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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.48 no.3 São Paulo Sept. 2014

 

ARTIGOS TEMÁTICOS: NARCISISMO

 

Édipo e Narciso na encruzilhada de Pótnias e no monte Fíquion

 

Oedipus and Narcissus at the crossroads in Potnias and at Mount Fikion

 

Edipo y Narciso en la encrucijada de Potnias y en el monte Fíquion

 

 

Raul Hartke

Membro efetivo e analista didata da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre (SPdePA)

Correspondência

 

 


RESUMO

Os mitos de Édipo e de Narciso são descritos e usados, conforme sugere Bion, para investigar problemas psicanalíticos relacionados à presença e à importância do narcisismo no complexo de Édipo, incluindo a participação dos pais nesse momento nuclear do desenvolvimento humano. Uma vinheta clínica ilustra a manifestação e as eventuais consequências destes problemas na relação psicanalítica, inclusive no funcionamento do analista.

Palavras-chave: mitos; Édipo; Narciso; complexo de Édipo; narcisismo; relação analítica.


ABSTRACT

The myths of Oedipus and Narcissus are described and used, as suggested by Bion, to investigate psychoanalytic problems related to the presence and importance of narcissism in the Oedipus complex, including the participation of the parents in this nuclear moment of human development. A clinical vignette illustrates the manifestation and the eventual consequences of these problems in the psychoanalytic relationship, including in the workings of the analyst.

Keywords: myths; Oedipus; Narcissus; Oedipus complex; narcissism; analytical relationship.


RESUMEN

Los mitos de Edipo y de Narciso son descritos y usados, de acuerdo como sugiere Bion, para investigar problemas psicoanalíticos relacionados con la presencia e importancia del narcisismo en el complejo de Edipo, incluyendo la participación de los padres en este momento crucial del desarrollo humano. Un caso clínico sirve para ilustrar la manifestación y las eventuales consecuencias de estos problemas en la relación psicoanalítica, incluso en el funcionamiento del analista.

Palabras clave: mitos; Edipo; Narciso; complejo de Edipo; narcisismo; relación analítica.


 

 

Mitos: O confronto mortal no trivio de Pótnias

Um jovem ruivo, contando aproximadamente vinte anos, caminha mancando apoiado em um bastão por uma estreita trilha no fundo de um desfiladeiro. Tem cicatrizes muito antigas em ambos os calcanhares e seus pés são inchados. Recém saiu de um templo, para o qual havia se dirigido com o objetivo de obter informações sobre sua origem. E isto porque pouco antes, durante um banquete, um dos convivas, embriagado, havia insinuado ser ele um filho adotivo, um plastós, isto é, um filho postiço (Brandão, 1992).

No templo, porém, possivelmente temeroso da resposta, tinha arguido a sacerdotisa acerca de seu futuro, em vez de sobre sua origem, e ela o havia expulsado do local com desprezo, vaticinando-lhe que mataria o pai e desposaria a própria mãe. Apavorado, decidira não mais retornar à cidade de seus pais e dirigir-se para outro local, o mais distante possível. Por essa razão estava agora na trilha do fundo do desfiladeiro, exatamente em um ponto onde existia uma encruzilhada de três caminhos, isto é, um trívio.

Neste mesmo momento aproxima-se do trívio, em sentido contrário, uma vistosa carruagem. Transporta um homem altivo, armado, com aproximadamente o dobro da idade do jovem. Completam sua comitiva o cocheiro, dois servos e um arauto. Está se dirigindo ao mesmo templo, com o intuito de saber a razão pela qual um monstro postado às portas da cidade que ele governa está matando todos os homens jovens e belos, incluindo um sobrinho, filho do irmão de sua esposa. De forma agressiva e arrogante, este homem ordena ao jovem que saia rapidamente do caminho para que seus superiores possam passar. O jovem retruca desafiadoramente que reconhecia como seus superiores apenas os deuses e seus próprios pais. Ademais, os pés mutilados, de qualquer forma, o impediriam de afastar-se com a rapidez imposta (Brandão, 1992). O homem ordena que a carruagem avance, e uma das rodas fere um dos pés do caminhante (Graves, 2001). O cocheiro começa a agredi-lo violentamente, empurrando-o para fora da trilha, por ordem de seu patrão. Fora de si, tomado pela cólera, o jovem o mata com seu bastão. O homem mais velho, do alto da carruagem, o atinge duas vezes na cabeça com um aguilhão, de cima para baixo, mas é também morto com um golpe certeiro do bastão. Em seguida ataca um dos servos e julga assim haver eliminado toda a comitiva. Na verdade um deles conseguira fugir e retorna à sua cidade. Envergonhado por haver fugido sem lutar, este servo conta à esposa de seu senhor que ele e os demais haviam sido assaltados e assassinados por um bando de salteadores e não por apenas um jovem.

O homem da carruagem é, como todos sabemos, Laio, nome que na etimologia popular significa “o esquerdo”, “o cambaio”, “o desajeitado”, de pernas tortas. Seu pai, Lábdaco, o coxo, faleceu quando Laio tinha 1 ano de idade. Em sua adolescência, Laio havia raptado e mantido relações sexuais com Crisipo, o jovem filho de uma família que o havia recebido em seu lar e que se suicidou por esse motivo. Este seria, para os gregos, o “defeito”, o desvio a que seu nome aludiria (Vernant & Vidal-Naquet, 1981/1999). Como castigo a essa grave hamartía (falta), recebera a maldição de que, quando tivesse um filho homem, este o mataria. Por tal razão, quando casou e se tornou rei de Tebas, não mantinha relações sexuais com a esposa ou, segundo outra versão (Vernant & Vidal-Naquet, 1981/1999), tinha apenas relações anais. Mas certo dia ela o embriagou, tiveram relações genitais e assim nasceu-lhes um filho varão. Apavorado, temendo que o vaticínio se realizasse, Laio perfurou e atou seus calcanhares com um ferro, amarrando-lhe ainda os pés, e ordenou a um servo que o abandonasse em um monte, ou, de acordo com outra versão, que o jogasse em um desfiladeiro para morrer. Condoído, o servo - aquele mesmo que anos depois evadiu-se do confronto mortal na encruzilhada - entregou-o a um pastor de Corinto, que o levou para os reis desta cidade. Estes o criaram como se fosse filho de sangue, chamando-o de Édipo, Oidípus, isto é, aquele que tem o pé ou os pés inchados. O tragicamente famoso jovem do desfiladeiro!

O restante desta história é também assaz conhecido, mas merece ser repassado para os meus propósitos no momento. Édipo decifra o enigma proposto pela Esfinge, o monstro que assolava Tebas, liberta a cidade de seu jugo e, como prêmio, torna-se rei e casa com Jocasta, a rainha viúva de Laio - na verdade, sua própria mãe.

Anos mais tarde, uma nova praga esterilizadora e mortífera assola Tebas, e o Oráculo de Delfos revela ao irmão de Jocasta ser um castigo dos deuses pelo fato de o assassino de Laio ainda não ter sido descoberto e devidamente punido. Édipo, dizendo-se renomado e sendo considerado por seus súditos o grande decifrador de enigmas, salvador da cidade, ordena e inicia ele próprio, energicamente, a investigação sobre o referido assassinato. Afirma que fará isso a qualquer preço. A certa altura, chega a acusar o cunhado Creonte e Tirésias (o adivinho cego que sabia a verdade) de conspirarem para lhe usurpar o poder. Entre o rei e o adivinho estabelece-se um significativo confronto, opondo aquele que sabe, mas não tem poder (Tirésias), e o outro que agora tem poder, mas não sabe mais (Édipo).

Após descobrir-se o criminoso procurado, Édipo perfura os olhos com os broches de ouro que adornavam as roupas da mãe, que acabara de suicidar-se. Retira-se então para Colono, nas cercanias de Atenas. Assim, o triunfante e renomado vencedor dos confrontos com Laio e com a Esfinge precisa, agora cego como Tirésias, aceitar finalmente olhar para dentro de si mesmo, contrariamente ao que fizera por ocasião da visita à sacerdotisa de Apolo, no Oráculo de Delfos, e do confronto com a Esfinge, no monte Fíquion (Brandão, 1992; Graves, 2001; Vernant & Vidal-Naquet, 1981/1999; Sófocles, 1997).

 

Paixão e morte na fonte de Téspias

A incomparável e irresistível beleza de um filho, que competia até com a dos deuses do Olimpo, levou sua mãe, Liríope, a consultar o adivinho Tirésias (mais uma vez o velho cego) para saber por quantos anos ele viveria. Os gregos temiam qualquer exagero e, sobremaneira, a beleza fora do comum, pois facilmente poderia levar o mortal ao descomedimento, à hýbris, e portanto à punição divina.

O profeta lhe disse que o menino, Narciso, viveria enquanto não se visse, segundo Brandão (1996), ou, de acordo com Graves (2001) e Álvarez e Iglesias (2001), enquanto não se conhecesse. “Si non se uiderit”, segundo a narrativa de Ovídio exposta nas Metamorfoses (citado por Brandão, 1996, p. 176).

Mulheres, homens, ninfas, todos se apaixonavam incontrolavelmente por Narciso, que, no entanto, mantinha-se insensível, rechaçando-os cruelmente, pelo excessivo orgulho de sua própria beleza. Assim, desdenhava igualmente Eros, o deus do envolvimento erótico com o outro (Brandão, 1996).

A ninfa Eco também se apaixonou por Narciso. Por distrair propositadamente Hera com sua tagarelice enquanto Zeus a traía incansavelmente, favorecendo, assim, uma disjunção conjugal, Eco fora condenada pela deusa “defensora dos amores legítimos” (Brandão, 1996, p. 177) a não mais falar normalmente. Conseguia apenas repetir as palavras finais do que ouvia. Era, segundo Ovídio, “a faladora ninfa que não aprendeu a calar diante daquele que fala nem a falar ela mesma” (2001, p. 394; tradução nossa). Ao tentar unir-se a Narciso, conseguindo somente repetir as últimas palavras que ele pronunciava, foi friamente repelida. Desiludida, deixou de alimentar-se, definhando até transformar-se em um rochedo capaz de repetir a parte final dos sons que o alcançassem. Desde então, Eco não foi mais vista por ninguém, apenas ouvida. “O som é o que vive nela” (Ovídio, 2001, p. 296; tradução nossa). Revoltadas, as demais ninfas pediram aos deuses vingança, e Nêmesis, a deusa punidora dos descomedimentos, condenou-o a amar um amor impossível.

Byington (citado por Brandão, 1996) diz que Narciso e Eco constituem polos opostos em relação dialética. Não apenas como masculino e feminino mas sobretudo como sujeito e objeto, Narciso permanecendo sempre apenas em si mesmo e Eco somente no outro. Segundo Fränkel (citado por Álvarez & Iglesias, 2001), Eco seria a alteridade pura e Narciso a identidade pura. Um, som; o outro, visão. Mas a complementaridade entre os dois fica evidenciada pelo fato de o eco, em latim e em grego, ser chamado de imago vocis, unindo portanto visão e som (Álvarez & Iglesias, 2001).

Em um dia de verão, sedento durante uma caçada, Narciso, então com 16 anos, encontra as límpidas, imaculadas e espelhantes águas da fonte de Téspias, e sobre elas se debruça, vendo sua própria imagem (imago) refletida. Conhece-se e se apaixona por si mesmo, sem mais conseguir sair dali. O poeta Ovídio o alerta:

Crédulo, por que tentas alcançar em vão imagens esquivas? O que buscas não está em nenhum lugar; o que amas afasta-te e o perderás. Esta que tu vês é a sombra de tua imagem refletida: nada tem ela de si mesma: contigo vem e fica, contigo se afastará se fores capaz de afastar-te. (Ovídio, 2001, p. 297; tradução nossa)

A certa altura, dá-se conta do que está ocorrendo, mas isto não o impede de ali permanecer até morrer. Na voz que lhe dá o poeta, diz:

Este sou eu! Dou-me conta; e não me engana minha imagem: me incendeio de amor por mim mesmo e crio e sofro as chamas. Que posso fazer? Devo ser implorado ou implorar? E o que vou então suplicar? O que desejo está comigo: minha riqueza me fez pobre. (Ovídio, 2001, p. 298; tradução nossa)

Mesmo enfurecida, Eco sente compaixão quando o vê definhando, repetindo inclusive seu último adeus. Quando as Náiades, suas irmãs, procuram o corpo de Narciso para lhe dar sepultura, encontram apenas uma flor com o centro amarelo circundado por pétalas brancas - a flor que leva seu nome.

Já no Hades, Narciso persiste tentando ver-se nas águas escuras do rio Estige. A flor narciso é descrita por Stein (citado por Brandão, 1996) como bonita mas inútil, de vida breve e estéril, com um perfume soporífero, venenosa, estupefaciente. Nárke é a origem etimológica de “narcótico” e de todas as palavras associadas ao elemento “narc-”. Segundo Graves (2001), do narciso-branco destila-se, em Queroneia, um bálsamo recomendado para as doenças do ouvido e para curar o congelamento, mas causador de cefaleia.

 

Parábase psicanalítica: O uso dos mitos na psicanálise

Relatei os mitos acima com maior extensão e detalhamento por concordância com algumas proposições de Bion que me parecem bastante úteis na prática clínica. Bion (1992) diz que o mito e o sonho constituem respectivamente a versão grupal e a individual de um mesmo processo. Ambos representam a ação da função alfa sobre experiências emocionais, transformando-as em imagens visuais verbalmente transmitidas em forma narrativa. Esta última possibilita dar uma aparência de coerência e integração aos elementos alfa. Assim, a experiência emocional poderá ser armazenada, comunicada e “publicada”. Além disso, a narrativa assinala que certos elementos de uma determinada experiência estão constantemente em relação um com o outro, isto é, conjugados. Equipara-se, desta forma, ao “fato selecionado” (Bion, 1962/1977b) e permite, depois, pensar sobre tal experiência.

No caso dos mitos, porém, as experiências emocionais neles contidas são tão significativas para a humanidade que eles transcenderam o local e a época de suas origens. Ou seja, resistiram às provas do tempo e dos diferentes povos, diversamente do que ocorre com tantas das teorias criadas para explicar estas mesmas experiências.

A proposta de Bion (1992) é que tais mitos sejam utilizados como instrumentos para investigar problemas emocionais com os quais nos deparamos, em vez de interpretados. Equiparam-se, assim, ao uso que os cientistas fazem de fórmulas matemáticas para investigar os problemas que os interessam. Esse teria sido exatamente o procedimento de Freud: “ele reconheceu”, diz Bion, “como um cientista, que foi confrontado com um problema para cuja solução deveria aplicar o mito de Édipo. O resultado foi a descoberta não do complexo de Édipo, mas da psicanálise” (1992, p. 228).

Bion (1992) dá preferência ao uso dos mitos no lugar das teorias porque mantêm uma relação mais próxima com o transfundo concreto da experiência emocional. Isto diminui o risco da teoria transformar-se numa manifestação arbitrária de símbolos. Mas não significa a exclusão da presença (inevitável) nem uma desconsideração quanto à importância da teorização psicanalítica. Para mim, é fundamental o exercício de movimentação permanente, oscilando para cima e para baixo, entre os diferentes níveis de abstração expostos na grade de Bion (1977a), basicamente entre as filas C (que inclui os mitos e os sonhos) e G (sistema dedutivo científico) - sempre levando também em conta os usos que estamos dando a essas formulações, sintetizados no eixo horizontal da referida grade.

Para exemplificar a forma como os utiliza, Bion vale-se justamente do mito de Narciso. Diz o seguinte:

ao escutar as livres associações, poderíamos pensar em algo assim: o paciente está querendo que eu concorde com ele; isto é óbvio pela maneira como está passando a sugestão de que teria uma bela personalidade. Parece-me que é uma personalidade normalmente bela; minha personalidade é igualmente bela; na realidade estou ali para ser um espelho de sua excelência. Mas existe mais desta história, o mito de Narciso: existe um deus que o transforma em uma flor. O que o paciente está dizendo que corresponde a isso? Deve haver algo, porque meu mito me diz que esses elementos estão constantemente conjugados; ou talvez este não seja o mito adequado. Ou é o mito adequado e até agora eu falhei em ver como tal aspecto apareceu, ou estou enganado em pensar que é o mito a ser empregado. Talvez eu devesse procurar um mais apropriado - o mito de Édipo, por exemplo. (Bion, 1992, p. 238)

Os mitos preferidos por determinados psicanalistas indicariam sua filiação psicanalítica mais específica. Mas os de Édipo e Narciso constituem mitos de referência para praticamente todos os psicanalistas. Auxiliaram Freud (1905/1998b, 1923/1997, 1926/1998a) na construção de dois conceitos fundamentais da psicanálise: o complexo de Édipo como complexo nuclear do desenvolvimento humano e o narcisismo como condição básica dos investimentos libidinais - nesse caso, no próprio ego.

Meu objetivo neste trabalho é examinar especificamente a presença e a influência do narcisismo no complexo de Édipo, à luz dos mitos correlatos e de contribuições psicanalíticas posteriores a Freud.

 

Narcisismo e complexo de Édipo

Faimberg e a dimensão narcísica da configuração edípica

Em uma contribuição que julgo de grande utilidade clínica, Faimberg (2005/2006) vale-se do mito de Édipo para investigar questões psicanalíticas relacionadas ao que chama de “a dimensão narcisista da configuração edípica”. Fala em configuração edípica, e não apenas em complexo de Édipo, porque para ela o complexo refere-se aos desejos inconscientes do indivíduo acerca de seus pais, ou seja, ao aspecto intrapsíquico. Já a configuração inclui as relações tanto dos filhos com os pais como dos pais com os filhos no transcorrer deste drama humano fundamental. Esta noção de configuração edípica não apenas deixa de reduzir a análise do conflito edípico ao jogo das pulsões (sem, entretanto, subestimá-lo) como possibilita investigar qual configuração de relações favorece e qual dificulta uma resolução mais adequada do complexo stricto senso. Permite, ademais, entrelaçar dialeticamente os problemas narcisistas com os edípicos e, neste mesmo contexto, dar um status teórico ao que ela caracteriza como “o pai narcisista”, distinto de um “pai edípico” (Faimberg, 1993/2001, p. 135).

Um pai narcisista posiciona-se diante deste conflito nuclear como detentor exclusivo de um poder absoluto. Funciona como se existisse apenas um espaço, bem como um único objeto de amor e de ódio. E este espaço estaria para sempre dominado por ele. O filho - o jovem - encontra assim barrado o seu desejo de ter um espaço próprio, uma vida própria, seu próprio objeto de desejo. O resultado poderá ser tão somente o parricídio ou o filicí-dio - em geral, evidentemente, em uma ou outra de suas tantas formas derivadas possíveis.

Esta é a luta ocorrida na encruzilhada do desfiladeiro de Pótnias, entre Delfos e Dáulis. A ideia narcisista de que neste mundo só há lugar para um rei absolutista está simbolizada no caminho estreito que dá passagem a apenas um dos confrontantes. Laio já havia tentado eliminar o filho na infância, temendo que este usurpasse o seu lugar. Agora, na encruzilhada, mais uma vez, arrogantemente tenta tirá-lo de seu caminho. Ou seja, mais uma vez fere o narcisismo do filho, o que está também simbolizado no detalhe de a roda da carruagem ferir seus pés novamente. As cicatrizes nos calcanhares de Édipo simbolizariam, assim, a memória indelével de uma tentativa sofrida de filicídio. Édipo, por seu turno, tem o narcisismo normal da juventude, acrescido de um outro compensatório, devido às feridas no corpo e na alma que carrega consigo: além das cicatrizes nos pés e calcanhares e da necessidade de apoiar-se em um bastão para poder caminhar, a marca de um filho adotivo! O resultado foi, então, inevitável, isto é, o parricídio. O ódio narcisista filicida (ou a erotização narcisista incestuosa), acrescenta Faimberg (2005/2006), perverte a configuração edípica normal, imprescindível para um desenvolvimento psíquico adequado.

Será justamente pelo narcisismo que nenhum dos dois contendores, Édipo e Laio, pôde tomar e seguir pelo terceiro caminho existente na encruzilhada? Um tópico, aliás, raramente comentado na literatura pertinente.

Um pai edípico, por outro lado, proíbe ao filho apenas uma mulher específica - sua esposa e mãe do filho -, mas permite e até auxilia este último a buscar seu próprio espaço e seu próprio objeto erótico. Concebe, no dizer de Faimberg (2005/2006), “um projeto exogâmico para seu filho” (p. 141).

Todos os protagonistas do triângulo edípico estão submetidos ao que proponho chamar de lei edípica: em um triângulo edípico (que é assimétrico), ninguém tem tudo. Ninguém é tudo para um dos restantes protagonistas do triângulo. Contrariamente à lei narcisista, ninguém tem o poder absoluto de imperar para sempre sobre o destino do outro. (Faimberg, 2005/2006, p. 141)

Faimberg (1993/2001) sublinha ademais - e agora no que diz respeito ao próprio Édipo - que, em sua consulta ao oráculo após a insinuação de adoção durante o banquete em Corinto, ele pergunta acerca do seu futuro e não sobre sua genealogia, isto é, sobre suas origens, como seria esperado. Isto sugere que não desejava saber sobre uma verdade já intuída.

Bion, vínculo K, complexo de Édipo e narcisismo

Para Bion (1962/1977b) o desejo de conhecer (o vínculo K) é tão primário e básico quanto os vínculos de amor (L) e de ódio (H). Se levarmos em conta esta proposição, vários conceitos psicanalíticos básicos precisariam ser repensados (Hartke, 2013). Só para exemplificar, o inconsciente deixa de ser apenas o reservatório de pulsões amorosas e destrutivas e se torna também, ou mesmo essencialmente, tudo aquilo ainda não descoberto ou não evoluído da experiência humana. O objeto converte-se também em um provedor de significados, em vez de ser apenas gratificador ou frustrador. O “terror sem nome” (Bion, 1962/1977b), isto é, o temor à perda total do significado da experiência emocional, ganha destaque em relação às angústias já descritas. O mesmo acontece com o complexo de Édipo. Freud e outros autores o abordam basicamente à luz dos conflitos de amor e ódio em relação aos pais. Sob o vértice do vínculo K, Bion passa a destacar a questão da busca arrogante da verdade diante de um casal de pais invejado. Em outras palavras, ganha proeminência uma curiosidade que, pelo forte componente narcísico, origina um descomedimento (hýbris). Este, como nas tragédias gregas, será punido - nesse caso, com a instauração da confusão mental, da loucura e da desmentalização.

Segundo suas próprias palavras, a inclusão do vínculo K

torna o crime sexual um elemento periférico de uma história em que o crime central é a arrogância de Édipo ao jurar que desnudaria a verdade a qualquer preço.

Essa mudança de ênfase coloca os seguintes elementos no centro da história: a esfinge que formula o enigma e se destrói, quando este é respondido; o cego Tirésias que, possuindo saber, lamenta a decisão do rei de sair a buscá-lo; o oráculo que instiga essa busca que o profeta condena e, além desses, o rei que, concluída a busca, sofre a cegueira e o exílio. (Bion, 1957/1994, pp. 101-102).

Ou seja, torna-se importante investigarmos o significado e a função destes personagens destacados por Bion no drama edípico.

No que se refere ao próprio Édipo, Bion (1957/1994) sublinha sua obstinação arrogante, já como rei de Tebas, em descobrir a qualquer preço a verdade sobre o assassinato de Laio. Para mim, entretanto, a influência da arrogância narcísica sobre o conhecimento já estava presente na situação anterior, no confronto com a Esfinge no monte Fíquion - situação a partir da qual ocorre sua ascensão ao trono, o casamento com a mãe e, consequentemente, seu final trágico. Nesse sentido, o mitólogo Paul Diel (citado por Brandão, 1992) propõe que, ao confrontar e derrotar a Esfinge, Édipo deleitou-se com a imaginação vaidosa de tornar-se um herói, realizando uma façanha que ninguém antes havia conseguido: libertar a cidade, símbolo do mundo, da praga que a estava destruindo. Na verdade, porém, estava transformando as angústias e deficiências que o deixavam “claudicante” em uma autossuficiência narcísica que lhe propiciou um triunfo apenas aparente. No dizer de Brandão (1992), Édipo “sabia demais” (p. 263) e esse tipo de saber causou sua derrocada. Nesse “demais” vaidoso está, a meu ver, a hýbris que provocou a punição.

A necessidade narcísica de compensações impediu-o de dar-se conta de que o enigma fazia referência a ele mesmo, à sua própria história. Era ele o ser que, ainda jovem, adolescente, já caminhava com três pés, pois necessitava apoiar-se em um bastão devido às feridas infligidas na infância.

Édipo, o neurótico, não percebe que o enigma da Esfinge alude à sua própria deformação, não se dando conta de que ele mesmo é o homem que deve ficar de pé, para que se chegue à verdadeira solução da pergunta da Esfinge. (Brandão, 1992, p. 281)

Esse mesmo bastão foi empregado para matar Laio e, para Diel (citado por Brandão, 1992), representa simbolicamente a muleta-vaidade hipertrofiada, usada como “corretivo desajeitado da alma mutilada” (p. 278).

Em uma linha semelhante de pensamento, Green (1992/1994) observa que o desejo intenso de tomar o trono e a esposa de Laio obliterou a capacidade de raciocínio de Édipo, capacidade que poderia, por meio de inúmeros indícios, levá-lo a dar-se conta de que havia recentemente assassinado o rei de Tebas. Na interpretação de Steiner (1993/1997), Édipo sabia e não sabia a verdade, ou melhor, “fingia não saber” para evitar a dolorosa realidade. E assim também procederam Laio, Jocasta e os demais cidadãos de Tebas. Isto sem contar que Tirésias e o servo que entregou a criança ao pastor de Corinto sabiam claramente a verdade, mas se mantiveram calados até Édipo insistir em conhecê-la.

Estes distúrbios relativos à busca da verdade constituem exemplos da utilidade dos mitos de Édipo e de Narciso na investigação dos problemas do conhecimento. Bion (1992) ainda acrescenta a eles, para a mesma finalidade, os mitos da Torre de Babel e de Adão e a árvore do conhecimento. O mito de Narciso é escolhido para esse fim porque, segundo Bion (1992), serviria para examinar problemas do conhecimento e aprendizado relacionados à curiosidade do pesquisador sobre sua própria personalidade - uma curiosidade que necessitaria o auxílio de um espelho e que, no caso de Narciso, seria influenciada pelo amor a si mesmo, perdendo, assim, a neutralidade que deveria possuir uma investigação científica. A punição é exemplar.

Aceitando o desejo de conhecer como um vínculo tão primário e elementar quanto o amor e o ódio, podemos examinar agora as manifestações e consequências de cada um deles, assim como a influência do narcisismo tanto no complexo de Édipo em si como na configuração edípica proposta por Faimberg (2005/2006), sempre tomando os mitos de Édipo e de Narciso como instrumentos de investigação dessas situações emocionais essenciais no desenvolvimento humano.

No jovem Édipo, o amor não deixa de ser objetal, mas não aceita a interdição do incesto e do parricídio. Para Freud (1923/1997, 1926/1998a), é este desejo libidinal que gera todo o conflito do complexo que leva seu nome. O ódio, a agressividade, manifesta-se no parricídio. Para Klein (1945/1992) e, sob uma perspectiva freudiana, também para Rosenberg (1997/2001), é a pulsão agressiva, derivada da pulsão de morte, que está na origem do referido complexo. O desejo de conhecer (vínculo K) é arrogantemente exercido tanto no confronto com a Esfinge como na investigação sobre o assassinato de Laio e, para Bion (1957/1994), como já mencionado, constitui o elemento central do complexo.

Bion (1957/1994), Green (1992/1994) e Faimberg (1993/2001, 2005/2006) sublinham a presença do narcisismo de Édipo, seja no desfiladeiro de Pótnias, seja no monte Fíquion, seja já em Tebas como investigador do crime.

No que diz respeito aos pais da configuração edípica, o narcisismo evidencia-se eventualmente na paixão homossexual de Laio pelo jovem Crisipo e, mais diretamente, na paixão pelo poder que o leva a tentar eliminar o filho que, segundo o vaticínio, lhe usurparia o trono. Em Jocasta, também aparece no seu apego ao poder, que a torna cúmplice do marido na tentativa de filicídio e a faz não conseguir ou não querer perceber que estava casada com o filho, apesar de vários indícios nesse sentido. O ódio, a moção agressiva, manifesta-se claramente na tentativa de filicídio. Já o desejo de conhecer aparece obliterado em Jocasta pelos mesmos motivos narcísicos que acabei de referir. O narcisismo relacionado ao poder está igualmente presente em Creonte, tio materno e cunhado, que também havia abandonado a investigação sobre a morte de Laio e que evita pensar sobre os indícios que ligariam esse crime a Édipo. O mesmo acontece, como já indicado, com todos os cidadãos de Tebas. Encontra-se, ademais, na ocultação da condição de adotivo por parte de Pólibo e Mérope, rei e rainha de Corinto, que não tinham descendentes e criaram Édipo como filho de sangue. Faimberg (1993/2001, 2005/2006) considera que esta ocultação foi um dos fatores responsáveis pela concretização do parricídio e do incesto no caso de Édipo.

O que me interessa particularmente explorar a seguir é a forma como a configuração edípica, a dimensão narcisista desta configuração e a arrogância narcísica relativa ao desejo de conhecer podem manifestar-se na relação entre o analisando e o analista; mais especificamente, como o narcisismo pode aparecer na mente ou mesmo nos procedimentos do analista - e isto não apenas porque cada vez mais levamos em conta a participação da mente do analista na construção e desenvolvimento do chamado “campo analítico” (Baranger & Baranger, 1969) mas por considerar que o melhor lugar para descobrirmos o verdadeiro significado de um conceito teórico psicanalítico é em nós mesmos, seja em nossa própria análise, seja durante o encontro terapêutico com nossos pacientes.

Em função disso tudo, completarei minha exposição com o relato de uma situação clínica.

 

Confronto e encontro na sala de análise

S. é casado, pai de dois filhos. Procurou tratamento por dificuldades no relacionamento com seu pai e, sobretudo, porque não conseguia ter em seu trabalho o progresso e a satisfação condizentes com suas capacidades, reconhecidas por todos os colegas e demais profissionais da área. Evidenciava certa tendência submissa diante da esposa e das outras pessoas, e temia que seus filhos acabassem aproximando-se e valorizando mais os avós paternos, principalmente o avô. Este é um homem de muitas posses, poderoso, cultuado por várias pessoas e que sente prazer em usufruir e deixar evidente tal posição. A mãe de S., uma mulher muito elegante e fina, também tem bastante êxito social, mas pouca voz ativa em casa, mesmo nas questões domésticas, já que o marido tudo comanda, com suposta educação, mas com uma firmeza que parece não admitir muita contestação.

É filho único e sempre se sentiu, de acordo com suas palavras, “amassado pelo pai” temendo, como já disse, que os próprios filhos valorizassem mais o avô que a ele. Este, de fato, frequentemente os seduz com presentes e viagens caras, que seriam impossíveis para os recursos próprios de S. Dedica-se a uma atividade acadêmica e profissional muito diferente da tradição familiar, vista pelo pai como algo alternativo, desvalorizado, e que possui algumas áreas de interseção com interesses da psicanálise.

Há alguns anos, o pai de S. tornou público para a família que, em testamento, destinará para seus netos toda a parte de seus bens que a lei permite dispor a seu gosto, deixando o filho apenas com o usufruto deles. Esta situação provocou em S. grande desconforto e revolta interior, mas muito pouca reação externa, com uma aparente aceitação em nome do amor pelos filhos e da paz familiar. Há pouco tempo, soube da possibilidade de que a casa onde seus pais residem e que sempre pertenceu à família seja também deixada para um dos seus filhos, que é o mais próximo dos avós.

Recentemente, S. conquistou afinal um grande sucesso em sua área. Seu pai compareceu à comemoração do evento; agora, porém, já mais envelhecido, precisou retirar-se cedo e foi levado pelo neto mais velho. S., que estava feliz com sua presença, experimentou dor e tristeza após sua saída. Ao relatar o evento e seu sucesso, mostrou-se gradualmente mais exultante, parecendo-me até um pouco grandioso, assim como alguém “com o rei na barriga”, segundo a imagem que me ocorreu naquele momento. Cogitou até se isto não poderia ser o prenúncio de uma alta próxima do tratamento.

Comecei a me sentir um pouco irritado com o seu jeito, desejando confrontá-lo quanto ao que me parecia uma atitude algo arrogante. Ocorreu-me a ideia de que um analista poderia, quem sabe, ter uma outra visão, eventualmente até mais profunda, do assunto que ele havia desenvolvido com tanto êxito. Percebi que algo complexo estava ocorrendo comigo e, por isso mesmo, fiquei em silêncio, ouvindo-o e me ouvindo, à espera de alguma compreensão. Em seguida, me vi pensando em meu neto, meu primeiro neto, à época com 1 ano e 2 meses, e nos pais dele, minha filha e meu genro. Lembrei como, em alguns momentos, tanto eu como minha mulher já havíamos sentido o desejo de interferir em determinada situação, baseados em nossa maior experiência como pais, e ao mesmo tempo como era fascinante e estimulante constatar que eles sabiam encaminhar as coisas a seu próprio modo e com sucesso - o que não impede que muitas vezes peçam nosso auxílio e que os ajudemos com prazer. Recordei também, como tenho cada vez mais a convicção, que a condição de avós nos faz realmente vivenciar a sequência das gerações, o suceder das gerações, colocando-nos em um outro lugar e nos permitindo perceber a necessidade e a importância de abrir espaço para nossos filhos, na família, nas instituições, na sociedade. Tudo isto com orgulho e prazer, o que não exclui, entretanto, lutos e também invejas que precisam ser elaborados.

E me vi então, diante de meu paciente, como um pai narcisista experimentando uma reação negativa frente ao seu sucesso. Ao redigir o relato, me diria um Laio diante de Édipo no caminho estreito do desfiladeiro de Pótnias, com o sentimento de que haveria espaço para apenas um de nós dois. É claro que esta compreensão me possibilitou mudar internamente. Agora poderia tentar transformar o eventual confronto mortal na encruzilhada em um encontro terapêutico na sala de análise. Já tranquilo, conseguindo resgatar a contratransferência positiva, disse-lhe apenas que o via orgulhoso de seu sucesso, mas que também me parecia que isto poderia estar lhe despertando outras fantasias, desconfortos e talvez até medos. S. se emocionou, voltando a descrever que sentiu certa pena ao ver o pai envelhecido precisando recolher-se mais cedo. Um triste sentimento de inversão de papéis, já que tantas vezes estivera em situações nas quais eram os sucessos do seu pai que estavam sendo comemorados.

“Mas seria só este sentimento de pena?” - perguntei-lhe. “Quem sabe outros também poderiam ter lhe ocorrido?”. “Sem dúvida", retrucou. E estes eram os mais difíceis de encarar! Um deles era a mágoa. Mágoa pelas tantas atitudes do pai que, nestes anos todos, o haviam feito sofrer - sentindo-se alijado na sucessão das gerações. Raiva também. Uma raiva que o fazia sentir-se culpado. E, junto com tudo isto, um sentimento de triunfo: agora obtinha sucesso, enquanto o pai começava a sair de cena. Disse - novamente emocionado e com alguma tristeza - ser covardia dos avós valer-se dos recursos maiores e mesmo da maior experiência para seduzir os netos. Mas, apesar de tudo, S. também o admirava. O que fazer com isso? Persistir com a mágoa e ficar prisioneiro disso pelo resto da vida? É possível esquecê-la? Teria sentido lutar por uma mudança no testamento? O que significa desculpar? Sua sensação é de que desculpar, se é que isto é realmente possível, implicaria uma acomodação que beiraria à submissão! Seria maturidade ou submissão? Estendeu-se um pouco sobre estas questões e perguntou-me então como lidar com tudo isso. Disse-lhe que não tinha uma fórmula para oferecer, mas que pelo menos já estávamos podendo encarar e falar sobre estes seus sentimentos, abrindo um espaço na mente para começar a enfrentá-los. S. concordou, emocionado, e nos despedimos.

Na sessão seguinte, trouxe um sonho no qual era o feliz empregado de um grande empresário, quase um mandalete, executando suas funções com grande dedicação e prazer. Quando começamos a explorar em conjunto os detalhes do sonho e o que eles nos evocavam, disse que subitamente lhe veio à mente algo que não gostaria de ter pensado. Lembrou que os leões mais jovens ficam esperando que o leão mais velho, até então dono de todas as fêmeas, mostre sinais de envelhecimento ou fraqueza para então atacá-lo, expulsando-o ou eliminando-o e tomando o seu lugar. Ou seja, conforme vimos, subjacente ao conteúdo manifesto de subserviência ao chefe/pai, evidenciava-se o desejo de aproximar-se dele, procurá-lo em seu espaço, para derrotá-lo e ocupar sua posição, em vez de buscar seu próprio caminho. E assim começamos a examinar as suas fantasias “parricidas”, ou seja, o seu complexo de Édipo, incluindo suas derivações transferenciais. E nesse mesmo contexto viemos também a nos defrontar com situações que mostravam um funcionamento de S. semelhante ao que descrevia em seu pai.

Faimberg (1993/2001) sublinha que, na análise, o paciente precisa obviamente conseguir assumir a responsabilidade por seus desejos inconscientes. Mas observa ainda ser necessário poder reconstruir, na transferência, uma eventual identificação inconsciente com um pai narcisista, assim como reconhecer o sofrimento de um filho por não ter sido amado ou, inclusive, por defrontar-se com a impensável angústia de não ter sido desejado.

No caso específico de Édipo, por exemplo, sua responsabilidade quanto a seus próprios desejos inconscientes está, segundo Faimberg (1993/2001), “alienada por uma lógica narcisista que o filicídio e a mentira [a adoção não revelada] perpetuam” (p. 142).

O que gostaria de sublinhar, para os meus propósitos presentes, é que o funcionamento de um pai narcisista estava prestes a ser reproduzido por mim nesta relação analítica, em parte induzido, quem sabe, pelo próprio paciente, mas sem dúvida nenhuma também por minhas próprias questões emocionais, pelo narcisismo presente dentro de cada um de nós e muitas vezes exacerbado nesses encontros nos desfiladeiros da vida com as gerações que vão nos suceder. Pelo menos por um momento, senti uma necessidade de saber mais do que meu analisando, a ponto de chegar a considerar que um psicanalista teria respostas mais profundas para os assuntos com os quais ele trabalhava. Tomado por uma tendência deste tipo, eu facilmente poderia também pensar que teria uma resposta definitiva para suas cogitações acerca, por exemplo, de o que significaria desculpar - ou seja, achar, narcisicamente, que resolveria os enigmas que ele estava propondo. E mais: seria possível doravante agarrar-me às compreensões parciais e temporárias que alcançamos nas sessões relatadas e considerá-las como soluções definitivas para todos os seus problemas psíquicos. Em outras palavras, poderia idealizar tais compreensões, ficando depois a contemplá-las como imagens narcísicas estupefacientes, até o processo analítico sucumbir como Narciso sucumbiu na fonte de Téspias. E tudo isto enquanto meu analisando estaria eventualmente me procurando desesperadamente para um verdadeiro contato emocional, como Eco a Narciso. É evidente que o contrário também pode ocorrer, ou seja, o analisando permanecer encerrado em uma concha narcísica deixando a mim na dolorosa posição de Eco, caso eu aceite tal posição, imobilizado por eventuais conflitos ou culpas pessoais inconscientes.

Em um nível mais amplo, há sempre também a possibilidade de ter compreendido e prosseguir compreendendo meu analisando basicamente como um reflexo dos meus mitos ou teorias preferidos, mais uma vez como Narciso contemplando sua própria imagem. Com isto, obteria, quem sabe, uma sensação defensiva de completude e segurança que na verdade obliteraria minha possibilidade de conhecimento.

Compete a nós, analistas, transformar momentos como o relatado, que podem converter-se em um confronto filicida, parricida ou narcotizante, em um encontro terapêutico gerador e mantenedor de um espaço para pensar e, assim, para o crescimento emocional do paciente (e de nós mesmos). Nos termos de Bion (1962/1977b), isto envolve o necessário e imprescindível predomínio do vínculo K na sala de análise. Um desejo de conhecer que implica uma permanente tolerância à dúvida e a um sentimento de infinitude e que não seja superado pelo vínculo de amor ou de ódio, sempre também presentes. Este, para mim, é o terceiro caminho que podemos tomar na encruzilhada de Pótnias, no desfiladeiro entre Delfos e Dáulis, em um trívio com o qual, mais cedo ou mais tarde, todos nos deparamos na vida e que, penso eu, enfrentamos cotidianamente em nossos consultórios. Um terceiro caminho que implica também o exame de nossas próprias reações e motivações em tais momentos, diversamente do que fez Édipo no confronto com a Esfinge no monte Fíquion. Um exame que, além disso, não seja dominado apenas pelo amor a si mesmo, como ocorreu com Narciso na fonte de Téspias.

 

Referências

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Correspondência:
Raul Hartke
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Recebido em 14.08.2014
Aceito em 25.08.2014

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