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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.48 no.3 São Paulo set. 2014

 

COMENTÁRIOS SOBRE A ENTREVISTA

 

Moda, sapatos e grifes

 

Fashion, shoes and brands

 

Moda, zapatos y marcas

 

 

Marion Minerbo

Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)

Correspondência

 

 


RESUMO

Em “Moda, sapatos e grifes”, uma psicanalista dialoga de forma leve e bem-humorada com uma filósofa em torno do assunto moda, explorando alguns recortes possíveis: desde a compulsão a comprar de uma “vítima da moda”, passando pela moda como linguagem, em seguida como forma de arte, e finalizando com o olhar de um crítico de arte sobre a moda das ruas.

Palavras-chave: moda; compulsão a comprar; grifes.


ABSTRACT

In “Fashion, shoes and brands”, a psychoanalyst dialogues with a philosopher in a light and humorous way about fashion, exploring some possible perspectives: from the compulsion to shop of a fashion victim, passing through fashion as a language, and then as an art form, ending with an art critic's view on street fashion.

Keywords: fashion; compulsion to shop; brands.


RESUMEN

En “Moda, zapatos y marcas”, una psicoanalista conversa de forma amena y bienhumorada con una filósofa sobre el tema de la moda, explorando algunos recortes posibles: desde la compulsión por comprar de una víctima de la moda, pasando por la moda como lenguaje, después como forma de arte, y finalizando con la visión de un crítico de arte sobre la moda en las calles.

Palabras clave: moda; compulsión por comprar; marcas.


 

 

A entrevista com Lilian Santiago Ramos realizada pela Revista Brasileira de Psicanálise nos estimula a pensar sobre a moda, sistema cultural que vem sendo estudado por meio de diversos recortes: como fenômeno sócio-histórico, estético, estrutural, linguístico, semiótico e outros. Como diz a filósofa, a moda “não é só linguagem: também é filosofia, ontologia, metafísica e forma de ser. Na verdade, é persona, no sentido da definição do sujeito” (grifo meu). Esta última afirmação me remeteu ao que poderia ser um recorte propriamente psicanalítico: o sujeito se constitui na cultura, através de seus sistemas simbólicos e de suas significações operantes - entre elas, aquelas ligadas à moda.

Comecei a me interessar pelo tema na década de 1980, quando analisava uma paciente que apresentava uma compulsão a comprar, mais especificamente, a comprar roupas de grife. Eu me perguntava: como o consumo e o desejo de estar na moda, comportamento culturalmente determinado, e socialmente esperado, pode se tornar sintomático? Como uma forma de ser pode se tornar também uma forma de sofrer? Meu doutorado, depois transformado em livro, investigava esta questão (Minerbo, 2000). Entendi que para esta paciente a grife funcionava como prótese de uma identidade claudicante. O sofrimento narcísico ficava relativamente compensado quando entrava em uma loja chique, cujas vendedoras (também chiques) já a conheciam, e tinha dinheiro suficiente para comprar o que quisesse.

Lilian Santiago Ramos chegou à moda por outras vias. Três vetores foram fundamentais para ela: a literatura; Walter Benjamin e suas observações sobre as galerias e vitrines de Paris na Belle Époque; e o interesse pela leitura de imagens e pelo niilismo da beleza - a dila-ceração do eu das atrizes de cinema, quando começam a perder a beleza. Seu recorte da moda não é histórico ou sociológico, como faz Barthes; interessou-se mais pela moda no campo linguístico, enquanto discurso e enquanto sistema de valores. Mas, para ela, a moda não é só linguagem: existe um vínculo da moda com o que Agamben chama de “assinatura teológica”.

Não tenho certeza de entender o que Agamben quer dizer com “assinatura teológica”, mas o termo me levou a associar com o fato de que o sujeito tem à sua disposição a possibilidade de uma “construção de si”, e de uma (pretensa) singularidade, através da moda. Hoje, as pessoas não se vestem, mas criam um look. Comprar e vestir algo é fazer um statement, é afirmar algo sobre si e sua visão de mundo. Sapatos e acessórios em geral funcionam como assinatura desta “produção”.

Certa vez, conversando com amigas numa festa, fizemos um mapeamento dos significados veiculados pelos sapatos femininos. Sapatos de bico fino e salto agulha criam uma imagem habillé, um chique clássico, respeitador das convenções. Quanto mais fino e mais alto o salto, mais chique é o look. Está implícita a aceitação feminina de certo sacrifício em nome da elegância, e da submissão aos padrões sociais (masculinos?) - submissão que, como observou outra amiga, tem o efeito inverso, pois muitas vezes o poder da mulher está no salto.

O brilho dos sapatos de verniz ou a maciez dos de camurça acrescentam, pela sofisticação do material, um grau a mais de chiqué. A menos que estejam sendo usados de forma irreverente - caso em que afirmam a irreverência da mulher. Se, ao contrário, tiverem bico e salto quadrados, significam um quê de transgressão, uma espécie de afirmação de que o conforto é mais importante do que as convenções sociais.

E há sapatos muito diferentes, ousados, descolados. O salto não é alto, mas tem um design arrojado, é uma peça de arquitetura pós-moderna. Os materiais são inusitados. Alguns são verdadeiras obras de arte. A mulher que veste este sapato pretende afirmar exatamente isto: “Sou arrojada, ousada, única”. Mas é imperioso saber usá-los, pois, ao contrário dos clássicos, em que a mulher não se arrisca, sabe que não tem erro, aqui qualquer deslize passa a afirmar o oposto: não tem estilo próprio, não entendeu a linguagem da moda. Fica ridículo, como quem usa palavras difíceis de forma errada, fora de contexto. Enfim, não passa de uma vítima da moda.

Tudo isso sem falar em sandálias e botas. Rodrigo Naves, esteta e crítico de arte renomado, dedica uma crônica inteira às botas estilo coturno e ao look que integram (Naves, 2014). Em “Centauras na calçada”, analisa do ponto de vista estético a moda das camisetas cavadas, minissaias e botas com plataforma, que mais parecem cascos de cavalo.

Os calçados são meio pesadões: solas enormes, aspecto bruto, por vezes cano alto, feição militar e enfeites de metal. Mas quem os usa caminha com uma cadência que contraria o aspecto desengonçado deles. De fato, nas calçadas, elas parecem potras trotando levemente. [...] E só podemos compreender o encanto desses calçados meio desgraciosos se os pensarmos dinamicamente. (Naves, 2014, pp. 151-152)

Dando continuidade ao estudo dos sintomas contemporâneos culturalmente determinados - mas ampliando o foco para além da compulsão a comprar -, pude diferenciar entre duas dimensões, aditiva e compulsiva, que encontramos nestes comportamentos:

Podemos falar em adições quando o sujeito recorre a substâncias e comportamentos que visam atenuar a angústia, ou estimular e excitar o ego tomado pelo tédio e pela apatia (angústia branca). [...] ao contrário das adições, que estão ligadas à busca de sensações, as compulsões estão ligadas à busca de um sentido, ou melhor, ao fracasso dessa busca, ligado à crise das grandes instituições no mundo contemporâneo. [...] quando uma única instituição está encarregada de “salvar” a identidade, surgem comportamentos compulsivos relacionados às práticas e discursos daquela instituição. [...] Para “amparar” a identidade, o sujeito contemporâneo toma emprestado das instituições disponíveis elementos - signos - que são usados como “tijolos” na construção da identidade. (Minerbo, 2013, pp. 38-39)

No caso da minha paciente “vítima da moda”, as duas dimensões, aditiva e compulsiva, estavam presentes. De um lado, o vício de comprar servia como antidepressivo e ansiolítico, e nesse sentido não importava muito o que comprasse, contanto que comprasse. Já a compulsão a comprar tinha a ver com a necessidade de afirmar algo sobre sua identidade. Há uma dimensão de comunicação, e por isso a grife determinada que comprava e a loja onde o fazia tinham, em si mesmas, uma função em sua homeostase narcísica.

A moda pode ser vista também como arte, como propus em “Corpo escultural veste escultura imaterial” (Minerbo, 2010). O fenômeno foi antecipado em 1960 por Hélio Oiticica, com seus Parangolés, esculturas de tecido feitas para serem vestidas pelo público - os “penetráveis”. Os estilistas de hoje não são artesãos, como as modistas de antigamente, mas artistas. Nos desfiles, que são verdadeiras performances, as roupas são esculturas cujas formas inusitadas devem muito tanto à criatividade quanto aos materiais e tecidos sintéticos contemporâneos.

Nesse contexto, um novo fenômeno chamou minha atenção, demandando interpretação. Algumas top models, como Naomi Campbell e Kate Moss, apareciam nuas em revistas de moda de altíssimo luxo, como a Love Magazine. Eu me perguntava por que essas modelos estavam se despindo em vez de se vestir.

[Trata-se de uma] campanha publicitária que joga com o paradoxo. A modelo parece estar fazendo a crítica da supervalorização das roupas. O texto diz: “Clothes are so overrated...”. O tom blasé da modelo nua indicaria que “roupa não é tudo isso, eu não ligo tanto para roupa, por isso estou nua”. Mas nós não acreditamos no texto, e sim no subtexto - é ele que nos seduz. O subtexto diz que aquela grife é tão poderosa que dispensa até a roupa. [...] Isso, obviamente, não é verdade, pois ela [a modelo] só pode se dar ao luxo de estar nua porque tem grife própria. (Minerbo, 2010, p. 116)

O mais interessante é que, embora as modelos estivessem objetivamente nuas, comportavam-se nas poses em que foram fotografadas como se estivessem vestidas. Subjetivamente sentem-se vestidas. E mesmo nós, de certo modo, as vemos vestidas. Mas o que estariam vestindo?

Apenas um nome. O imenso prestígio do nome tornou a roupa supérflua e ela foi dispensada. Marilyn Monroe antecipou essa ideia em 1953, quando respondeu a um repórter que lhe perguntou o que usava para dormir: “Cinco gotas de Chanel número 5”.

O fato de estarem na Love Magazine confirma que aquelas fotos, embora de modelos nuas, ainda são sobre moda. Se as mesmas fotos estivessem na Playboy, nossa leitura seria outra. Assim como seria de mau gosto que modelos desconhecidas aparecessem nuas em revistas de moda comuns. Monroe e Chanel eram nomes que se potencializavam mutuamente. A revista Love é de altíssimo luxo, bem como as grifes e as modelos que ali aparecem. Cada elemento do conjunto confere mais prestígio aos outros dois, reciprocamente.

A interpretação [psicanalítica deste fenômeno da moda] revela que o efeito de máximo glamour é obtido reduzindo-se a materialidade da roupa ao mínimo - no caso, a nada -, de modo a realçar o que importa: o valor imaterial, simbólico, do nome do estilista. [...] E nada mais luxuoso que celebridades esculturais aceitando ser fotografadas vestindo esculturas imateriais. (Minerbo, 2010, p. 117)

Moda e grife não são a mesma coisa, mas apresentam pontos em comum, como acabamos de ver.

A grife é uma significação instituída pela sociedade de consumo. É um nome, uma assinatura, cuja autenticidade tem o poder - garantido, sancionado e reconhecido, tanto pela instituição quanto por seus membros - de inserir seu possuidor num lugar social hierarquicamente privilegiado, dentro da lógica da diferenciação social própria à sociedade de consumo. Enquanto significação instituída, é parte das matrizes da subjetividade contemporânea, e determina tanto uma forma de apreender e interpretar a realidade como de representar nossa identidade. Por isso a grife tem o poder de nos dizer quem somos. (Minerbo, 2000, pp. 106-107)

Há a moda de alto coturno, mas também a que se usa nas ruas, como registra Rodrigo Naves em “Maritacas”, outra crônica deliciosa. Andando em São Paulo pela rua Maria Antonia, o olhar deste senhor circunspecto foi atraído para o look

top, cintura baixa, sandália (ou qualquer calçado baixo) e cabelo preso por uma “piranha” um pouco acima da nuca. [...] O despojamento dessa tendência, que já dura uns quatro anos, decididamente não tolera peruagens. Há nesse jeito de vestir uma doce vulgaridade. [...] Antes de tudo, [as calças] devem cair. Os ilíacos - esses ossões frontais que ficam um pouco abaixo da cintura - são seu suporte natural. [.] Ao caírem, insinuam mais do que mostram: beiradas de calcinhas, começos de virilha, com suas promessas e tentações. [...] A esse movimento de queda se opõem (num movimento para cima) o top e os cabelos presos. [...] Afirmo que há mais arte na maneira de essas meninas se arrumarem - ou seja, na rua, na vida - do que em dois terços da arte feita em nossos dias. (Naves, 2014, pp. 43-46)

O que teria escrito Baudelaire, caro a Lilian Ramos, se, flanando por São Paulo, se deparasse com um bando de alegres maritacas na calçada?

 

Referências

Minerbo, M. (2000). Estratégias de investigação em psicanálise. São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Minerbo, M. (2010). Corpo escultural veste escultura imaterial. Ide, 33(51),115-118.         [ Links ]

Minerbo, M. (2013). Ser e sofrer, hoje. Ide, 35(55),31-42.         [ Links ]

Naves, R. (2014). A calma dos dias. São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Marion Minerbo
Rua Alcides Pertiga, 78
01453-100 São Paulo, SP
Tel.: 11 3898-0074
marion.minerbo@terra.com.br

Recebido em 28.7.2014
Aceito em 15.08.2014

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