacientes. [...] Eu reuni as ideias que pude reter de minhas experiências menos felizes (p. 11).

Preocupado com os impasses gerados pelos casos difíceis, os que causam desilusões em muitos analistas, Green procura por fim indicar sua visão sobre os destinos da técnica (e, por que não, da ética) na psicanálise contemporânea. As várias modificações do setting que vêm sendo propostas (da possibilidade de uma psicanálise frente a frente ao lugar do corpo e dos medicamentos psiquiátricos em uma análise; da variação do número de sessões semanais à inclusão do psicodrama, com mais um terapeuta na sala, como alternativa para o avanço de um determinado tratamento) são discutidas por Green de forma aberta e consequente. O mesmo acontece com o debate, que para ele opõe, de forma geral, a psicanálise a formas de psicoterapia psicanalítica. Green discute se as dificuldades clínicas presentes no atendimento de casos mais graves, em que há maior resistência ao trabalho analítico convencional, exigem necessariamente a realização de psicoterapias psicanalíticas em vez de uma psicanálise nos moldes clássicos. Aponta, assim, para os eventuais limites das experimentações e modificações técnicas. Nesse contexto, Green relembra e reconhece as tentativas de autores como Roussillon e sua proposta de uma conversa psicanalítica como forma de contornar o que faz obstáculo à efetividade do trabalho analítico. Apesar do tom aparentemente cético com que comenta o que seriam as ilusões depositadas sobre técnicas como a referida acima, sustenta que é necessário buscar alternativas para manter vivo o ideal psicanalítico: "Melhor conhecer o adversário que o analista terá de enfrentar do que desconhecê-lo, mantendo ilusões destinadas ao fracasso" (p. 134). Acredito que essa última frase de Green deva, de fato, ser tomada em seu caráter testamentário, como o desejo de um dos maiores psicanalistas das últimas décadas de ver a psicanálise levada a sério pelos próprios psicanalistas. Levada a sério tanto em seu cotidiano clínico como nos desafios colocados para o trabalho de elaboração teórica no contexto da psicanálise contemporânea, que é para Green uma psicanálise em direção à construção de uma visão pluralista, em que o atravessamento dos dogmas é a tônica e em que uma prática pós-escolas, mas nem por isso eclética, deve predominar.

 

Referências

Green, A. (2011). Le travail du négatif. Paris: Les Éditions de Minuit. (Trabalho original publicado em 1993).         [ Links ]

Urribarri, F. (2013). O legado de André Green: recordar, elaborar, assumir. Percurso, 49-50,27-30.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Nelson Ernesto Coelho Junior
Alameda Lorena, 1.359/52
01424-001 São Paulo, SP
Tel/Fax: 11 3288-8202
ncoelho@usp.br

 

 

1 São eles: La Clinique psychanalytique contemporaine (2012); Penser la psychanalyse avec Bion, Lacan, Winnicott, Laplanche, Aulagnier, Anzieu, Rosolato (2013); e Dialoguer avec André Green: la psychanalyse contemporaine, chemin faisant (2013), conjunto de seis entrevistas que Urribarri realizou com Green.
2 Tradução minha, assim como nas demais citações das obras de André Green.

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