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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.48 no.2 São Paulo Apr./June 2014

 

RESENHAS

 

Psychoanalysis in the Technoculture Era

 

 

Alessandra Ricciardi Gordon

Psicanalista, mestre em Saúde Mental pelo Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP

Correspondência

 

 

Editores: Alessandra Lemma & Luigi Caparrotta
Editora: Routledge, London, 2014, 134p.
Resenhado por: Alessandra Ricciardi Gordon

 

 

A comunicação virtual globalizada, acessível pela internet, existe há cerca de vinte anos e sua influência revolucionou de modo permanente a contemporaneidade. Esta revolução tecnológica alterou a forma como vivemos nosso dia a dia e nossa visão de mundo, criando o que os editores chamam de tecnocultura: estamos inseridos em um meio no qual a comunicação se dá em tempo real, a informação está integral e completamente acessível a qualquer pessoa que tenha a seu alcance um computador e qualquer um pode estar também imediatamente acessível. Quais as decorrências, para nossa prática profissional, destas mudanças insidiosas e significativas?

Neste livro instigante, editado por Lemma e Caparrotta a partir de um simpósio realizado pela Sociedade Britânica de Psicanálise,1 o tema Espaço de sonho e espaço virtual na situação analítica foi desenvolvido por diversos autores: Glen Gabbard, Andrea Sabbadini, Florence Guignard, Vincenzo Bonaminio, Jill Sharff, Heather Wood, Alessandra Lemma e Luigi Caparrotta. Suas reflexões são mobilizadas por uma prática clínica afetada pelo contexto digital, no que constituiu, segundo Christopher Bollas, "a primeira discussão séria da psicanálise clínica em uma comunidade globalizada, que agora usa formas especializadas de comunicação que alteram necessariamente alguns aspectos da prática quando psicanalistas conduzem uma análise no espaço cibernético" (4ª capa, tradução minha).

Permito-me acrescentar que a prática da psicanálise está afetada de forma indelével, ainda que não se conduza uma análise no espaço cibernético, pois estamos inseridos em um mundo em que a comunicação se alterou, ou, mais especificamente, se ampliou. O contato entre a dupla analítica se faz em muitas ocasiões para além da sala de análise, criando situações a ser consideradas pela dupla. Esta ideia encontra ressonâncias no artigo em que Gabbard relata uma transferência erótica expressa através de mensagens eletrônicas; ele compreende que a própria prática psicanalítica se altera quando o espaço interpessoal inclui o cibernético. E nos dias de hoje haverá como ser diferente?

A meu ver, esta reflexão é necessária a todos nós, inseridos que estamos no contexto atual e influenciados pelas vicissitudes das formas virtuais de comunicação. Certamente, um dos méritos deste livro é incentivá-la e é com este espírito que apresento esta resenha. Nela, reúno alguns dos pontos que considero importantes nos diversos artigos que compõem o livro.

No prefácio, Peter Fonagy lança uma questão fundamental: do ponto de vista psicanalítico, a revolução digital da informação se dá num contexto que tem como pano de fundo o que é considerado como o mais invariável na natureza humana - o inconsciente atemporal, as partes recalcadas da mente, o produto do que é visto como inato, codificado geneticamente, específico da nossa espécie ou pulsional. Isto é passível de ser mudado? Nas suas ponderações, ele nos remete ao que é nuclear à nossa humanidade - a cultura ou a transmissão de conhecimentos e crenças de uma geração para a outra. Michael Tomasello denominou "instinto para a comunicação" a prontidão para transmitir informações essenciais sobre o uso de objetos que nossa espécie criou e aperfeiçoou. Isto é fundamental, tanto para que cada bebê humano possa se equipar para ter um papel produtivo no seu ambiente social como para a preservação da espécie; e era feito "de mãe para filho". Com o advento da revolução digital da informação, esse instinto é alterado na sua essência, pois no mundo moderno a comunicação não depende mais da confiança. Originalmente, a confiança no interlocutor nos protegia da ação de agentes maliciosos e da transmissão de falsas informações. Hoje, entretanto, tal transmissão de informação não se faz apenas entre semelhantes, mas entre usuário e máquina. Estamos a par do quanto é possível acumular em termos de informação sobre os hábitos, gostos, ideias e talvez até sentimentos de uma pessoa a partir do que ela acessa em termos de conteúdo digital. Fonagy parafraseia Orwell - Big data, Big brother - e nos alerta: a internet pode ser tão (ou mais) sensível às nossas necessidades quanto uma mãe preocupada e atenta, o que por si só já demanda estudos cuidadosos da relação que se estabelece entre pessoa e máquina, do ponto de vista da experiência subjetiva.

Este é também um dos pontos explorado por Guignard em "Desenvolvimento psíquico no mundo virtual": a natureza dos encontros na atualidade e o quanto são influenciados pela realidade virtual. Ao descrever o quase desaparecimento do período de latência e as profundas modificações pelas quais as crianças passaram nos últimos quinze anos, a autora chama a atenção para uma alteração significativa no sentimento de solidão. A realidade virtual facilita a comunicação entre pessoas que antes estavam distantes, produzindo encontros. Esses encontros, entretanto, mediados pela máquina digital, têm uma natureza distinta. Aquela nem tão antiga queixa dos pais - "Ele passa o dia todo sozinho na frente do computador" - adquire um novo significado, pois ali nossas crianças não estão mais a sós! Mas estarão verdadeiramente acompanhadas? Que tipo de relação pode emergir? A reflexão de Guignard inclui ponderações sobre a natureza das relações na contemporaneidade, estando seus protagonistas imersos na pré-formatação, no imediatismo, na superficialidade e fugacidade dos vínculos intermediados pelas máquinas digitais. Mas ela vai além e discorre sobre as enormes diferenças na organização social e familiar de Viena na época dos inícios da psicanálise e no mundo atual. Estamos hoje diante das mesmas estruturas psíquicas que há cem anos? Qual terá sido a contribuição da revolução digital? Ao longo do artigo, a autora apresenta suas hipóteses; faz considerações importantes, do ponto de vista metapsicológico, sobre a erosão do período de latência, as falhas na repressão, as dificuldades na simbolização e na capacidade de pensar, bem como, do ponto de vista sociológico, sobre a pseudomaturidade, o cultivo do hedonismo e do imediatismo nos pais, as mudanças na família e o que resulta daí. Outra questão relevante: a partir de 1995, as novas gerações são consideradas nativas digitais, e nós psicanalistas, em grande parte, imigrantes digitais, temos de fazer o possível para nos adaptar a esse novo contingente de inteligência humana. Não podemos, porém, perder nossa identidade e nosso patrimônio cultural: a metapsicologia faz parte deste patrimônio, e a análise de crianças nos permite perceber, através das crianças de hoje, quem serão os futuros adultos. Cabe a nós refinar nossas ferramentas para manter nossa compreensão e capacidade de observar e pensar diante de tais mudanças. Dois casos clínicos ilustram suas hipóteses.

O já mencionado artigo de Gabbard, "Paixão cibernética: uma transferência e-rótica e a Internet"2, traz um caso clínico em que a transferência erótica é expressa unicamente por meio de mensagens eletrônicas e discute seus múltiplos significados como um enactment. As características únicas da comunicação por mensagem eletrônica são examinadas e comparadas à comunicação verbal entre a dupla analítica. Gabbard nos conta o dilema a que se viu levado quando uma parte considerável do que era significativo naquele processo analítico tomava corpo apenas por meio da comunicação virtual. Discute a função da comunicação verbal para o psiquismo e a situação que pode ser criada quando outras formas de comunicação irrompem no processo analítico. O autor relata como decidiu trabalhar o caso e faz considerações sobre a contratransferência. O conceito de espaço transicional, de Winnicott, é evocado quando Gabbard entende que a comunicação virtual é algo que acontece em um espaço que é, ao mesmo tempo, dentro e fora do self - um espaço à parte e, ao mesmo tempo, compartilhado pela dupla. Nesse espaço, novas formas de ser podem ser empreendidas e posteriormente examinadas; fantasias podem ser expressas e posteriormente elaboradas pela dupla. Seu relato do caso clínico e de seus conflitos internos é rico e sensível, e ele nos mostra como, em muitas ocasiões, se faz necessário tomar em análise outras formas de comunicação que não a verbal para que aspectos essenciais possam ser acessados e trabalhados. O autor empreende uma análise das características da comunicação escrita e da comunicação virtual por meio de mensagens; dos conceitos de intimidade e privacidade - conceitos revistos agora na era digital.

O artigo de Andrea Sabbadini se ocupa mais diretamente do impacto das novas tecnologias no setting psicanalítico e, para tanto, nos remete àquelas mudanças outrora impactantes, como a secretária eletrônica, introduzida na década de 1970, hoje muitas vezes substituída por mensagens de texto ou de voz nos telefones celulares. O autor entende que as mudanças trazidas pelas novas tecnologias são inevitáveis e podem produzir - e frequentemente produzem - um impacto positivo. Lembra, no entanto, que precisamos não só aprender a manejá-las como de tempo para nos acostumar a elas. Ele cita Prensky, um educador americano que forjou os termos "nativo digital" e "imigrante digital". Localiza a grande maioria dos psicanalistas como imigrantes digitais e pondera que muitos não têm ainda, e talvez nem queiram ter, a desenvoltura dos nativos digitais. Essa realidade, logicamente, não se manterá por muito tempo e logo, segundo ele, teremos entre nós gerações de psicanalistas que se relacionam mais naturalmente com o mundo digital. Para Sabbadini, a crescente demanda por novos tipos de intervenção psicanalítica, como a psicanálise via Skype, já é uma realidade, e no seu artigo se dedica a pensar as modificações necessárias ao setting psicanalítico para que tais encontros possam ser psicanálise. Assim, discute as consequências para a prática psicanalítica quando o tempo substitui o espaço; aborda a questão da falta da presença física e da dimensão sensorial que a caracteriza, da interferência de mediadores como os servidores e as falhas na conexão. O autor tenta depurar as condições essenciais para que a prática da psicanálise à distância possa se dar com a preservação das características fundamentais do processo psicanalítico e de nossa identidade enquanto psicanalistas. Seu artigo oferece tanto uma reflexão sem preconceitos sobre possíveis eventos ligados à realidade virtual quanto uma contribuição importante para a técnica da psicanálise via Skype. Trata-se de uma reflexão fundamental para a clínica da atualidade, quer pratiquemos ou não a psicanálise à distância.

De uma forma mais arrojada, Jill Sharff escreve como alguém que tem se dedicado à psicanálise à distância através do Skype e publicou diversos textos sobre o tema. Neste artigo, ela faz uma breve revisão da literatura disponível e apresenta argumentos tanto a favor quanto contra essa prática. A autora acredita haver mais semelhanças que diferenças entre a psicanálise via Skype e a tradicional, e ilustra seu ponto de vista com o relato de um caso clínico. Nele, o paciente se engaja ativamente no processo e estabelece um forte vínculo com a analista, que se presta como veículo para que sejam revividas e elaboradas, inclusive através de enactments, situações traumáticas de seu passado. Apesar de sua experiência positiva, Sharff pondera que a psicanálise à distância está ainda em fase experimental; recomenda que o paciente seja informado devidamente sobre este estado de coisas e que o analista se encontre com um grupo de colegas para debater e avaliar a experiência. A autora apresenta ainda as indicações e contraindicações para a prática da psicanálise via Skype, mas também para as psicanálises de formação e supervisões conduzidas à distância.

Lemma aborda a experiência de estar em um corpo, que é particularmente complexa para o adolescente no contexto atual. Nesta era cibernética, "ser adolescente e portar um corpo" pode significar não se defrontar com as ansiedades que normalmente acompanham essa fase, mas contorná-las, dentre outras coisas, por meio de uma vida paralela desencarnada em um mundo virtual. Desta forma, não se desenvolvem as capacidades potenciais de conviver com o corpo próprio; podem desenvolver-se, sim, mecanismos de negação, controle e domínio, que facilmente nos levam a compreender as razões pelas quais se instalam, em muitos casos, uma adição à realidade virtual. Os movimentos no mundo virtual são os mesmos que os da realidade física e, em muitos jogos, o jovem pode assumir novas identidades e criar novos mundos. Isto tudo é experimentado vivamente através de uma verdadeira imersão num ambiente artificial em que a liberdade é ilimitada e as restrições mínimas. Esta experiência imediata de "não estar em um corpo" e a onipotência por ela provocada podem ser tão tóxicas quanto uma droga, potencializadas pelo fato de que o computador não é um instrumento ilícito. O preço a ser pago frequentemente é elevado, pois quanto maior a imersão no espaço virtual, menor a convivência em um espaço público, mediado pelas relações físicas que podem promover uma ancoragem psíquica. Segundo a autora, isto pode ser particularmente verdadeiro para aqueles adolescentes vulneráveis, mais propensos a buscar um refúgio distante das relações moduladas pela presença física. Nesses casos, e a autora relata duas vinhetas clínicas, a imersão no mundo virtual é desastrosa para o desenvolvimento psíquico. Longe de demonizar a realidade virtual, entretanto, Lemma, que é também coeditora do livro, nos oferece uma reflexão sobre o uso abusivo do computador por jovens que apresentam distúrbios na experiência de "alteridade" quando esta é concretamente localizada no corpo.

Usando uma vinheta do filme Duro de matar em que o vilão volta-se para o herói e diz: "John, você é um despertador analógico numa era digital", Bonaminio sugere que nós, psicanalistas, corremos o mesmo risco, imersos que estamos em uma era dominada por computadores e técnicas de multimídia. Os "novos pacientes", dentre eles crianças e adolescentes, e suas dificuldades de representação, com transtornos ligados à própria subjetividade, ao significado de existir ou ao sentido do ser, seriam mais um componente deste estado de coisas. O autor enfoca a adolescência como uma fase e como uma condição de vida profundamente afetada pelo impacto das transformações impostas pela realidade virtual. Neste contexto, problematiza a questão "Estará o espaço psíquico prestes a desaparecer?" da seguinte forma: o espaço psíquico está passando por um processo de metamorfose, tão multifacetado e acelerado em suas transformações que podemos ter a falsa impressão de que está desaparecendo. No seu artigo, Bonaminio levanta elementos importantes para o desenvolvimento desta questão e se utiliza de uma vinheta clínica para ilustrar o que chama de risco da falta de preparo do psicanalista, qual seja, apreender em um nível técnico a natureza cambiante das paisagens clínicas que nossos pacientes trazem para a análise. Isso é particularmente relevante para o analista de adolescentes, uma vez que este período da vida é visto pelo autor como um observatório, que mostra em tempo real quão rápidas, transbordantes, fugazes e inapreensíveis podem ser as mudanças no modo de pensar e representar a realidade interna e externa.

Finalizo com uma citação de Sam Sheppard, feita por Gabbard em seu artigo, que pode sintetizar uma possível função do mundo virtual como um espaço de experimentação, localizado ao mesmo tempo na realidade externa e no mundo interno, e que talvez permita uma expansão da imaginação:

A luta por terra (território) está terminada... Agora a fronteira é o computador, que se tornou algo interno. Os computadores levam a um sonhar ampliado sobre o que poderá acontecer, e a fronteira que todos buscam agora está na imaginação (p. 33, tradução minha).

 

 

Correspondência:
Alessandra Ricciardi Gordon
Rua Pedroso Alvarenga, 1.245, conj. 53
04531-012 São Paulo, SP
Tel: 11 3071-3757
argordon@uol.com.br

 

 

1 Trata-se do 6º Diálogo Britânico-Italiano (Londres, 2011).
2 O título em inglês apresenta maior polissemia: "Cyberpassion: E-rotic transference and the internet".

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