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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.48 no.3 São Paulo Sept. 2014

 

DIÁLOGO

 

Lilian Santiago Ramos: quando a filosofia encontra a moda1,2

 

 

Início de uma pesquisa

RBP Estamos aqui com a filósofa Lilian Santiago Ramos, docente de filosofia e de arte contemporânea da Unifesp, para uma conversa sobre moda. Para iniciarmos, você poderia contar como surgiu o seu interesse no assunto?

LSR Minha pesquisa em moda tem sua origem na literatura. Um segundo caminho é a minha pesquisa de Walter Benjamin. E um terceiro caminho é meu interesse pelas atrizes de Hollywood e os ícones de beleza do cinema francês - especialmente Romy Schneider, uma atriz que me parece importante porque com ela podemos elaborar novos paradigmas em torno da imagem. Eu queria trabalhar com o niilismo da beleza. O conceito de niilismo da beleza pode ser definido como uma conduta, comum a muitas das mulheres belas, como as atrizes ou modelos cultuadas, baseada na pura aparência de exibir uma espécie de tristeza desencantada. Contudo, é justamente à ausência de ilusões sobre si, à nudez sem véus, que a beleza conduz desta maneira, oferecendo seu poder de atração mais rebaixado. Este desencantamento da beleza, este niilismo especial, afeta seu estado, processo mais avançado nas atrizes e modelos que têm suprimido toda linha de expressão de seu rosto (porque tanto a passarela quanto a câmera demandam uma “posse” puramente comportamental), de modo que esse rosto vem a ser um total valor de exposição, adquirindo um charme particular explorado não apenas pela indústria da moda mas também pela indústria do cinema. Pensemos nos primeiros waif looks (expressão que, de uma acepção inicial de “esfarrapado”, particularmente na literatura de Charles Dickens, passou a definir um tipo de magreza na passarela) da modelo Kate Moss, ou no rosto de Darlene Glória interpretando Geni no filme Toda nudez será castigada (Arnaldo Jabor, 1972), ou no de Romy Schneider no filme O importante é amar (Andrzej Zulawski, 1975).

Porque nessas atrizes, tornadas objetos de culto, fetiche, a partir de certo momento, podíamos identificar uma aparente dilaceração do eu, uma espécie de desaparição do eu que as tornava uma beleza desencantada. No caso de Romy Schneider, um estado de melancolia infinita a consumia sob as lágrimas e o rímel borrado. Mas, antes de Romy Schneider, penso em Greta Garbo, Ava Gardner, essas primeiras grandes atrizes de Hollywood que, quando perdiam sua beleza, porque envelheciam, começavam a desaparecer para o imaginário de Hollywood, tornando-se figuras esquecidas. É o que mostra Billy Wilder no filme Crepúsculo dos deuses (Sunset Boulevard, 1950), com a personagem de Gloria Swanson.

Estes são os três vetores que me levaram a pesquisar sobre o campo da moda. No caso de Walter Benjamin, seu livro sobre As passagens, o Jugendstil (estilo jovem), enlaçado à criação das vitrines, das galerias de Paris na Belle Époque. Podemos vincular essa identificação de um novo modo de vida à relação entre o transitório e o efêmero, categoria que Walter Benjamin consigna a Baudelaire, como emblema ontológico da modernidade. Trata-se do eterno retorno do novo. Walter Benjamin não fala propriamente do espírito do tempo, mas sim das transformações nas formas da percepção a partir dessa figura emblemática do flâneur de Paris, representado pela figura de Charles Baudelaire. Esse seria um ponto de partida para mim, mas me parece importante desdobrá-lo e atualizá-lo, criar um conteúdo contemporâneo para essas inquietações, e não só ficar no começo do século XX, com o Walter Benjamin e a Paris da Belle Époque. Portanto, quais seriam essas formas atuais?

A passagem do século XIX para a nossa contemporaneidade é, para qualquer pessoa interessada no mundo da moda, o motor de uma investigação sobre a sensibilidade em torno da moda. Eu não me interesso pelas questões puramente históricas ou sociológicas do tema da moda - como no trabalho de Roland Barthes, que é uma tentativa de resgatar a moda como fenômeno histórico e também como fenômeno sociológico, e que vai se condensar no texto Sistema da moda3. No momento em que a moda se torna mais do que um fenômeno histórico-sociológico, ela ganha terreno no campo linguístico, tornando-se um discurso -virada que Roland Barthes identifica quando começa a fazer pesquisas tendo como objeto as revistas de moda, particularmente as dos primórdios dos anos 1980.

Não considero os aspectos que Roland Barthes estuda no livro Sistema da moda tão interessantes. Mas as pistas que ele nos oferece são fascinantes. Sua abordagem da moda como sistema - ou seja, como um valor em nossas sociedades, que só pode ser traduzido porque é exprimível por muitas vias - se dá por meio da operação estruturalista do significado e do significante. Aqui, Barthes nos apresenta um trabalho com todos os paradigmas da pesquisa linguística de cunho estruturalista. Essa visão não se sustenta contemporanea-mente porque a moda não é apenas linguagem. Existe outro viés de interpretação da moda, para o qual o filósofo italiano Giorgio Agamben chama a atenção no seu livro Nudità, que é a assinatura teológica. E ela, com certeza, se desemoldura da análise estruturalista, porque se torna, na verdade, uma discussão mediada pela metafísica da linguagem, superando aquela do signo semiótico proposta por Roland Barthes.

 

A moda em múltiplos vértices

RBP Quando surgiu na equipe da revista o tema da moda, ficamos surpresos com a diversidade de abordagens para pensá-la. Acho que na Revista Brasileira de Psicanálise nunca se publicou algo sobre moda; então, também estamos inventando uma moda. Você está falando de Roland Barthes, de Giorgio Agamben... a impressão é que cada um desses pesquisadores põe em ação o modelo que ele tem para pesquisar. E parece que a moda presta-se a ser um objeto de investigação por vários vértices. O que você pensa?

LSR A moda é objeto de estudo porque é parte do campo da cultura e da subjetividade. Então, é claro que vai ser perpassada por todas as discussões. Ela não é só linguagem: também é filosofia, ontologia, metafísica e forma de ser. Na verdade, é persona, no sentido da definição do sujeito. Consequentemente, vai se tornar objeto de todas as ciências ou, pelo menos, ela vai permear todas as áreas do conhecimento, porque ela é cultura. A moda vai ser contemplada em termos de produção de discurso. Esse seria o exemplo do livro de Peter Stallybrass, O casaco de Marx,4 em que o autor estuda o vínculo simbólico da dor com as roupas, e seu desdobramento na memória afetiva. Trata-se de outra leitura que, para vocês, psicanalistas, poderia ser, além de uma leitura poética, uma clínica, porque explora a questão do sintoma e do fetiche relacionado com as vestimentas no âmbito do trabalho de luto.

 

Vestimenta como memória da perda

LSR Cheguei ao texto O casaco de Marx não porque me interessasse propriamente a moda ou o vínculo simbólico com as roupas, mas porque me interessa muito o trabalho do artista plástico francês contemporâneo Christian Boltanski, que acabou de fazer uma exposição no Sesc Pompeia.5 Seu trabalho é voltado para a memória e sua interface com a morte, particularmente a memória do Holocausto. Sua monumental instalação Personnes, de 2010, no Grand Palais de Paris, apresenta várias pilhas de roupas e um guindaste, que vai pegando grandes volumes de roupa e colocando-os numa torre de roupas empilhadas. Na verdade, trata-se de um processo infinito de caçar a roupa e de jogar a roupa, organizar a roupa e desorganizar a roupa. Quando vi essa exposição, eu estava procurando algum apoio literário para pensar o vínculo das roupas com a memória. E foi no livro de Peter Stallybrass que encontrei o seguinte fragmento:

Eu lia sobre roupas e falava aos amigos sobre roupas. Comecei a acreditar que a mágica da roupa está no fato de que ela nos recebe: recebe nosso cheiro, nosso suor; recebe até mesmo nossa forma. E quando os nossos pais, os nossos amigos e os nossos amantes morrem, as roupas ainda ficam lá, penduradas em seus armários, sustentando seus gestos ao mesmo tempo confortadores e aterradores, tocando os vivos com os mortos. Mas, para mim, elas são mais confortadoras que aterradoras, embora tivesse sentido ambas emoções, pois eu sempre quis ser tocado pelos mortos, eu sempre quis que eles me assombrassem. Eu tenho até mesmo a esperança de que eles se levantem e me habitem: e eles literalmente nos habitam através dos hábitos que nos legam. Eu vesti a jaqueta de Alan. Não importa quão gasta estivesse, ela sobreviveu àqueles que a vestiram e, espero, sobreviverá a mim [...] Os corpos vêm e vão: as roupas que receberam esses corpos sobrevivem. Elas circulam através de lojas, de brechós e de bazares de caridade [...] As roupas recebem a marca humana [...] Tal como a comida, a roupa pode ser moldada por nosso toque, tal como as joias, ela dura além do momento imediato do consumo. Ela dura, mas é mortal. Como diz Lear, de forma desaprovadora, a respeito de sua própria mão: “ela cheira à mortalidade” (Stallybrass, 2008, pp. 10-11).

Porque, no fundo, a exposição de Boltanski apresenta um grande ausente, esses sujeitos que vestiam as roupas. A partir dessa instalação e do fragmento do texto de Stallybrass, pude identificar a relação entre a imagem e o cadáver, as formas da perda que se articulam nas roupas, o conceito de sobrevida (Nachleben), que se apresenta tanto em Peter Stallybrass como em Christian Boltanski. Porque as roupas vêm a confirmar que o cadáver está vivo como cadáver e que passa a ser uma imagem viva de uma ausência, como nos fala Roland Barthes.

RBP No Museu do Holocausto tem a impressionante sala dos sapatos.

LSR Mas o caso dos sapatos é ainda mais dramático. Como fala Walter Benjamin, a única coisa que guarda a memória de nosso corpo são os sapatos. Lembremos esse trecho do livro Rua de mão única,6 em que Benjamin nos fala das formas dos sapatos. Os sapatos guardam e preservam a memória da forma de nossos pés. Essa parte do Museu do Holocausto, em Washington, é muito impressionante porque também, além dessa memória, os sapatos nos falam de uma presença.

RBP Em É isto um homem,7Primo Levi diz que a única coisa que é imprescindível para você eventualmente conseguir sobreviver em um campo de concentração é um bom par de sapatos, que era o que se trocava.

LSR A sobrevivência se dava em função de se ter um sapato. Era um signo da sobrevivência. Essa parte do livro de Levi é comovente porque coloca a questão de como se articula a sobrevivência através dos pertences. E, neste caso, é isso o que Boltanski faz: por meio de suas grandes instalações, particularmente a do Grand Palais, ele busca instaurar a memória da perda, da ausência, por meio das vestes, das roupas e da indumentária. Lembremos que a indumentária também indica uma presença. O início do livro de Peter Stallybrass apresenta o momento em que morre o amigo Alan, o que nos faz pensar que existe um relato da perda, o luto possível, e a pergunta que devemos elaborar então é: o que fazer com as roupas? Preservar a roupa é preservar o amigo, jogar a roupa é esquecer-se do amigo?

No livro O casaco de Marx, Stallybrass estuda a economia política da mercadoria. Ele compreende perfeitamente por que o casaco de Marx se torna moeda de intercâmbio para ele poder sobreviver em Londres: ele tem que penhorar o casaco porque é o único objeto de valor que possui e o único objeto que pode, de alguma maneira, trocar para poder reproduzir uma vida menos miserável em Londres.

Toda essa forma do sensível na roupa tem um forte fundamento romântico. Por isso o livro de Gilda de Mello e Souza, O espírito das roupas,8 é muito importante, porque ela decifra essa pista, a importância do Zeitgeist (“espírito da época”) do espírito das roupas, que ela localiza na experiência romântica. Entende-se por que são tão importantes para ela os livros de Machado de Assis: como as mulheres se comportavam, o que elas podiam esconder, ou o que elas podiam revelar.

 

Moda entre sintoma e fetiche

RBP O casaco de Marx centra-se na ideia da roupa como mercadoria e objeto, um caminho que leva até o fetiche, mas que por outro lado cria uma tensão com a ideia da memória, do afeto, de outra coisa que está investida. Como se houvesse duas perspectivas: uma que vira mercadoria, elemento de troca, e que se dessubjetiva de algum modo; e outra que é quase oposta, no sentido de que a roupa traz uma carga afetiva.

LSR Isto não se afasta do tensor básico, porque Stallybrass trabalha permanentemente com esse binômio fetiche/sintoma quando se trata da memória afetiva. Minha pergunta para vocês, psicanalistas, é se a experiência da clínica deveria ser a de revelar o sintoma. O que está colocado aqui, desde o começo da narrativa de Stallybrass - e que ele tece de maneira quase autobiográfica -, é o vínculo com seu amigo finado, até chegar às outras formas, como o próprio casaco de Marx. Então, nos encontramos diante da construção de uma narrativa ou de uma história a partir do objeto - a roupa - e de como essa história pode revelar o problema do sintoma. Esse vínculo com o fetiche seria a roupa, e como Stallybrass, fazendo toda a travessia simbólica, acaba revelando o sintoma. Trata-se de um clamor por essa relação entre o fetiche e o sintoma. É claro que esta é minha leitura do texto de Stallybrass. No caso de Schelling ou de Marx, já estamos no âmbito de leitura do fetiche no sentido de uma forma simbólica alienada, um efeito em meio ao mundo das necessidades - no caso de Marx, o ato de penhorar o casaco, a forma simbólica, se torna uma moeda de troca. Totalmente diferente do começo do texto de Stallybrass, que se inicia justamente com o relato da perda, o relato lutuoso, o trabalho de luto. Portanto, como aprendemos a preservar? Porque, ao mesmo tempo que se preserva, preservamos também uma presença. Todo esse relato das formas da perda é colocado aí, como falaria Georges Didi-Huberman, como uma melancólica história da perda.

 

Moda e tempo

RBP Podemos pensar que estar na moda é exatamente não estar.

LSR É justamente o que fala Giorgio Agamben: no momento em que você anuncia “Eu estou na moda”, nesse mesmo momento você está démodé, porque não existe a possibilidade de a própria moda se alcançar no seu próprio postulado enunciatório. No instante em que ela se anuncia, ela já está desfasada. Giorgio Agamben nos fala da coexistência entre o atual e o inatual, que é a moda. De fato, trata-se de identificar essa tensão na própria divisão que existe entre o que é estar na moda e o que é não estar na moda. O atual da moda imediatamente se torna démodé, porque o que se afirma na moda é uma permanente descontinuidade no tempo. É um impasse que se opera entre a conciliação do tempo da moda e o tempo da sua enunciação. Agamben trabalha muito bem com essa separação, porque para falarmos de moda existe um distanciamento do espaço e do tempo. Por isso ele fala que a moda poderia se identificar como um pas encore, ou “ainda não”, e um non plus, ou “não mais”. Esses são os polos de interpretação que ele estabelece. Mas, na verdade, trata-se é de uma imprecisão; o ainda não e o não mais representam uma imprecisão verbal, uma agramaticalidade, e é isso o que ele identifica como a inatualidade na moda, que opera no âmbito do anacrônico.

 

Moda, erotismo e obscenidade

RBP Achei interessante a sua trajetória a partir de ícones da beleza feminina, como uma referência que se impessoaliza quando a pessoa não mais sustenta isso: o ícone desaparece e ele precisa ser substituído por outro com igual função. No caso, a beleza, que poderia parecer um valor estético, seria, ao contrário, puro fetiche?

LSR Nas atrizes de Hollywood, concordo. Mas não no caso que coloca Walter Benjamin na parte final de seu ensaio consagrado às Afinidades eletivas: ali, ele se pergunta, a propósito da personagem Otília, sobre a relação entre o véu e o velado, aparência e essência na beleza. Na beleza, o véu e o velado, o envelope e aquilo que ele envolve, estão relacionados por um vínculo necessário, que Benjamin qualifica como secreto (Geheimnis). O objeto belo é aquele para o qual o véu é essencial. É por esta razão que a beleza é na sua essência indesvendável. Pois a beleza é a única realidade que pode ser essencialmente encoberta e velada - é nesse secreto que reside o fundamento divino ontológico da beleza. Esta lei que une inseparavelmente à beleza o véu e o velado nos remete ao ser humano e sua nudez. No corpo humano, e particularmente no romance de Otília, que é o paradigma da aparência pura, segundo Benjamin, a beleza não pode ser mais que aparente. Por tal razão, com as obras de arte e os fenômenos naturais, o princípio de impossibilidade do desvendamento perde valor; com o corpo, ao contrário, este princípio, segundo o qual nada mortal é desvendável, se mantém vigente. Não apenas porque a possibilidade de ser desnudada condena a beleza humana à aparência mas porque o desvendamento se constitui de alguma maneira em uma cifra. A aparência que é sublime na medida em que ela exibe sua própria vacuidade e deixa advir o inaparente por tal exibição. Se a beleza é secreta, ou seja, a relação necessária de aparência e essência, de velado e de véu, aqui a aparência se desata desse vínculo e brilha por um instante, como aparência do bem.

RBP Que é o que em psicanálise a gente chama de desejo.

LSR Sim. Lindo.

RBP Lembrei Marilyn Monroe e a questão do velado e do não velado, bem como a ideia do erotismo ligado à moda.

LSR O erotismo ligado à moda é absolutamente obsceno. Eu insisto em observar não só a teoria de Giorgio Agamben mas também a proposta da Beatriz Preciado em seu livro Pornotopía.9 Na verdade, ela toma como marco a categoria de heterotopias, elaborada por Michel Foucault, e apresenta uma pesquisa em torno do que é o imaginário da revista Playboy no começo dos anos 1950. Trata-se de sua tese de doutorado no Departamento de Arquitetura da Universidade de Princeton, orientada por Beatriz Colomina, uma teórica da arquitetura que trabalha o vínculo entre a sexualidade e o espaço - assunto que poderia nos parecer muito alheio à arquitetura, mas Colomina problematiza o espaço da intimidade para a arquitetura, nos oferecendo uma atrevida teorização sobre o espaço. Ela propõe assuntos algo inéditos para a crítica da arquitetura.

Beatriz Preciado identifica um tema muito lindo: com a emergência do international lifestyle dos anos 1950, dá-se também uma transformação no âmbito da intimidade das pessoas, particularmente, do sujeito masculino. Na América, cria-se um novo emblema visual: a revista Playboy, de entretenimento adulto para homens, praticamente. A transformação, nos anos 1950, da sociedade americana fordista para a pós-fordista (que se consolidará nos anos 1980), com a difusão da vida nos subúrbios, a revolução dos eletrodomésticos e a generalização do uso do carro, proporia uma grande alteração nas formas de vida que aspirava disseminar um modo de vida associado à esfera do consumo. Trata-se da “revolução americana” após o Estado keynesiano. Beatriz Preciado identifica que os homens começam a sair da estrutura familiar suburbana. No momento em que surge a revista Playboy, os homens começam a se descasar; depois começam a viver sozinhos e a conviver sob as categorias do mundo publicitário. Essas categorias foram incorporadas e criaram, como diria Foucault, um tipo de individuação, um tipo de subjetivação, com a noção do homem solteiro, do homem que quer morar num estúdio, e se inicia toda a transformação na arquitetura, em que se observa a eclosão dos chamados lofts. Em meio a essa revolução do espaço orientado ao “homem liberal”, cria-se uma espécie de fantasia coletiva masculina, animada pela aparição da Playboy, que Beatriz Preciado identifica como “pornotopia”. Preciado estuda justamente essa transformação entre o que é o decoro, o que seria a pudenda, e o que é o obsceno, o que se oculta nessa dialética, nessa tensão entre o que é mostrar e ocultar. Preciado nos fala, por exemplo, do século XIX, quando a burguesia começa a ocultar os móveis por meio de umas vestimentas, umas capas que tinham como função proteger os móveis. É uma noção da roupa como proteção, roupa como ornamento, roupa como decoro. Isso ocorre igualmente no espaço de intimidade, porque esse espaço também terá de ser protegido. O obsceno aqui se daria justamente na medida em que o interior se revela. É o que fala Roland Barthes em Sistema da moda: no justo instante em que se dá esse impasse, essa tensão entre o interior e o exterior.

Nesse momento de tantas transformações nos conceitos de decoro e de obscenidade, criam-se as figuras do vaudeville, os prostíbulos, os bordéis, o striptease, que partem também dessa cultura de separação entre a esfera do público e do privado. Na leitura de Beatriz Preciado, esse Eros não é um erotismo no sentido socrático de conhecimento. Ele é obsceno, é grosseiro - parte da necessidade de as pessoas mostrarem mais do que poderiam mostrar. Essa falta de recato, essa falta de pudor, de decoro, é parte desse imaginário, desse tensor obsceno, que não parece erótico, mas sim pornográfico.

O próprio Barthes, em seu livro Câmara clara,10 fala que na fotografia pornográfica aparece tudo. A pornografia é uma instância em que o ser se revela. (Tudo isso entre aspas, porque não sei se existe tal revelação do ser por inteiro, porque uma revelação por inteiro estaria vinculada com a morte.) A outra é a foto erótica, que é a foto que preserva o segredo. E esse segredo, para Barthes, é umas das figurações conceituais do punctum.

 

Moda e o eu na literatura

RBP Você partiu da literatura e podemos pensar a literatura como um modo privilegiado de sustentar o equilíbrio dinâmico entre polos em permanente relação dialética. Porque tensão supõe algo que se mantém dinamicamente em equilíbrio, ou seja, que tem um movimento que não chega a promover uma ruptura. Nós temos, em nossa subjetividade, uma espécie de literatura pessoal, uma tentativa, talvez heroica, de sustentar a própria individualidade frente ao que é de natureza social.

LSR Essa é uma possível leitura, depois eu queria fazer uma desleitura. A leitura será a construção pelo imaginário literário de certo “eu”. A literatura é um estado pessoal. Como fala Maurice Blanchot, quase todas as literaturas alimentam-se de um único episódio. Na verdade, todas são formas homéricas modernas. Por exemplo, Ulisses e a volta a Ítaca. Melville e Moby Dick, história de um episódio, do vínculo entre Ahab e a baleia - imagem inesquecível, persistente na memória e que se torna um fetiche que o leva à morte. Nesse sentido, existe na moda a ideia de construir uma narrativa, certa particularidade da nossa própria existência; ela se faz literatura porque cria um percurso. Para mim, isso é literatura.

A desleitura seria pensar nessa construção narrativa que torna o sujeito da ação da “fábula” uma figura que não é particular. Como você constrói uma história sem aquele que é o motor da história, como fala Benjamin? Ele não é um particular? E ele se desfaz na narrativa, vai desaparecendo, ele não constrói experiência, porque existem narrativas sem plot, o tensor da história. E se nos encontramos com narrativas sem plot, em que não temos tensão, pois não temos história; se desparticularizamos o sujeito herói, que narrativa poderemos construir? Teríamos experiências para contar?

RBP Tem os outros.

LSR Lógico que tem os outros. Tem o caso do Bartlebly, de Herman Melville. O herói continua, herói entre aspas, porque é sem atributos - como O homem sem qualidades, de Robert Musil -, porque é totalmente descaracterizado, ninguém sabe da sua história, não tem passado, não constrói experiência, não tem Erfahrung (“experiência”). É um dos poucos personagens de Melville que não é marinheiro, quer dizer, que não faz a viagem, e, se for marinheiro, é de terra firme, ancorado no coração do capitalismo financeiro emergente, que seria Wall Street, e tornado quase um biombo na parede de um escritório de advocacia. Em outras palavras, a literatura nem sempre faz experiência, nem sempre tem heróis na acepção do herói de Lukács, que vai dar uma coerência histórica a um coletivo. Nesse sentido, não é obrigatório para a literatura construir narrativas de experiência. Ela pode estar ausente, a experiência pode estar ausente, e a literatura continua sendo literatura porque é linguagem. Eu acho que os romances de Melville mostram isso. É claro que se trata da minha leitura: parece que, para a América, Melville é um dos grandes escritores, vinculado não apenas a Henry James na Nova Inglaterra mas também à experiência do transcendentalismo norte-americano, que navegou do empirismo inglês. Essa seria a minha desleitura. Porque senão não existiriam homens sem atributos, homens sem qualidades. Esses antirromances são romances em que o sujeito vai se perdendo em sua recusa ontológica, em seu “Acho melhor não.”

 

Moda, subjetividade e experiência do eu

RBP A moda representa as relações de poder em uma sociedade. Por exemplo, em Nova Iorque você encontra algumas pessoas cuja indumentária é alguma coisa enigmática, transgressora ou de resistência. A roupa tem um sentido e, além da memória, ela fala da subjetividade, das tribos, das questões de gênero, das relações de poder e dos lugares do sujeito nas culturas.

LSR Olgária Matos fala que contemporaneamente não existe maneira de ser transgressor. Porque contemporaneamente tudo está permitido, nada é proibido. Então, a pretensão, ou aspiração, de um sujeito de se emancipar, de chegar a certo estado de liberdade, por meio do dress code é militância morta. Porque a moda já nasce como secularização. É o que o Agamben fala: no momento em que se dá a queda, aí se origina a moda. Porque nós perdemos as vestiduras da graça e ganhamos as vestiduras do obsceno.

A queda é o pecado original. Antes do pecado original, tínhamos roupa, pois eram as vestiduras da graça. É por isso que Santo Agostinho fala do estado de glorianda. No momento em que saímos do estado de glorianda, reparamos que estamos desvelados, sem roupa, passando a um estado de pudenda, ou de secularização da vestimenta. Esse momento, segundo Agamben, não tem outro espaço que não seja o mercado. Em outras palavras, a secularização da vestimenta é o momento em que o mercado entra e começa a vestir a todos.

Evidentemente, o dress code representa uma normativa, é um valor para Barthes e um indício para Agamben. Isso seria, segundo Barthes, a diferença entre o significado e o significante: o significado é sujeito a determinadas questões políticas, raciais, culturais e de classe, e o significante seria a história das formas e suas transformações. O Barthes fala das formas da silhueta, quer dizer, as formas de subjetivação e de individuação. Se você quiser, de hominização: como você cria uma persona ou uma personagem. Podemos acreditar que essas figuras de Nova Iorque são indecifráveis, mas eu penso que são decifráveis. Todo mundo é decifrável de alguma maneira, porque esses símbolos não são a-históricos. Todos esses símbolos - adornos, ornamentos... - vão se compondo como num patchwork; essa subjetividade vai se criando por retalhos. Trata-se de uma fragmentação absoluta colocada em uma forma que, na verdade, representa um artifício. É tudo um artifício. É claro que observaremos os cabelos dos anos 1980, o hipster posseiro do Brooklyn, a barba e o bigode de antes da metrossexualidade. É a necessidade de conciliar todos os vocabulários - são todos os vocabulários em um corpo. Evidentemente tudo isso tem a ver com uma história; não há nenhuma exterioridade à história. Tudo isso parte, na verdade, de uma história do movimento da moda, da história das formas, da história do cinto, da cor... Não é extrínseco a uma história das formas da vestimenta. Em O diabo veste Prada, há um momento em que Miranda (Meryl Streep), uma editora de moda, está diante de uma arara cheia de roupas; sua assistente vê um cinto e começa a rir. Então Miranda diz: “Olha, você não pensou pela roupa que você tem porque alguém pensou por você”. É isso o que diz Agamben: “Nós somos as vítimas sacrificiais de um deus sem rosto”, que é o universo da moda. O que a personagem estava falando para a assistente era que não temos a possibilidade de escolher nada. Esse vínculo com o arquétipo, na verdade, é produto da nossa melancolia, da nossa nostalgia por alguma coisa que poderia ser original, mas não há ontologicamente nada que seja novo ou original. O próprio Benjamin fala que se trata de um eterno retorno.

RBP Eu gostaria de trazer a ideia da queda da graça e da obscenidade do Agamben para o campo da experiência psicanalítica do eu. Na modernidade, há uma crise do eu na literatura, o ego se esfacelando de diferentes formas. E esse é o momento em que Freud começa a escrever, essa fenda por onde entra a psicanálise. A moda não faz com que esse eu em fragmentos tente se restaurar, como uma espécie de prótese (uma necessidade de, através desse imaginário da moda, se organizar de algum modo possível frente à fragmentação, frente à ideia do efêmero)? Como se a moda fosse um sintoma.

LSR A necessidade não me parece que seja produto da fragmentação. A necessidade, insistindo no Agamben, é produto do pecado original. Daí se cria uma metafísica problemática, uma ontologia problemática. Parte do processo de hominização, da formação de um tipo de subjetividade. Em outras palavras, essas histórias são muitas e as interferências também são muitas. Mas eu não vinculo essa dilaceração com o significante parasitário, apegado à verdade das imagens. A moda não é sintoma porque ela é necessidade. Quando você pensa no princípio de mimese, dentre os animais, os únicos que não têm marcas de nascimento somos os humanos. Existe o animal print, que são as estampas do corpo dos animais, com as formas e as cores. Dentre todas as espécies com vida, nós somos os únicos que não temos essa marca de nascimento. Podemos ter uma mancha no rosto, uma pintinha, coisas assim, mas além desses elementos, que na verdade são quase acidentais, a gente não tem essas marcas. Então aí vem o artifício. O ser humano cria uma série de artifícios por alguma inveja mimética, uma mimese negativa e conflitiva. Começamos adornando os corpos: body piercing, as tatuagens, mudamos a cor do cabelo, a cor dos olhos... - em matéria de artifícios, a lista é infinita. Trata-se de uma necessidade de imitação por oposição ou por semelhança. Na body art, por exemplo, temos a Orlan, uma artista francesa, que vai alterando o próprio corpo com próteses, escalpelando a pele... - enfim, ela vai transformando sua natureza. Tudo isso entre aspas, porque é claro que não se trata apenas de uma natureza; em todo caso, trata-se de uma segunda natureza.

RBP Dessa necessidade, um lacaniano diria o registro da falta, mas podemos falar da queda. Voltando à literatura na passagem da modernidade, no conto “O espelho”, de Machado de Assis, no momento em que todos vão embora, o alferes, sem o uniforme, se olha no espelho e não se reconhece. Podemos pensar nas marcas que a roupa outorga ao corpo como um lugar possível. O alferes tem uma vivência de despersonalização. Quando novamente veste o uniforme e se olha no espelho, este eu se reconstitui. A questão do homem contemporâneo é como conviver não só com a questão do desejo mas com a questão dessa identidade difusa. Ante a proliferação de sistemas de pensamento, as pessoas buscam muitas vezes se apegar a uma roupa de alferes também, como que dizendo: “Agora eu tenho uma identidade, eu sou isto”.

RBP A modernidade traz uma novidade que é a constituição melancólica do eu, uma situação melancólica constitutiva do eu. Como pensar uma ligação entre esse fenômeno, que tem localização histórica, com a ideia do Agamben do pecado original, que em certo sentido é atemporal?

LSR Claro que a origem é a falta. Essa melancolia é essencial. Mas isso vinculado à atualidade e ao conceito do moderno. O próprio Agamben o coloca como essa ponte que se dá entre o passado e o presente, em que o presente ainda não foi vivido. Talvez a tarefa de vocês, psicanalistas, seja a de atualização do eu na prática clínica, trazer para o presente o que não foi vivido.

Nesse momento, Agamben cita o Benjamin: talvez a opção temporal seja a saída de Benjamin na noção que ele tem do passado, do presente e do futuro, quando fala “Ler aquilo que nunca foi escrito” (Was nie geschrieben wurde, lesen) - que é o que Benjamin vai desenvolver, mais tarde, em seu conceito de história. Nesse interstício se dá a discussão em torno do contemporâneo. Benjamin vincula-se a Agamben na noção do contemporâneo que não elimina o passado, mas também não o torna um passado imemorial, museificado - nessa contemporaneidade, nessa conciliação como falava o Benjamin, dos Jetztzeit (“agoricidade”). Na verdade, eles vivem simultaneamente. Eles não se chocam, são presenças simultâneas. Convivem. Então me parece que esse é o espaço do contemporâneo. Seria interessante de ver, na prática psicanalítica, a narrativa da dor apegada ao memorial, ao trauma. Trata-se de como fazer advir ao desejo, em termos lacanianos, reconhecendo o não vivido no presente, porque, na verdade, quando nos apegamos à dor, de alguma maneira, o que acabamos sUSPendendo é o presente, a vida (Leben) do presente.

 

Narcisismo contemporâneo

RBP Falamos da necessidade do secreto, do espaço reservado, para a constituição da subjetividade; do pornográfico, em que está tudo exposto; e do erótico, como algo relacionado ao desejo e ao velado. Como você pensa essa moda de agora, em que tudo é exposto, tudo é revelado - uma necessidade do preenchimento absoluto na exposição: “Estou aqui, estou fazendo isso”?

LSR Essa pergunta leva a pensar o narcisismo contemporaneamente. Estamos falando de uma ditadura da intimidade, do vale-tudo da cultura contemporânea. É claro, com suas políticas de exclusão.

Eu gostaria de devolver a pergunta, porque a questão é justamente se a definição de Freud continua vigente. A minha é uma leitura de amadora. Mas a imagem de si existe como problema. Em que momento “desoperamos” a questão do Narciso? Pensando não só no mito de Narciso mas na leitura freudiana, isso está vinculado a uma sociedade mais do que hedonista, cínica, que não se subtrai ao direito de gozar sem culpa. O que era a importância da libido e do desejo agora recai na importância do gozo. É isso. É a transição da libido, dessa pulsão que já não é mais, talvez pulsão de morte. Eu queria colocar isso pra vocês como reflexão.

Tudo o que vocês estão falando são narrativas em torno de uma contemporaneidade absolutamente obscena, que tem tudo para revelar e não tem nenhuma noção de o que é vergonha, pudor, decoro, porque está tudo permitido, embora, como fala Agamben, ao mesmo tempo, sejamos tão intolerantes.

RBP Freud propõe o narcisismo em um determinado momento no qual percebe a necessidade do investimento libidinal na imagem de si. Mas essa noção de narcisismo vai perdendo força quando surge a pulsão de morte. Alguns analistas pensaram em um narcisismo de morte, narcisismo negativo. André Green, por exemplo, o pensa na ordem do mortífero, do que desestrutura, do que não faz vínculo, do que desfaz. Jurandir Freire Costa fala do narcisismo em tempos sombrios, de uma necessidade desse elemento narcísico para se sustentar. A psicanálise se encontra num impasse com essa questão do narcisismo. Vivemos em um tempo do traumático, de dificuldade de realizar experiência, da vivência que não se transforma em experiência. Então talvez pudéssemos estabelecer uma ponte entre a ideia de Agamben do fracasso da intimidade e a ideia do narcisismo mortífero, do gozo sem culpa, mas que em última instância é mortífero.

LSR Quando Agamben faz a leitura de Santo Agostinho, De Civitate Dei (A Cidade de Deus), ele fala do momento em que se perde a graça, que é a vestidura divina. Com Santo Agostinho, registramos algo que não aparecia na vida edênica, do paraíso, que é a presença da libido. Santo Agostinho coloca a libido como a instância da vergonha. No momento em que Adão reparou que Eva estava nua, ele ficou envergonhado. Este foi o momento em que o sexo se viu como sexo, e não como parte integrante desse corpo divino. A noção anterior era a de um corpo absoluto inteiro. No momento em que se abre o olho, se fragmenta o olhar - e o desejo não é isso, a fragmentação do olhar? Pois quando você deseja alguém, não deseja ele por inteiro; quando pensa nele, você pensa em partes: o cabelo bonito, os lábios carnosos... No momento de abrir os olhos, cria-se a libido. E essa libido, para Santo Agostinho, é obscena na medida em que não se oriente para a reprodução. Por isso, segundo ele, a importância de o homem colocar o sêmen no órgão reprodutor da mulher: porque é a única maneira de se redimir do pecado original e criar, reproduzir, a vida da graça na terra. A reprodução aparece como reparação da culpa original. Nessa leitura de Santo Agostinho, a libido entra como um elemento de conflito, porque ou é a libido voltada para o desejo, ou a libido voltada para reprodução. Nessa divisão está todo o problema da teologia cristã que chega até nossos dias. Essa teologia da vestimenta que ele faz é preciosa, porque, na verdade, o grande problema da teologia cristã não se dá em torno da nudez, mas em torno da vestimenta - essa necessidade de investir o corpo, no sentido da vestimenta.

RBP O narcisismo de morte, por ser um fenômeno contemporâneo, é menos conhecido pelos psicanalistas - ele é acessível a partir do momento que a cultura vai desumanizando o próprio homem. A questão da culpa é mais conhecida. Mas o gozo sem culpa é uma questão em que temos dificuldade, por mais desconhecida e por sua natureza mortífera e não reparável. E coloca a indagação de como sobreviver a isso, interessante para a filosofia também, não só para a psicanálise.

LSR Isso me fez pensar que esse narcisismo negativo parece o estado proposto por Agamben no livro Homo sacer. Esse momento de gozo sem culpa é o momento em que o sujeito, entre aspas, está mais suscetível à interferência da biopolítica, da bioeconomia, todos os corpos em torno do corpo, as misérias humanas... Enfim, é um momento em que estamos mais suscetíveis. Na verdade, essa categoria de Agamben é um diálogo que ele estabelece com o Foucault da biopolítica. Aquele que goza sem culpa está mais exposto também a todas as “tecnologias do eu” contemporâneas. Ora como bioeconomia, ora como biopolítica, ora como biopoder, ora como biofarma, com suas happy pills - toda essa indústria da felicidade química. Estamos mais suscetíveis de sermos um sujeito medicado, um sujeito doente, que pode ser sujeito, mas sem subjetivação; sujeito sem alma, cadáver ambulante, quase letra morta. Trata-se de uma discussão vindoura que se coloca para a filosofia como aquela expressão de Maurice Blanchot: “Antigamente, os filósofos sentiam assombro; contemporaneamente, os filósofos sentem medo”.

RBP Agradecemos por sua generosidade e gentileza em nos conceder esta entrevista.

 

 

1 Doutora em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Professora de Filosofia e Arte Contemporânea da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (EFLCH)/Unifesp-Guarulhos. Atualmente, trabalha na pesquisa “Buscando a medida incerta: anoréxicos, gordos e languidescentes na arte, na arquitetura e na literatura a partir das vanguardas”.
2 Entrevista realizada no dia 7 de junho de 2014, na sede da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Participaram: Audrey Setton Lopes de Souza, Bernardo Tanis, Raya Angel Zonana, Rogério Nogueira Coelho de Souza e Susana Muszkat.
3 São Paulo: Martins Fontes, 2005.
4 Belo Horizonte: Autêntica, 2008.
5 A exposição chama-se Boltanski 19 924 458 +/-.
6 São Paulo: Brasiliense, 1987.
7 Rio de Janeiro: Rocco, 2013.
8 São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
9 Barcelona: Anagrama, 2010.
10 Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.

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