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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.48 no.3 São Paulo set. 2014

 

ARTIGOS TEMÁTICOS: NARCISISMO

 

Cem anos de narcisismo: aquém da psicanálise e além de Freud

 

One hundred years of narcissism: short of psychoanalysis and beyond Freud

 

Cien años de narcisismo: por debajo del psicoanálisis y más allá de Freud

 

 

Luciane Falcão

Psicanalista, membro efetivo da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre (SPPA)

Correspondência

 

 


RESUMO

O artigo apresenta uma rápida revisão da teoria do narcisismo em Freud e a articula com o mito de Narciso e com um caso clínico. Amplia esta articulação principalmente com base em autores ligados à psicanálise francesa, com destaque para as ideias de André Green. Apresenta a compreensão da segunda teoria das pulsões, ou seja, a pulsão de morte, como fundamental para uma articulação teórico clínica, permitindo a compreensão do narcisismo destrutivo. Mostra a importância do caminho pulsional para a diferenciação entre Eu e o outro, que implica no percurso de desenvolvimento: narcisismo primário, autoerotismo, ação específica, narcisismo secundário e diferenciação entre Eu e não Eu.

Palavras-chave: Narcisismo - pulsão de morte - narcisismo de vida - narcisismo de morte - desobje-talização - autoerotismo - diferenciação Eu/não-Eu.


ABSTRACT

The paper presents a brief revision of the theory of narcissism in Freud and articulates it with the myth of Narcissus and with a clinical case. This articulation is widened mostly based on authors linked to French psychoanalysis, emphasizing the ideas of André Green. The author presents the comprehension of the second theory of drives, in other words, the death drive, as fundamental for a theoretical-clinical articulation, allowing the comprehension of destructive narcissism. The work shows the importance of the path of the drive for the differentiation between the 'I' and the 'other', which implies in the following route of development: primary narcissism, autoerotism, specific action, secondary narcissism and differentiation between “I” and “non-I”.

Keywords: Narcissism, death drive, life narcissism, death narcissism, deobjectalization, autoerotism, “I/ non-I” differentiation


RESUMEN

El artículo presenta una rápida revisión de la teoría del narcisismo en Freud y la articula con el mito de Narciso y con un caso clínico. Amplía esta articulación principalmente con base en autores relacionados al psicoanálisis francés, destacando las ideas de André Green. Presenta la comprensión de la segunda teoría de las pulsiones, es decir, la pulsión de muerte, como fundamental para una articulación teórica clínica, permitiendo la comprensión del narcisismo destructivo. Muestra la importancia del camino pulsional para la diferenciación entre Yo y el otro, que implica el transcurso del desarrollo: narcisismo primario, autoerotismo, acción específica, narcisismo secundario y diferenciación entre Yo y no Yo.

Palabras clave: Narcisismo - pulsión de muerte - narcisismo de vida - narcisismo de muerte - desobjetalización - autoerotismo - diferenciación Yo/no-Yo


 

 

[...] um homem sozinho é apenas um animal. A humanidade começa nos que te rodeia e não exatamente em ti. Ser-se pessoa implica tua mãe, as nossas pessoas, um desconhecido ou a sua expectativa. Sem ninguém no presente nem no futuro, o indivíduo pensa tão sem razão quanto pensam os peixes [...] Parece como uma coisa qualquer.
(Valter Hugo Mãe, 2014, p. 15)

 

A história de Narciso em Ovidio

Exposto pelo poeta latino no primeiro século de nossa era, em uma de suas obras mais célebres, Metamorfoses (Livro III), o mito de Narciso foi recontado ao longo dos séculos.

Narciso era filho da ninfa Liríope, que fora violada pelo deus fluvial Cefiso, após ter sido envolvida nos redemoinhos de suas correntes. O adivinho Tirésias disse a Liríope, a primeira pessoa que o consultou: “Narciso viverá até uma idade avançada, desde que jamais conheça a si mesmo” Qualquer um poderia ter se enamorado de Narciso. Aos 16 anos, seu caminho estava repleto de apaixonados de ambos os sexos, friamente rejeitados, tal era o obstinado orgulho que ele sentia pela sua própria beleza.

Entre os que não tiveram correspondida sua paixão estava a ninfa Eco, que já não podia fazer uso de sua voz exceto para repetir totalmente os gritos dos outros, um castigo de Hera. Um dia, Eco seguiu Narciso por um bosque, mas a maldição não a deixava falar e apenas repetir as palavras como ecos. Narciso, já longe de todos, gritou:

- Há alguém aqui?

- Aqui - repetiu Eco, para a surpresa de Narciso.

- Porque foge de mim? perguntou Narciso.

- Foge de mim?

- Juntemo-nos aqui?

- Juntemo-nos aqui - repetiu Eco, correndo alegremente para abraçar Narciso, que a apartou bruscamente, distanciando-se.

- Prefiro morrer a desejar que fique comigo - gritou ele.

- Fique comigo - suplicou Eco.

Mas Narciso foi embora e Eco passou o resto da vida em vales estreitos, profundos e solitários, consumindo-se de amor e mortificada, até que dela nada mais restasse além da voz. Um dia, Narciso mandou uma espada a Ameinias, seu mais tenaz pretendente. Ameinias se matou com ela no umbral de Narciso, implorando aos deuses que vingassem sua morte. Ártemis escutou a súplica e fez com que Narciso se apaixonasse, negando-lhe, no entanto, a consumação de seu amor. Em Téspia, chegou até um riacho claro como a prata e nunca perturbado, e ao inclinar-se, exausto, sobre a margem verdejante, para saciar a sua sede, ele se apaixonou pelo próprio reflexo. No início, tentou beijar e abraçar o belo jovem que via diante de si, mas aos poucos deu-se conta de que era ele mesmo, e permaneceu horas a fio extasiado, contemplando sua imagem. Como poderia ele suportar o fato de se possuir e não se possuir ao mesmo tempo? A dor o consumia, mas ele se regozijava em seu tormento, sabendo pelo menos que o seu outro eu lhe seria sempre fiel, não importando o que acontecesse.

Eco, mesmo jamais tendo perdoado Narciso, dele se compadeceu e repetiu compassivamente “Ai, ai, ai” enquanto ele cravava a adaga no seu peito e finalmente: “Ah, jovem amado em vão, adeus”. (Graves, 2008, pp. 340-341; grifos nossos).

 

Narciso num consultório de análise: Amarílio

Com 44 anos, Amarílio aparenta jovialidade, é musculoso e bem vestido. Desde a adolescência tem vida bissexual e já se sentia o centro dos olhares em qualquer ambiente. Fora casado duas vezes, mantendo paralelamente relacionamentos com homens “bonitos, fortes e atraentes como eu”, conforme suas palavras. Ainda criança, adorava espelhos e aos sete anos pediu um de presente para a mãe; passou a colecioná-los, o que tornou-se uma obsessão. Aos vinte anos, já tinha duas paredes do seu roupeiro revestidas com espelhos. No primeiro casamento, exigiu à esposa que o roupeiro fosse revestido de espelhos. No segundo, que as paredes do quarto o fossem. Amarílio tem suas relações sexuais diante dos espelhos para que possa se olhar: “primeiro, vejo o meu corpo e assisto à minha performance, depois gosto de ver meu pau, entrando e saindo, não importa em que buraco”. Completa suas descrições com frase como: “eu me curto muito! e todos os dias!”. Se a mulher com quem vive não está disponível, “não há problema, tem vários homens me esperando por aí!”. A masturbação foi o recurso utilizado desde a adolescência como a “melhor solução” (palavras dele). Percebia-se tímido, preferia se fechar no quarto e “eu mesmo me dava o meu prazer”.

Mãe e babá são descritas como obsessivas, exigentes e não admitiam erros da parte dele. Só podia brincar com um brinquedo de cada vez, enquanto os outros deveriam estar guardados. Suas roupas eram sempre “impecáveis”, por exigência da mãe. Na escola, Amarílio repetia o padrão: não se sujava, não brincava no pátio e não se incluía em nenhuma brincadeira que pudesse colocá-lo em risco, preferindo sempre as meninas. Jamais jogou futebol ou qualquer outro jogo de “grupo de homens, detesto”. O pai raramente aparece em seus relatos e, quando aparece, é como um homem apagado.

No momento do contrato do tratamento analítico, Amarílio criticava minha forma de trabalhar: “vocês, analistas, se acham deuses, gigantes, e nós temos que ficar submetidos a vocês”. Quanto aos honorários, dizia “tu estás me enfiando uma faca...”

 

O narcisismo na teoria de Sigmund Freud

Para introduzir o narcisismo: a segunda teoria das pulsões

O período da escrita de Para introduzir o narcisismo (originalmente publicado em 1914, aqui citado na edição de 2004a) foi um momento delicado para Freud. Alguns se referem ao narcisismo de Freud e ao narcisismo na teoria de Freud. O primeiro estaria ligado à necessidade de manter sua teoria viva, combatendo as ameaças, sobretudo a de Jung, no que diz respeito à especificidade da libido como energia sexual.

A proposta de Freud sobre o narcisismo é uma das suas criações mais fundamentais, graças à qual a teoria psicanalítica deixa de ser linear e se transforma em uma teoria circular. Abre um campo epistemológico e o caminho para uma teoria dialética. Sem a introdução do narcisismo, não existiria a dualidade entre pulsão de vida e pulsão de morte.

Freud partiu da ideia do narcisismo como uma configuração patológica - como na perversão - até chegar à possibilidade “de atribuir a ela um importante papel no desenvolvimento sexual do ser humano” (Freud, 1914/2004a, p. 97). Concluiu então que “originalmente o Eu é investido de libido e [...] uma parte dessa libido é depois repassada aos objetos; contudo, essencialmente, a libido permanece retida no Eu” (p. 99).

Mostra que as primeiras satisfações sexuais autoeróticas se apoiam nas pulsões de autoconservação, fazendo com que a mãe ou seu substituto tornem-se os primeiros objetos sexuais. Chamou esse tipo e essa fonte de escolha de objeto por veiculação sustentada (Anlehnungs). Porém, ainda segundo Freud, quando o desenvolvimento libidinal se mostra perturbado, os indivíduos “procuram abertamente a si mesmo como objeto de amor e exibem um tipo de escolha de objeto a ser chamado de narcisismo” (Freud, 1914/2004a, p. 107). O Eu, para Freud, precisa ser desenvolvido, pois “uma unidade comparável ao Eu não está presente no indivíduo desde o início” (p. 99). Precisará sair do estado de autoerotismo, onde vivencia satisfações sexuais autoeróticas (presentes desde o início) e vitais de autoconservação. Freud dirá então que é “necessário supor que algo tem de ser acrescentado ao autoerotismo, uma nova ação psíquica, para que se constitua o narcisismo (p. 99; grifo nosso).

Essa necessidade da ação específica é criadora de sentido, constitui uma expressão de Eros através do objeto, tanto para experiências de satisfação quanto para as de desamparo (dualidade pulsional) e permitirá o nascimento do outro, crucial para a criação do psiquismo.

Em Pulsões e destinos das Pulsões, de 1915, Freud mostra que as três polaridades psíquicas (entre ativo e passivo, que é biológica; entre o Eu e o mundo externo, que é real; entre prazer e desprazer, que é econômica) estabelecem conexões entre si. Porém, no início da vida psíquica, duas delas coincidem, pois o Eu está tomado pelas pulsões ao mesmo em tempo que é capaz de satisfazê-las em si mesmo. A esse estado no qual as polaridades não se distinguem, em que o Eu e o mundo externo não se diferenciam, ele nomeou de narcisismo, e para a sua satisfação, conta com o autoerotismo: “o Eu-sujeito coincide com tudo aquilo que éprazeroso, e o mundo externo, com tudo o que é indiferente. [...] na medida em que o Eu é autoerótico, não necessita do mundo externo” (Freud, 1915/2004b, p. 158).

Quando Freud se refere às pulsões sexuais, capazes de se satisfazerem de forma autoerótica, está falando das pulsões aptas para servir de via para o desenvolvimento sob o domínio do princípio do prazer. E então, em nota de rodapé em Pulsões e destino das pulsões, afirma algo fantástico:

As pulsões sexuais, que desde o início requerem um objeto, assim como as necessidades das pulsões do Eu, que nunca se satisfazem de maneira autoerótica, naturalmente perturbam este estado (o estado narcísico primordial) e preparam os progressos posteriores. Por certo, o estado narcísico primordial não poderia seguir este desenvolvimento se todo indivíduo não passasse por um período de desamparo e de cuidado, durante o qual suas necessidades prementes são satisfeitas por intervenção externa e, com isto, freadas no seu desenvolvimento. (Freud, 1915/2004b, p. 171; grifos nossos).

Nessa nota, na qual Freud explicita a necessidade de que as pulsões chamem o objeto para que haja desenvolvimento psíquico, há também, ao meu ver, a possibilidade de se relacionar o narcisismo primário com o desamparo e neste vértice entender o narcisismo absoluto como o estado anterior,onde não há nada no mundo além de nada.

Já nessa época, talvez Freud estivesse semeando sua futura dialética pulsional, ao considerar que “quando o objeto entra em cena na etapa do narcisismo primário, desencadeia-se também o pleno desenvolvimento da [...] oposição ao amar [...] o odiar” (p. 159). Introdução da pulsão destrutiva?

No Esboço, Freud confirma suas hipóteses e mostra que uma porção da autodestrutividade permanece interna: “de uma maneira geral, o indivíduo morre de seus conflitos internos” (Freud, 1938-1940/1987d, p. 175). Irá afirmar, mais uma vez, que tudo o que se conhece diz respeito ao Eu e é nele que a cota de libido está armazenada e disponível - sendo difícil falar sobre o comportamento desta no id ou no supereu. Chamará este estado de coisas de narcisismo primário absoluto, que perdurará até que o Eu possa investir as representações de objetos, transformando a libido narcísica em libido objetal (p. 176). Em Complemento metapsicológico à teoria do sonho, Freud havia assinalado o narcisismo absoluto como a situação na qual, no momento do sono, “o desejo de dormir tenta recolher todas as cargas de investimentos que haviam sido enviadas pelo Eu aos objetos” (Freud, 1915-1917/2004c, p. 82).

Ainda em relação à ação específica, Paul Denis afirma que poderia ser aquela como a

[...] primeira assemblage das pulsões de autoconservação e das pulsões sexuais autoeróticas que formariam o primeiro núcleo-suporte de toda a carga libidinal do narcisismo primário. As funções vitais são mantidas por pessoas que se ocupam da criança que, por sua vez, é seu próprio objeto de investimento. (Denis, 2012, p. 20)

No início da vida, a criança não se diferencia da pessoa que dela cuida. O funcionamento narcísico engloba essa pessoa, daí originando as sensações de onipresença, autossuficiência e perfeição que caracterizam o narcisismo primário (Freud, 1914/2004a). O desenvolvimento psicossexual ocorrerá através do investimento libidinal, da contínua transformação da libido do eu em libido do objeto e vice-versa. Dependendo destas trocas e de seus ritmos, se formarão as estruturas psíquicas. A libido do eu, originada no corpo, é o elemento que promove a base da vivência de satisfação narcísica, promovendo sensações de prazer e desprazer.

O narcisismo primário foi, para Freud, um pressuposto desta sua teoria. Afirmava ser difícil apreendê-lo na observação clínica e mais fácil confirmá-lo pela dedução retroativa. Sua majestade o bebê seria a referência (ibid., p. 110).

Em 1919, em O inquietante, Freud, a partir de Otto Rank, irá apontar “as relações do duplo com a imagem do espelho e a sombra, com o espírito protetor, a crença na alma e o temor da morte” (Freud, 1919/2010, p. 351), destacando que o duplo foi uma garantia contra o desaparecimento e a aniquilação do Eu: “essas concepções surgiram no terreno do ilimitado amor a si próprio, do narcisismo primário que domina tanto a vida psíquica da criança como a do homem primitivo” (ibid.).

O narcisismo secundário será o resultado do retorno sobre o Eu dos investimentos que até então estavam depositados no objeto, mas também da modificação que este retorno promove no Eu, constituindo-se sobre a base do narcisismo primário (Freud, 1914/2004a, p. 98).

O Eu como o grande reservatório libidinal se dirigirá aos objetos externos, exigindo, portanto, uma libido que não perca sua mobilidade. Assim, o desenvolvimento do Eu se dará na medida em que este se distanciar do narcisismo primário, por meio do deslocamento da libido em direção ao ideal do Eu.

O amor por si mesmo, que já foi desfrutado pelo Eu verdadeiro na infância, dirige-se agora a esse Eu ideal. O narcisismo surge deslocado nesse novo Eu ideal que, como o Eu infantil, se encontra agora de posse de toda a valiosa perfeição e completude. Como sempre no campo da libido, o homem se mostra aqui incapaz de renunciar à satisfação que um dia vivenciou: não quer privar-se da perfeição e completude narcísicas de sua infância. [...] Ele procurará recuperá-lo [este estado] na nova forma de um ideal de Eu. (Freud, 1914/2004a, p. 112)

Se fôssemos conceber um caminho para a diferenciação entre Eu e outro, teríamos uma sequência esboçada mais ou menos assim: narcisismo primário - autoerotismo - ação específica - narcisismo secundário - diferenciação entre Eu e não-Eu.

Esses estágios se intermedeiam e se interpenetram num permanente trabalho de construção. Em O Eu e o Id, de 1923, Freud afirmará que, no início, “na fase oral primitiva”, não há possibilidade de distinguir o investimento objetal (a relação objetal) da identificação: “os investimentos de carga mais tarde depositados nos objetos partem todos do Id, o qual sente seus anseios eróticos como necessidades” (Freud, 1923/2007, p. 40). Podemos pensar, ao mesmo tempo, na identificação completa e imediata. Freud vê a possibilidade de ocorrer “um investimento objetal concomitante a uma identificação, portanto, uma mudança de caráter antes mesmo de o objeto ter sido deixado” (p. 41).

Vale sempre lembrar que o Eu de Freud em 1914 ainda não é o Eu instância da segunda tópica. Será este que permitirá a concepção de um Eu com delimitações internas na psique, num novo modelo de aparelho psíquico, apresentado no Eu e no Id (Freud, 1923/2007).

Freud dirá também que, quando as moções pulsionais entram em conflito com as Vorstellungen culturais e éticas do indivíduo, seu destino será o recalque (conflito básico do que virá a ser o supereu). Surgirão as forças inconciliáveis, reveladoras de que o homem permanece narcísico e de que precisará criar em si um ideal, que estabelecerá uma medida com a força do recalque.

Em 1921, Lou Andreas-Salomé já afirmara que o narcisismo não se limitaria a um estágio da libido, mas sim que acompanharia todos os estágios. Para ela, as duas correntes libidinais, a centrada no Eu e a orientada em direção ao objeto, não são facilmente distinguíveis uma da outra. Tende a valorizar o lado bom do narcisismo num sentido criador: é um acompanhamento permanente de todas as experiências profundamente vitais (Andreas--Salomé, 1980; Denis, 2012).

Para Paul Denis, Andreas-Salomé descreve uma forma de amor narcísico que complementaria a visão freudiana e estaria próxima daquilo que será descrito por Romain Rolland (Vermorel, 1993) como o sentimento oceânico (Freud, 1930/1987c), expressão que designa uma forma especial de exaltação na qual o Eu se expande na massa, no Universo. Rolland utilizou esta expressão na correspondência com Freud (Vermorel, 1993) após este ter lhe enviado Futuro de uma ilusão (1927/1987b). No entanto, mantendo distância desta ideia, Freud aponta que o líder, na massa, ocupa o lugar do ideal do Eu. O amor narcísico de Andreas-Salomé estaria também próximo do que Bela Grunberger nomeou como júbilo narcisista (Grunberger, 2003).

 

O narcisismo depois de 1920: destruição e pulsão de morte

Depois de 1914 já aparece em Freud uma certa articulação entre narcisismo e pul-são de destruição. Esta articulação se fará presente nas referências àquilo que compõe o psiquismo - os investimentos, ou seja, através do vértice Eros/pulsão de vida, e àquilo que decompõe, as pulsões destrutivas. Para haver psiquismo, haverá a necessidade do enlace de Eros, da ligação; portanto, o narcisismo. Sem essa composição, fica aberto o caminho para o reino da angústia primordial, do estado anterior, da decomposição.

Autores como Herbert Rosenfeld e André Green dedicaram parte de suas trajetórias à busca da compreensão do narcisismo destrutivo. Seria impossível no espaço deste artigo trazer a colaboração de outros, como Lacan, Bion e Winnicott, por exemplo. Portanto, me deterei nos dois primeiros.

 

Herbert Rosenfeld: narcisismo libidinal e narcisismo destrutivo

H. Rosenfeld (1964/1965) descreve as relações de objeto narcísicas como defesas contra o reconhecimento da existência de uma separação entre o self e o objeto. Este objeto é onipotentemente incorporado ao self do sujeito. A consciência da separação entre self e objeto leva a sentimentos de dependência deste, estimulando a inveja. Quando a bondade do objeto é reconhecida, o narcisismo surge como uma defesa contra a inveja. Esta ideia de defesa é diferente da de Lou Andreas-Salomé, que, como vimos, entende o narcisismo como etapas do desenvolvimento.

Rosenfeld descreveu o narcisismo como libidinal e destrutivo (1971). O narcisismo libidinal ocorre pela supervalorização do self, baseada na idealização do mesmo. Nestes estados narcísicos, tudo o que se relacionar com os objetos externos e com o mundo exterior será parte dele ou onipotentemente controlado por ele. Nos pacientes, a destrutividade é mais evidente, e o seu exame permite que paciente e analista possam se aproximar de agressividade, humilhações e inveja, o que possibilita um melhor andamento do processo analítico.

No narcisismo destrutivo, as partes destrutivas e onipotentes do self serão idealizadas. A destrutividade ficará mais exposta, a inveja será mais violenta e os impulsos autodestrutivos estarão mais presentes (1971, p. 173). O narcisismo destrutivo é expressão de uma força destruidora, semelhante à ação da pulsão de morte freudiana. Está presente na análise de pacientes cuja psicopatologia é dominada por relações objetais onipotentes e narcísicas, bem como por reações terapêuticas negativas. É considerado uma das causas do impasse. Rosenfeld (1971) estabeleceu a necessidade de se reconhecer e analisar a agressão e a destrutividade como incorporadas à vida do indivíduo narcisista. Aliás, agressão e destrutividade fazem parte de todo o indivíduo.

Ele verá no narcisismo negativo de André Green (1984/1998) uma aproximação de sua ideia “sobre o modo como o narcisismo destrutivo age, a saber, ele é dirigido contra os elos libidinais ou de dependência do self com o objeto, inclusive com os objetos primários” (Rosenfeld, 1987, p. 59, n. 6).

 

André Green: narcisismo de vida e narcisismo de morte

Em 1967, em um texto cujo título pode ser traduzido como “Narcisismo: estrutura ou estado?”, Green propõe o narcisismo como estrutura do sujeito. Em uma de suas mais fecundas teorias, introduz o conceito de estrutura enquadrante do Eu, resultado da articulação entre o duplo redirecionamento das pulsões, o narcisismo primário e a alucinação negativa da mãe (Green, 1967/1983).

A noção do duplo redirecionamento das pulsões - que cria a fita (ou banda) de Moebius, um modelo basal da psicanálise - é concebida como um movimento pulsional da organização narcísica primária e constitui uma defesa anterior ao recalque, um processo mediador, de valor estruturante (Green, 1967/1983, 1973; Falcão, 2013a). Esta estrutura tem status de função de holding (no sentido winnicottiano) do psiquismo, como o resultante do trabalho de luto do objeto primordial e de uma capacidade negativa (Green, 1967/1983, p. 81). E mais:

A mãe é tomada no vazio da alucinação negativa e torna-se estrutura enquadrante para o próprio sujeito. O sujeito se edifica lá onde a investidura do objeto foi consagrada no lugar de seu investimento. (Green, 1967/1983, p. 126).

Este estado de vazio poderia ser pensado, creio eu, como próximo à ideia de Freud do narcisismo absoluto. Em Narcissisme de vie, narcissisme de mort (1967/1983) Green apresenta o narcisismo positivo como busca do investimento unitário do Eu, como Eros, pulsão de vida; e o narcisismo negativo, que tenderá à descarga absoluta, ligado à pulsão de destruição (Green, 1983), ideias que irá complementar e aprofundar em Le Travail du Négatif (Green, 1993). A partir desses textos, definem-se as funções objetalizante e desobjetalizante:

♦ Função objetalizante: a função essencial da pulsão de vida é garantir uma função objetalizante. Além de investir o objeto em si, essa função fará com que as funções psíquicas e o processo de investir sejam vistos como objetos. Ou seja, o investimento, ele próprio, terá valor de objeto. O ponto de vista objetalizante das pulsões de vida ou de amor tem por consequência realizar, pela mediação da função sexual, a simbolização (Green, 1993, p. 118).

♦ Função desobjetalizante: a ação das pulsões de destruição e de morte se manifestará sob o efeito de uma função desobjetalizante pelo desligamento. A pulsão de morte está em ação cada vez que os objetos do psíquico se encontram desqualificados, perdem sua originalidade ou sua singularidade, ou deixam de ser valorizados (Green, 1983, 1988, 1993, 1995, 2007a, 2007b). Desobjetalizar é proceder a uma ação que faz com que a evolução pulsional perca o que nela está apto para tratar das propriedades mais singularizantes dos objetos (Green, 2007b, p. 62).

A função objetalizante permite pensar que, além das funções psíquicas serem vistas como objetos, toda e qualquer função do próprio corpo também o é. Da mesma forma, desobjetalizar estaria nas doenças somáticas, quando o corpo deixar de produzir as substâncias necessárias para a vida saudável.

O narcisismo negativo é, portanto, uma manifestação da função desobjetalizante: sua expressão clínica - expressão da pulsão de morte - é a pulsão que visa a volta ao estado anterior, ao nada, ao desligamento (Green, 1993; 1990; 2002; 2011a) ou ao des-existir (Faria, 2012). A morte na vida se instala e se executa, silenciando e paralisando a libido, que deixa de se locomover no aparelho psíquico, impedida assim de circular num vaivém com o outro. Narcisismo de morte é morte na não vida. É a não constituição psíquica.

Green pensa que Freud se deteve em considerar o narcisismo como primeira ligação entre pulsão de vida e pulsão de morte sem, no entanto, detalhar esse percurso, o que o psicanalista francês vem a fazer:

[...] primeiramente algo que não pode ser distinguido (caos?). Depois, surgem os primeiros investimentos identificáveis (libido ligada ao corpo do sujeito, erotismo corporal - tempo auto - pela unificação primeira, etc.). Depois, constituição da etapa da unificação primeira: narcisismo propriamente dito, autoerotismo que se opõe ao desaparecimento da aquisição, mas que não pode resistir ao tempo como tal. (Green, 2007a, p. 31; tradução e grifos nossos).

Para Green, o narcisismo será “o primeiro vencedor do conflito da gigante máquina pulsão de vida-pulsão de morte em favor das pulsões de vida” (2007a, p. 28).

Quarenta anos após apresentar esta dialética entre narcisismo de vida e narcisismo de morte, e vinte depois de Loucura privada (1990), Green escreve o livro Por que as pulsões de morte ou de destruição? (2007a). Sem hesitar, mostra sua adesão ao conceito da pulsão de morte e de destruição, bem como a importância do narcisismo destrutivo nos casos não neuróticos, nas psicossomatoses e também nas patologias que se reportam ao mal-estar na cultura - reflexo da ação da pulsão de morte no cultural (Freud, 1930/1987c; Falcão, 2011): violência, toxicomania, delinquência e criminalidade, que se apresentam cada vez mais precoces.

Green postula uma sucessão ontogenética de libido narcísica e libido objetal. Postulação discutível e questionável se pensarmos na fita de Moebius utilizada por ele próprio. Refere:

A libido narcísica é mais antiga que a libido de objeto. O narcisismo aparece como o núcleo mais central das pulsões de vida, como vértice protetor de todo o edifício futuro do Eu, o único na época a poder exercer uma resistência organizada contra as pulsões de morte, e ainda deve-se dizer que este núcleo também é vulnerável. (Green, 2007a, p. 53; tradução nossa).

E segue:

O narcisismo empurra a morte, remove-a, assediando a pulsão de morte e tentando expulsá-la para conquistar esta primeira forma de ocupação (investimento) do eu que quer garantir a manutenção de Eros contra a força que quer seu retorno ao estado anterior, em direção à não vida. (Green, 2007a, p. 57; tradução nossa).

O tema do narcisismo destrutivo e pulsão de morte acompanhou Green até sua própria morte, em 2011, no último artigo publicado em vida: “Les cas limites: de la folie privée aux pulsions de destruction et de mort” (Green, 2011a; “Os casos limite: da loucura privada às pulsões de destruição e de morte”). Esse artigo mereceria por si só uma discussão específica e que por falta de espaço não será feita aqui.

 

Narcisismo aquém de Freud, além de Freud e nos pacientes não neuróticos de hoje

O Narciso de Ovidio e Amarílio: seria possível compreendê-los?

Como teria ocorrido a assemblage das pulsões (Denis, 2012) em Amarílio? Podemos supor que houve um alto grau de recolhimento autoerótico desde o início da vida, em que o pulsional autoconservatório foi satisfeito (babás cuidadoras) assim como o recolhimento em si mesmo? Autoerotismo apoiado nas pulsões de autoconservação, a erogeneidade não encontrando escoamento no outro, somente em si próprio, uma vez que o objeto/outro estava narcisicamente voltado para si, exigindo um lindo filho, impecável para ser exibido?

As zonas erógenas que deveriam emergir “como núcleos de excitação ativadas pelo desejo, como cintilações de vida” (Faria, 2012) não se presentificaram (Darstellung) como sensações sensuais e sensoriais que marcariam o existir do corpo, levando ao caminho progrediente da descorporificação. Desinvestimento e desobjetalização em Amarílio. Apagamentos. Segue em busca de uma nova ação psíquica - ação que precisa do outro para fazer um trabalho de ligadura, em oposição ao vazio de representações. Os espelhos na vida de Amarílio não têm função de reflexão: diante deles, olha sem se olhar. Ou só ouve seu próprio Eco. Hilflosigkeit?

As experiências traumáticas vividas antes da representação palavra (Green, 1993) são repetidas como este hilflosigkeit descrito por Freud (1926/1987) e constituem a base do que entendo (Falcão, 2013b) como pavor primordial. São as condições de desamparo desse momento inicial da vida psíquica, quando o Eu e o não Eu ainda não se diferenciaram (momento, portanto, narcísico), que serão repetidas na vida do indivíduo. Vivências que correspondem a este estado de desamparo objetivo (hilflosigkeit) em total dependência de seu ambiente humano (les Nebenmenschen). Freud mostrou que a libido desintrincada que não encontra o objeto para ligá-la, mas que espera incessantemente a ligação sem consegui-la, esvazia o Eu de libido narcísica, como uma hemorragia, colocando-o à mercê da pulsão de morte. Portanto, a libido desintrincada é a presença da morte psíquica (Freud, 1894/1987a; 1926). No Esboço, Freud (1938/1987d) reafirmará que uma parte de destruição sempre permanece interna até que um dia, finalmente, conseguirá “matar o indivíduo, talvez não antes da sua libido ter sido usada ou fixada de uma maneira desvantajosa” (Freud, 1938/1987d, p. 175).

Leio as frases do diálogo entre Narciso e Eco, assim como imagino a encenação da tragédia, comparando-as com as de pacientes, que, através da representação palavra, apresentam seus discursos analíticos (Green, 2011b). Estes, além de únicos, seriam defesas e recursos de uma regressão formal em oposição a uma possível regrediência, daquilo que é da ordem do sem forma das excitações das vivências sensuais e sensórias traumáticas.

O que eu ouço e imagino é perpassado pelo meu mundo infantil, anímico, e se complementa com referencial teórico, fundamental nesta tarefa analítica. Seguem as suposições associadas a trechos do mito.

♦ “Viverá desde que jamais conheça a si mesmo”. O que impede o narcisista de se conhecer? A ausência da representação do outro? Consequência da ausência do duplo retorno pulsional (Green, 1967/1983) em Amarílio: as ausências e os vazios nas sessões/transferência, as descargas e o gozo sexual. A solidão. O investimento é em si, através do olhar-se no espelho, e a retirada da libido dos objetos (as esposas). Sua primeira escolha de objeto é autoerótica (seu próprio corpo) e seguiu sendo a mesma no desenvolvimento. Não há passagem pelo complexo do semelhante.

♦ “Os apaixonados por ele [por Narciso] eram friamente rejeitados”. O desprezo pelo objeto, característica do narcisismo na descrição de Freud: Narciso rejeita Eco, rejeita Ameinias; Amarílio despreza as mulheres e a analista.

♦ “Tal era o obstinado orgulho que ele sentia pela sua própria beleza”. Libido/investimento sempre do eu; e mesmo quando há um outro, como as esposas ou amantes de Amarílio, não são objetos definidos, únicos, objetos da pulsão ou seus representantes, são apenas uma extensão daquilo que servem para o coroar.

♦ “Narciso diz: 'prefiro morrer a desejar que fique comigo'”. Eco busca o encontro com Narciso, mas ele a repele: o par não se forma - dois objetos frágeis. Por um lado, Eco, cuja meta é alcançar o objeto Narciso, busca o enlace amoroso, mas não consegue penetrá-lo, tal é a envergadura do seu escudo defensivo. A barreira de contato de Narciso não permite a entrada de Eco; suas portas, endógenas e exógenas, se fecharam e nunca mais se abriram. Consequentemente, aquilo que seria da ordem do sensual e do sensorial, tanto de si como do outro, Narciso forcluiu da sua vida; não existe e jamais será um facilitador entre corpo e mente. Prefere morrer. Eco, por sua vez, objeto frágil, é incapaz de investir, não tem energia para penetrar o objeto Narciso, que é o resultado de um já puro desinvestimento. Nele, nenhum outro chamado será ouvido, apenas o barulho do seu silêncio mortífero. Ou a carcaça de Amarílio. Se não há objeto capaz de chamá-los e produzir um barulho - pulsão de vida -, o resultado final será sempre um narcisismo mortífero, no qual a pulsão destrutiva vencerá. Fica-se sem a opção de saídas para as angústias primitivas, como a mentalização dos elementos inconscientes e por soluções que privilegiariam o narcisismo de vida e os métodos antitraumáticos que necessitam da objetalização, pois os dispositivos defensivos estão de tal forma estruturados e reforçados que não há espaço para pensamentos de desejos.

♦ “Narciso vai embora e Eco fica num mundo solitário, consumindo-se de amor e mortificada”. Com a retirada de um, o outro se mortifica pelo desinvestimento, o Eu só existe se existir para o objeto do qual se ocupa. Eco só existe se seus ecos ressoarem aos ouvidos de Narciso. É preciso tornar ativa a trama passiva.

♦ “Um dia, Narciso mandou uma espada a Ameinias, o seu mais tenaz pretendente. Ameinias se matou com ela no umbral de Narciso”. A agressão como a parte do sadismo projetada para o exterior também representa a instalação e a execução da morte na vida. O outro não existe como sujeito.

♦ “No início, tentou beijar e abraçar o belo jovem que via diante de si”.

(a) Tempo um da cena: narcisismo de vida. Narciso investe no seu Eu, olhando-se, núcleo central das pulsões de vida. Olhando-se, fica seduzido pela sua própria imagem. Essa imagem é, ao mesmo tempo, o reflexo de si mesmo e o do outro/belo jovem, como a busca do objeto a sua semelhança - o seu duplo.

(b) Tempo dois da cena: des-existir; toma por um corpo aquilo que é apenas uma sombra, um reflexo. Paralisado em si próprio, Narciso se deseja, em desejando apenas a imagem que rapidamente se perde nas inconsistências das águas do rio. A imagem, sem contorno e sem limite, se dilui nas águas disformes: des-existe. Vence a incapacidade de manter aquela imagem como corpo real do objeto amado, investidor de si, portador da pulsão que poderia criar uma nova ação psíquica e instituir o narcisismo de vida - existir.

Narcisismo de morte, ausência da negativização do objeto. Negativização, aqui, no sentido de que sem o trabalho de representação (a representance), efetuado lá onde deveria ter aparecido a realização alucinatória do desejo, não houve o espaço para, na ausência do objeto, ele poder ser negativado. É a ausência da representação de algo que não se constituiu. Ele des-existe, quer pela ausência de ligadura, quer por excesso de excitação, onde “o estímulo traumático excessivo desconstitui a organização incipiente e o Eu entrega-se paralisado à morte [...] sob a vigência da pulsão de morte” (Machado, 2013, p. 223).

(c) Tempo três da cena (continuação): “aos poucos, deu-se conta de que era ele mesmo, e permaneceu horas a fio extasiado, contemplando sua imagem: Eu sou este outro, entendi, não estou enganado”. Nesse momento, Narciso toma consciência de que a imagem é dele próprio e não de outro. Seria aqui Narciso um narcisista? Estaria no limiar do complexo do semelhante, pois ele só pode ser em relação ao outro. Logo, ele o desfaz. Alguns autores, como Frontisi e Vernant (Frontisi & Vernant, 1997; Vernant, 2004), entre tantos outros, entenderão que o Narciso de Ovídio quer se separar daquilo que ama (“Eu sou este outro”) para amá-lo como algo separado de si, e que, não conseguindo, surge a vivência dramática - a desestruturação do complexo do semelhante. Neste sentido, no momento da busca do outro, sairia do estado narcísico, passando ele próprio e o outro a existirem: pulsão de vida, desejo de se constituir, diferenciação entre Eu e não Eu. Justamente, o drama de Narciso de Ovídio é que ele toma consciência de que o outro não existe nem para o amar nem para ser amado por ele: “ele não existe, logo, não existo, então, des-existo”.

♦ “Como poderia ele suportar o fato de possuir e não possuí-lo ao mesmo tempo?” Que dilema! O narcisista precisa ter seu desejo narcísico satisfeito! Como suportar que o objeto que desejou não pode ser tocado, sentido e, sobretudo, que se diluiu ao toque, numa frágil superfície de água? Como suportar a frustração relacionada à ilusão do encontro, com o não acesso à imagem do objeto eu ideal? Ilusão de um encontro num espaço vazio, sem limites, sem contorno, sem contenção, sem espaço real para representações que não se sustentaram em Narciso:

A estrutura psíquica conhece o perigo da ilusão e [a ilusão] é necessária para ajudar a apoiar um nível de atividade suficiente e a cultivar a autoestima. Eu narcísico purificado, mas também Eu muito vulnerável. Narcisismo, configuração do amor próprio em caso de ameaça mortal. Narcisismo suporte de ilusão: narcisismo sustentando o ideal do Eu. Libido narcísica ou primaria antiobjetal ou ante objetal. (Green 2007a, p. 57).

Se a identificação ocorre através do outro, em Narciso, parece haver uma identificação fusional que não se sustenta, frágil e mais próxima da pulsão de morte. Estaria mais próxima do que entendemos como o narcisismo primário, não secundário. Se “o sujeito se edifica lá onde a investidura do objeto foi consagrada no lugar do seu investimento” (Green, 1967/1983, p. 126), então, vazios em Narciso. A comunicação entre o sujeito e o outro fica bloqueada e então o “narcisismo é o apagamento do traço do Outro no desejo de Um” (p. 127).

A pulsão de morte faz o trabalho de desinvestidura do outro e “desinveste além do objeto sensu stritu o próprio desejo que uma vez negativado leva ao apagamento do sujeito por desapropriação de suas funções. [...] É o des-existir psiquicamente” (Faria, 2012).

♦ “A dor o consumia, mas ele se regozijava em seu tormento sabendo pelo menos que o seu outro eu lhe seria sempre fiel, não importa o que acontecesse”. Uma forma de ter prazer na dor, a dor masoquista. Qual seria, aqui, o drama de Narciso? O contato dele consigo, fechado em si, na sua idealização, é a manifestação da sua própria morte, sua extinção. Sua dor masoquista é a sua existência e sem ela, não existe.

♦ “Eco, mesmo jamais tendo perdoado Narciso, dele se compadeceu e repetiu com-passivamente 'Ai, ai, ai' enquanto ele cravava a adaga no seu peito”. Narciso, ao perceber a presença da ausência da imagem no lago/espelho, não suportou e “usou a adaga contra si mesmo”. A adaga/faca de Amarílio - num típico movimento projetivo, ameaça-me (“tu estás me enfiando uma faca” é a reversão da agressão) por eu ser um outro diferenciado, este outro que, informando os honorários (instituição de uma diferença entre nós dois), exige dele um movimento libidinal objetal que corresponde a: libido, investimento, dinheiro em direção a esse outro-objeto-analista. Para locomover a libido localizada no seu cofre-ânus, ao invés de pura descarga no ato que penetra nos buracos indiferentes e que não lhe exigem discernimento (masculino-feminino), agora, diante de um outro objeto, no setting, a libido será objetal - investimento de objeto-analista. Mas prefere a faca. Ou o seu pênis mecânico, objeto que não se constituiu como órgão representante de uma eroticidade libidinal de vida. Descarga evacuativa que nestes atos esvazia o que é da ordem do irrepresentável (Darstellung) ou o sem forma, movimento corporal e motor, automático, objeto de uma pulsão não-ligada em busca de descarga.

Sua majestade e deus Amarílio diz: “Vocês pensam que são deuses”. Expressando: “Eu penso que sou deus”

E Freud, no texto que celebrizou sua frase “His Majesty, the baby”, afirma que as:

[...] restrições à própria vontade não devem valer para a criança; as leis da natureza, assim como as da sociedade, devem se deter diante dela e ela deve realmente tornar-se de novo o centro e a essência da criação do mundo. (Freud, 1914/2004a, p. 110).

Ao mesmo tempo, sua majestade Amarílio vem buscar tratamento num movimento criativo em oposição à descarga. E finalmente:

♦ “Ah, jovem amado em vão, adeus”. Se for preciso que o outro exista por meio da possibilidade de que a mãe ocupe o lugar vazio da alucinação negativa e torne-se estrutura enquadrante para o próprio sujeito (Green, 1967/1983), em Narciso ou em Amarílio, este lugar não se constituiu como espaço criativo ou como palco da intrincação entre a pulsão de vida e a pulsão de morte. A pulsão de morte tomou conta do espetáculo, impediu a objetalização e a criação do próprio sujeito.

Amarílio tentava me fazer des-existir (deixaria de existir como analista, eu seria apagada como tal). Narciso “des-existe” e finca a adaga em seu peito. O des-existir como o apagamento pela pulsão de morte. Numa sessão, depois de ter me atacado, dizendo que deveria se analisar com a analista de sua irmã, que seria muito mais direta e objetiva do que eu, considerou: “ela sim tem poder para curar os pacientes, e tu, de preto e branco, parece a Cruela da família dos Dálmatas, que queria matar os filhotes” Depois de um longo silêncio diz: “tu sabe o que eu lembrei depois que eu disse que te vi como a Cruela? Imaginei o Frankenstein [ele havia feito uma cirurgia plástica], mas ele estava sozinho, sentado no chão, na frente do espelho, jogando xadrez”.

O medo do colapso não se restringiria à destrutividade manifesta, mas, de fato, ao conjunto da vida pulsional e seu potencial destruidor (Roussillon, 2009). Sua majestade, o bebê Amarílio, para quem o objeto nem existia como algo separado de si, não conhecia frustração, nem mesmo a de ter vivenciado a presença de um objeto que sobreviveu ao seu ataque. Ao contrário, sua mãe foi embora e ele vivenciou o pânico, quase não sobreviveu. Não sobreviveu ao seu ódio, justamente quando ela já tinha um outro homem, além do seu pai? Para sobreviver, precisaria também descer do trono, arriscar-se a brincar, sujar-se, perceber a diferença dos sexos, suportar a castração.

Entre ser filho de Cruelas, que matam filhotes para poder exibir suas peles, e se ver Frankenstein - sozinho, num jogo difícil, que demanda jogadas de expert para que, vestindo uma capa de “sua majestade, o rei”, ele possa sobreviver, e sobreviver psiquicamente - há um longo caminho. Neste emaranhado do mundo pulsional paradoxal, sem libido do eu e libido do objeto - investimentos - não haverá movimento que leve à construção do psíquico.

Citando versos de Heine, Freud considera: “Criando, pude recuperar-me; criando, tornei-me saudável” (Freud, 1914/2004a, p. 102). O analista, criando com o paciente, cura-se a si próprio - libido do eu e libido do objeto. O narcisismo secundário não existe sem o primário. Sem narcisismo não há o ser humano, tanto aquém como além de Freud.

 

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Correspondência:
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Recebido em 10.08.2014
Aceito em 20.08.2014

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