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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.48 no.2 São Paulo Apr./June 2014

 

RESENHAS

 

Psicanálise compreensiva: uma concepção de conjunto

 

 

Maria Tereza Pinheiro Castelo

Membro filiado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Doutora em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP)

Correspondência

 

 

Autor: Walter Trinca
Editora: Vetor, São Paulo, 2011, 434p.
Resenhado por: Maria Tereza Pinheiro Castelo

 

 

Walter Trinca tem se mostrado um autor bastante produtivo. Brindou-nos com numerosas publicações ao longo dos últimos trinta anos. Em seu trabalho mais recente, Psicanálise compreensiva, propõe um modelo de diagnóstico abrangente, em que parece condensar sua ampla experiência como clínico e pesquisador.

O esforço no sentido de organizar a diversidade de situações com que podemos nos deparar na prática clínica é considerável. Ao mesmo tempo, o modelo proposto por Trinca destaca-se por ser claro e simples, o que se deve ao fato de ser resultante de profunda elaboração clínica e metodológica.

Como já indica o título do trabalho, o referencial teórico que dará suporte a esse modelo é o da psicanálise, considerando-se as contribuições de Freud e de seus mais importantes seguidores - Klein, Winnicott e Bion.

Os principais conceitos que fundamentam e instrumentalizam todo o sistema apresentado e desenvolvido por Trinca ao longo de Psicanálise compreensiva são o que será identificado como ser interior e o correspondente distanciamento de contato.

Ser interior seria, em termos psíquicos, o núcleo vital do ser, sua fonte - ou ainda, do meu ponto de vista, o equivalente à pulsão de vida (Freud). No decurso do desenvolvimento humano, porém, diversos fatores interferem nesse processo, promovendo um maior ou menor distanciamento de contato com o ser interior. Consequentemente, quanto maior for o grau de distanciamento de contato existente entre o self e o ser interior do sujeito, maior a gravidade da situação clínica em questão.

O autor propõe situar num eixo, ou linha horizontal, as perturbações psíquicas, classificadas conforme os diferentes graus de distanciamento de contato. No decorrer do trabalho, passa a examinar quais seriam os fatores a produzir tal distanciamento e quais as consequências para o self.

Trinca acredita ser o que ele denomina constelação do inimigo interno um dos principais fatores responsáveis pelo distanciamento de contato - um nome novo para um conceito já existente, qual seja, o de instinto de morte, proposto por Freud. O autor procura examinar de que maneira tal constelação (ou, se preferirmos, o instinto de morte) atua fazendo oposição direta ao ser interior (instinto de vida) na vida mental do indivíduo.

Quanto às consequências do distanciamento de contato para o self, Trinca chama a atenção para duas possibilidades: a fragilidade do self e o aumento da sensorialidade. Esses aspectos podem ser identificados nas diversas situações clínicas em que o sujeito encontra-se com a mente paralisada, impossibilitado de pensar e invadido por "sensações, vivências e emoções que têm por base a destrutividade" (p. 111).

Minha intenção aqui não é realizar uma extensa descrição do modelo proposto pelo autor. Sugiro, caso o leitor esteja interessado nos detalhes, que entre em contato direto com a obra para que possa ter uma ideia mais aprofundada a esse respeito.

Esta é uma obra que pode ser de grande utilidade para organizar o pensamento clínico, principalmente no que se refere à avaliação psicológica. No entanto, como toda obra que se propõe a abarcar um universo tão amplo e complexo como o da vida mental, sua dinâmica e funcionamento incorre, necessariamente, em certo risco. Isto porque a matéria-prima de que trata a psicanálise configura um campo em constante movimento e transformação. Não lidamos com situações estanques nem estáticas. Portanto, a ideia de classificação parece inadequada para tratar de "substâncias" tão voláteis e de difícil apreensão pelos órgãos dos sentidos.

Penso que esse é um risco que Trinca assume correr quando propõe um modelo desse tipo - assim como o risco relativo à questão da normatização, quando fala de atribuição de valores comparativos (graus de patologia) entre as diferentes perturbações psíquicas.

Outro ponto interessante para discussão refere-se à abordagem dos aspectos destrutivos da mente humana como algo diverso de seu próprio ser. O modelo da psicanálise compreensiva buscaria identificar os obstáculos produzidos pela mente do sujeito que o estariam impedindo de manter contato com o ser interior - e, em última instância, com a própria vida.

Penso que a psicanálise procura apresentar o indivíduo a ele mesmo, e nenhum dos dois indivíduos participantes dessa aventura tem como saber o que irão encontrar pela frente. Acredito que tomar contato com o desconhecido da mente possibilita ampliar nossa visão sobre nós mesmos e o mundo à nossa volta, e esse desconhecido abrange aspectos tanto destrutivos quanto criativos e amorosos. Entendo que ambos os aspectos são parte constitutiva da mente e do ser, com todas as contradições que isso possa produzir.

A abordagem que Trinca imprime ao seu trabalho parece dar ênfase ao chamado ser interior, certamente uma perspectiva útil para nos possibilitar ir adiante em nossa tarefa e reforçar as esperanças de encontrarmos algo além dos inúmeros obstáculos com que certamente vamos nos deparar ao longo do caminho.

Para finalizar, quero dizer que valorizo muito a iniciativa e a generosidade do autor em partilhar conosco sua proposta de abordagem clínica e metodológica dos fenômenos psíquicos, fruto de sua larga experiência e elaboração pessoal. Creio que são essas iniciativas que nos estimulam a prosseguir discutindo, problematizando e pesquisando em psicanálise.

 

 

Correspondência:
Maria Tereza Pinheiro Castelo
Rua João Moura, 627, conj. 91
05412-911 São Paulo, SP
Tel: 11 3062-2041
terezapcastelo@gmail.com

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