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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.48 no.3 São Paulo set. 2014

 

ARTIGOS

 

Aniquilação e mutilação - diferentes “dilemas psíquicos” discutidos a partir do Homem dos Lobos e do Pequeno Hans1

 

Annihilation and mutilation - different psychic dilemmas discussed from “Wolf Man” and “Little Hans”

 

Aniquilación y mutilación - distintos “dilemas psíquicos” discutidos a partir del hombre de los lobos y el pequeño Hans

 

 

Ligia Maria DurskiI; Nadja Nara Barbosa PinheiroII

IMestre em psicologia clínica e membro do laboratório de psicanálise da Universidade Federal do Paraná. Doutoranda na Universidade de São Paulo, sob a orientação de Gilberto Safra
IIMestre e doutora em psicologia. Coordenadora do laboratório de psicanálise e professora adjunta da graduação e do mestrado em psicologia da Universidade Federal do Paraná (UFP)

Correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo realiza um paralelo entre o que nomeamos de “aniquilação” e “mutilação”, a partir de particularidades dos casos do Homem dos Lobos e do Pequeno Hans, relatados por Freud. Trata-se de um exercício didático, por assim dizer, para tornar mais clara a diferença específica entre algumas implicações referentes ao complexo de castração e a um “além do complexo de castração” - em outras palavras, entre dilemas psíquicos cuja tônica trata de uma “perda total” ou de uma “perda parcial”. O texto destaca que tal diferenciação não é sem importância, uma vez que deflagra um sério questionamento ético ao analista. O trabalho apresentado procura tornar evidente a relevância da sensibilidade e do posicionamento do analista diante dos diferentes momentos e dilemas psíquicos despontados pelo paciente na relação transferencial.

Palavras-chave: ética da psicanálise; tato; castração; Freud; Winnicott.


ABSTRACT

This paper develops a parallel between what we named “annihilation” and “mutilation”, from particularities of the cases of Wolf Man and Little Hans, reported by Freud. It is a didactic exercise, as it were, to clarify the specific difference between some implications relating to the castration complex and to some “beyond the castration complex” - in other words, between psychic dilemmas whose emphasis is on a “total loss” or on a “partial loss”. The text highlights that such differentiation is not unimportant as it triggers a serious ethical questioning to the analyst. The work presented seeks to make evident the relevance of the sensitivity and of the positioning of the analyst in face of the different psychic moments and dilemmas exposed by the patient in the transferential relationship.

Keywords: ethics of psychoanalysis; tact; castration; Freud; Winnicott.


RESUMEN

En este trabajo se establece un paralelo entre lo que hemos llamado “aniquilación” y “mutilación”, a partir de las particularidades de los casos reportados por Freud del Hombre de los Lobos y el Pequeño Hans. Es un ejercicio didáctico, por así decirlo, para hacer más clara la diferencia entre algunas implicaciones específicas para el complejo de castración y el “más allá del complejo de castración” - en otras palabras, entre dilemas psíquicos cuya tónica es una “pérdida total” o una “pérdida parcial”. El texto señala que esta distinción no es muy importante, ya que provoca un desafío ético grave para el analista. El trabajo que se presenta tiene por objetivo dejar clara la importancia de la sensibilidad y la posición del analista en los diferentes momentos y dilemas psicológicos sacados a la luz por el paciente en la relación transferencial.

Palabras clave: ética del psicoanálisis; el tacto; la castración; Freud, Winnicott.


 

 

O paralelo aqui destacado, a partir dos casos do Homem dos Lobos e do Pequeno Hans, pretende possibilitar ao leitor maior clareza numa questão específica que recorrentemente aparece na clínica: a diferença entre aniquilar e mutilar. Ter clareza nessa diferença parece-nos imprescindível para que o analista esteja advertido das implicações de sua postura diante de diferentes conflitos que o paciente pode apresentar na relação transferencial.

O uso dos termos “aniquilar” e “mutilar” possibilita um modo didático, por assim dizer, de apresentar a diferença entre “dilemas psíquicos” que se enquadram, de um lado, mais próximos da inexistência e, de outro, da perda. Ou seja, é diferente perder um pedaço de si (e continuar vivo) ou “se perder” por completo.

 

Algumas observações sobre a aniquilação e o medo de ser comido do Homem dos Lobos2

De início, três situações devem ser destacadas:

1) por meio do processo analítico, fora localizado um medo central na infância do paciente: medo de que um lobo viesse e o comesse (Freud, 1914, p. 17);

2) o paciente lembrava que “também os cavalos despertavam nele um estranho sentimento. Se alguém batia num cavalo, ele começava a gritar, e certa vez foi obrigado a sair de um circo por causa disso. Em outras ocasiões, ele próprio gostava de bater em cavalos” (Freud, 1914, p. 18); e,

3) “quando se aproximava de pessoas às quais o paciente tinha por baixa estima, respirava soltando o ar ruidosamente, para que não ficasse como eles; e, em determinadas circunstâncias, tinha que inspirar vigorosamente” (Freud, 1914, p. 18).

O caso fora alcançando uma complexidade tal que, para que a análise avançasse, Freud se viu forçado a fazer “um détour pelo período pré-histórico da infância” (Freud, 1914, p. 19) - e assim se passou. Freud achou bastante curioso e enigmático o fato de que lembranças trazidas pelo paciente à análise remontavam a períodos extremamente precoces de sua vida e, nesse détour, um sonho específico veio à mente do paciente:

Sonhei que era noite e que eu estava deitado na cama (meu leito tem o pé da cama voltado para a janela: em frente à janela havia uma fileira de velhas nogueiras. Sei que era inverno quando tive o sonho e de noite). De repente, a janela abriu-se sozinha e fiquei aterrorizado ao ver que alguns lobos brancos estavam sentados na grande nogueira em frente da janela. Os lobos eram muito brancos e pareciam-se mais como raposas ou cães pastores, pois tinham caudas grandes, como as raposas e orelhas empinadas, como cães que prestam atenção em algo. Com grande terror, evidentemente de ser comido pelos lobos, gritei e acordei. [...] Tinha três, quatro ou, no máximo, cinco anos de idade na ocasião (Freud, 1914, p. 31).

Esse sonho explicitava o recorrente “medo de ser comido por um lobo” e o desemaranhar dos nós que desencadearam este medo obrigara Freud a mergulhar - junto com o paciente - ainda mais profundamente nas lembranças mais prematuras da infância do paciente, e acabou por evidenciar justamente a trama que se passa na chamada “fase oral” da organização libidinal.

Tenho sido levado a considerar como a primeira organização sexual reconhecível a assim chamada “fase oral” ou “canibalesca”, durante a qual predomina ainda a ligação original entre a excitação sexual e o instinto nutritivo. [...] Nessa fase o objetivo sexual só pode ser o canibalismo, o propósito de devorar; no caso do nosso paciente, surge através da regressão de um estágio mais elevado, na forma de um “medo de ser comido pelo lobo” (Freud, 1914, p. 113).

Na leitura desse caso, fica cada vez mais claro que a problemática exposta pelo Homem dos Lobos apontava constantemente para questões de indiferenciação sujeito/objeto. Ora, o medo de ser devorado contém a ideia de fazer parte do corpo daquele que o devora, de estar dentro desse que o devora e, assim, não ser apenas parte dele, mas se misturar a ele. Tais conjecturas fazem sentido, se pensarmos naquilo que o canibalismo evidencia: comer um outro, ter esse outro dentro de si, misturar-se a um outro, não mais haver diferenciação entre aquele que comeu e aquele que é comido.

Pois bem, e o segundo ponto que nós destacamos: quando o Homem dos Lobos via um cavalo apanhando e ele mesmo começava a gritar, sendo que em outros momentos ele próprio batia em cavalos? E o terceiro: quando ele não queria “se misturar” a pessoas que tinha por baixa estima e expirava ruidosamente?

Fica óbvia a recorrência e o reflexo de uma problemática que aponta para questões de indiferenciação sujeito/objeto. Questões estas que, ao deflagrarem uma indiferenciação sujeito/objeto, parecem necessariamente encontrar sua base na pré-história do funcionamento psíquico - quando ainda o Eu encontrava-se indiferenciado do Id.

Também, se esse dilema psíquico que estamos nomeando de aniquilação se refere a um “tempo” no qual o Eu ainda não estava diferenciado do Id, como é que algo é “registrado” e anunciado por um medo de aniquilação (no caso do Homem dos Lobos, por um medo de ser comido)? Nos parece que esse “registro” é o registro dos destroços, das consequências de “algo” que se passou - só nos sendo acessível por seus efeitos. Isso porque, pelo fato de remeter a um tempo de indiferenciação sujeito/objeto, o acesso direto à causa mesma que sustenta o referido medo de aniquilação nos parece impossível, pois ainda não inventamos uma máquina do tempo, nem surgiu até hoje um bebê que nascesse falando.

De qualquer modo, o que Freud assevera3 a partir do Homem dos Lobos é que, tendo ou não - por inúmeras razões - incidências patológicas, essa “primitiva” indiferenciação sujeito/objeto está como que na base da formação do aparelho psíquico.

É como se disséssemos algo óbvio: ninguém nasce com um Eu já formado. Além disso, Freud vai mais longe e deixa claro em sua obra que o próprio momento antes da formação do Eu continua “vivo”, e a forma como essas organizações foram sendo estabelecidas na vida de cada um também continuará “viva” e sustentará tanto a saúde como a doença.

Nisso tudo, nos interessa, pois, a pergunta: e o analista? Como se posiciona o analista diante dessa ameaça de aniquilação? Sabe o analista sobre a sensível diferença, interferência e consequências da sua ação em “tempos” de aniquilação e em “tempos” de mutilação? Deixemos tais perguntas em aberto, para retomá-las ao final deste artigo, após conjecturar-mos sobre o “mutilar”.

 

Apontamentos sobre a mutilação e o medo de ser mordido do Pequeno Hans

Antes de abordarmos pormenores do caso Pequeno Hans (Freud, 1909), vejamos uma curiosa nota de rodapé que Freud acrescentou ao texto em 1923, para situar justamente a diferença dessas “perdas”,4 aqui nomeadas de aniquilar e mutilar:

Já foi sugerido com insistência que o bebê, toda vez que o seio materno é afastado dele, sente essa privação como uma castração (isto é, como perda daquilo que ele considera como uma parte importante de seu próprio corpo); ademais, sugeriu-se que ele não pode deixar de ser identicamente afetado pela perda regular das fezes; e que, afinal, o ato do próprio nascimento (que consiste, de fato, na separação da criança da mãe, com a qual ela até então esteve unida) constitui o protótipo da castração. Mesmo reconhecendo todas as raízes do complexo, expus o ponto de vista de que a expressão “complexo de castração” deve restringir-se àquelas excitações e consequências decorrentes da perda do pênis. Qualquer um que, analisando pessoas adultas, se convenceu da presença invariável do complexo de castração irá sem dúvida encontrar dificuldades em atribuir sua origem a uma ameaça causal, aliás, de espécie nada comum; será levado a admitir que as crianças constroem para si mesmas esse perigo, utilizando os mais indiretos indícios, os quais jamais deixarão de existir. Tal circunstância é também, com efeito, o motivo que estimulou a busca daquelas raízes mais profundas do complexo que têm ocorrência universal (Freud, 1909, p. 12; grifos nossos).

Nessa citação, Freud deixa claro que - ao referir-se ao nascimento (o nascimento aí sendo subentendido como a “primeira vivência de separação”) como um “protótipo da castração” - aquilo que nomeamos de aniquilação é como que a raiz da mutilação. Ou seja, é como se toda “perda parcial” fizesse referência à “perda total”. De qualquer forma, como Freud nos adverte, mesmo sabendo das raízes mais profundas dessa “perda parcial”, é preciso clareza não só naquilo que aproxima tais “perdas”, mas naquilo que as distancia - para não corrermos o risco de fazermos equivalências entre dois “dilemas” distintos.

Vamos ao caso clínico: os primeiros relatos do Pequeno Hans datam de um período em que ele estava para completar três anos. Existia uma questão central nesse caso, o menino desenvolvera uma fobia de cavalos - mais especificamente, de ser mordido por cavalos. O menino tinha medo de sair à rua e acabara por restringir significativamente sua vida. O distúrbio de Hans “teve início com pensamentos ao mesmo tempo apreensivos e ternos, seguindo-se então um sonho de angústia cujo conteúdo era a perda de sua mãe e, com isso, não poder mais 'mimar' com ela” (Freud, 1909, p. 26).

Com a leitura detalhada do caso, podemos perceber que os conflitos psíquicos de Hans se direcionavam, em sua maioria, a conflitos devido à ambivalência, tais como: hostilidade e amor pelo pai; aproximar-se ou afastar-se da mãe; ter ou não ter “pipis”; reter ou liberar seus lumfs (fezes); amar e odiar a irmãzinha; confiar e não confiar nas explicações do pai para suas dúvidas e curiosidades (especialmente sobre a origem dos bebês). É possível percebermos que, a partir do caso do Pequeno Hans, certo trajeto já foi por ele percorrido para que os dilemas que ele apresentava se relacionassem a conflitos devido à ambivalência. Os dilemas que o perturbavam dirigiam-se substancialmente a perdas parciais.

Podemos, então, indagar: quando apontamos a questão da mutilação, podemos asseverar que se trata de conflitos devidos à ambivalência? Parece-nos que sim, que as concepções de mutilação-castração-perda parcial-ambivalência fazem parte da mesma problemática e se remetem a um Eu que já foi aí razoavelmente construído para permitir que tais conflitos tenham uma “ancoragem”, mesmo que muitas vezes precária.5

Diante disso, devemos destacar dois pontos específicos do relato do caso de Hans, que apontam justamente para uma anterioridade desses conflitos devido à ambivalência:

1) segundo relato do pai,

durante algum tempo, Hans tem brincado de cavalo, no quarto, ele trota, deixa cair, esperneia com os pés e relincha. Certa vez prendeu no rosto um saquinho, parecido com a sacola de foci-nheira dos cavalos. Repetidamente, vem correndo até mim e me morde (Freud, 1909, p. 50), e,

2) Hans tinha uma fantasia específica com relação a um bombeiro desparafusando uma banheira, dado que seu pai perguntara-lhe se aquilo lhe causava medo e por quê? Hans respondeu afirmativamente, e justificou que seu medo decorria de banheiras grandes, nas quais podia cair e sua mãe não poderia segurá-lo e ele mergulharia, sumiria na banheira (Freud, 1909, p. 63).

Vale lembrar que - segundo o próprio Freud defende - as questões relativas à castração tenham por pano de fundo, por protótipo, isso que remete à indiferenciação sujeito/ objeto e, aqui, também podemos visualizar, a partir desses dois pontos, que havia em Hans fantasias de indiferenciação e distorções que confundiam sujeito e objeto (no caso, ele e o cavalo - cavalo que, inclusive, remetia à figura do pai), mas que não constituíam, tal quais seus conflitos derivados da ambivalência, a tônica da sua fobia.6

Aqui, especialmente, em termos clínicos, parece importante diferenciarmos qual a tônica do conflito, tendo em vista que, nesse exato sentido, Freud afirma - como já destacado anteriormente - que mesmo “reconhecendo todas as raízes do complexo (de castração), expus o ponto de vista de que a expressão 'complexo de castração' deve restringir-se àquelas excitações e consequências decorrentes da perda do pênis” (Freud, 1909, p. 12), ou seja, de uma perda parcial. Assim, sustentar a prática clínica exclusivamente pela lógica da castração é perder de vista que, para além da perda parcial, existe a perda total.

 

Discussão teórica dos casos, a partir de apontamentos de Freud e de Winnicott

Iniciemos a discussão teórica daquilo que foi aqui destacado nos casos do Homem dos Lobos e do Pequeno Hans, lembrando-nos de duas premissas freudianas:

1) “É uma suposição necessária a de que uma unidade comparável ao Eu não esteja presente no indivíduo desde o início; o Eu precisa antes ser desenvolvido” (Freud, 1914, p. 99);

2) o estudo do aparelho psíquico não pode se pautar simplesmente por um ponto de vista desenvolvimentista. O que significa, em outras palavras, que não podemos pensar a formação do aparelho a partir de fases subsequentes nas quais, após o alcance de uma etapa, a anterior é superada - fato que Freud adverte em inúmeros textos e que se encontra de modo subliminar ao longo de toda sua obra - necessariamente. Sobre isso, vejamos a seguinte citação:

[...] todas as etapas de desenvolvimento da pulsão, tanto a etapa preliminar autoerótica, quanto sua configuração final ativa-passiva, continuam subsistindo lado a lado. [...] O desenvolvimento da pulsão se tornou mais compreensível para nós após termos nos voltado para a história de seu desenvolvimento e levado em conta que há uma permanência e coexistência contínua das fases intermediárias (Freud, 1915, p. 155; grifo nosso).

Deixando, pois, claro que o “estágio” anterior à formação do Eu permanece “vivo”, produzindo efeitos, e que esse “estágio” é caracterizado por uma indiferenciação Eu/não-Eu, mundo interno/mundo externo, sujeito/objeto, corpo e representação do corpo e, por fim, bebê/mãe (ambiente), voltemos a nos perguntar, agora de uma forma mais clara: como podemos pensar um “lugar em nós”, no qual nem conquistamos a posse do próprio corpo? E que consequências isso impõe ao analista em sua prática?

Acontece que uma virada conceitual é dada por Winnicott, quando ele deixa claro em suas elucubrações teóricas que nem mesmo esse início “indiferenciável” - esse “pano de fundo”, que circunscrevemos na obra freudiana e no qual não há ainda uma separação mundo interno/mundo externo - é dado a priori.

Ao lermos Freud, muitas vezes pode nos parecer - especialmente a partir de seus apontamentos sobre um “estado inicial de onipotência” do bebê - que ele considera a indi-ferenciação como um a priori, a partir do qual todos nascemos. Já Winnicott insere aí - exatamente nesse ponto e de forma muito clara - Eu - facilitando, assim, o desencadeamento de formações patológicas do falso self, dificuldades de diferenciação mundo interno/mundo externo, de angústias (inimagináveis) de desintegração e de desper-sonalização, de estados limítrofes e de inabilidade para criar. Ademais, tais consequências se sustentam no que Winnicott nomeou de “congelamento na situação de falha” (Winnicott, 1954). Ou seja - mesmo correndo o risco de sermos aqui repetitivos -, mas fica novamente claro que nesse momento inicial algo pode se passar mal, ou não se passar, e o indivíduo fica como que “preso”, a tal falha. Isso, obviamente, guardadas as proporções de cada caso.

Aquilo que estamos nomeando de aniquilação se dirige, pois, a uma falha no momento anterior à formação do Eu e tal falha acaba sendo uma falha na capacidade de ser do bebê e àquilo que nomeamos de mutilação dirige-se a posteriores frustrações que o bebê possa sofrer após já ter adquirido a capacidade de diferenciar sujeito/objeto. Um longo percurso já foi construído quando da formação do Eu, e então já é permitido ao sujeito perder uma parte de si, no lugar de inexistir.

Desse modo, podemos concluir que, na clínica, nossos pacientes não necessariamente nos trarão somente questões, sofrimentos, repetições, sintomas - enfim, congelamentos e paralisações excessivas referentes de maneira exclusiva ao complexo de castração (mutilação) -, mas também podem atualizar na relação transferencial questões referentes a um “complexo de aniquilação”, por assim dizer.

Sobre nosso fazer clínico, devemos então asseverar que, primeiro, é mais do que necessário que o analista se pergunte constantemente sobre qual o momento psíquico vivido pelo paciente em dado tempo da análise e qual a posição que ele próprio deve adotar para propiciar a continuidade do tratamento e o descongelamento da situação de falha. Sobre isso, vejamos:

[...] é preciso lembrar que os estágios iniciais jamais serão verdadeiramente abandonados, de modo que ao estudarmos um indivíduo de qualquer idade, poderemos encontrar todos os tipos de necessidades ambientais, das mais primitivas às mais tardias. Ao cuidar de crianças, ou ao realizar uma psicoterapia, é necessário estarmos sempre atentos à idade emocional do momento, de modo a podermos oferecer um ambiente emocional adequado (Winnicott, 1971, p. 179).

Winnicott também nos esclarece que, em certos casos, será justamente em momentos de regressão que o paciente, além de conquistar e demonstrar confiança no analista, possibilitará - agora no palco da análise - o descongelamento da situação de falha e uma possível reedição das formas com as quais ele (o paciente) se relaciona com o mundo (externo e interno), talvez, um pouco menos prejudiciais ou um pouco mais suportáveis.

Ou seja, se, parafraseando Winnicott: “Na doença, ou no curso de uma psicoterapia, pode ocorrer a regressão, mas a regressão só adquire um caráter terapêutico se os intensos sofrimentos associados à dependência experimentada puderem ser suportados” (Winnicott, 1971, p. 179), então, será também a capacidade de “suporte” do próprio analista que configurará maior ou menor abertura a tal descongelamento.

Como consequência, podemos conceber que há um risco grande em casos de pacientes que regridem a estados de dependência, pois qualquer ação mal calculada do analista pode levar o paciente à perda da confiança e a uma grave imersão em medos rudimentares de aniquilação, inexistência, desintegração, etc. Sobre isso, vejamos a próxima citação:

Quando ocorre uma regressão no decorrer de uma psicoterapia na qual existem condições para observações e intervenções mais delicadas, o terapeuta rapidamente entra em cena e toma conta do bebê, e então a pessoa entrega a função de nutrir ao terapeuta, e desliza para a posição do bebê [...] O retorno da regressão depende da reconquista da independência, e se isto é bem trabalhado pelo terapeuta, a consequência é que a pessoa se encontrará numa situação melhor do que antes do episódio. Tudo isso depende obviamente da existência da capacidade de confiar, tanto quanto da capacidade do terapeuta de fazer jus à confiança. E é possível que ocorra uma longa fase preliminar do tratamento consistindo exatamente na construção dessa confiança (Winnicott, 1971, p. 163).

Ora, trata-se, pois, de evidenciarmos a importância do constante questionamento do próprio analista acerca de sua sensibilidade - seu tato - em como se posicionar diante de “momentos” de aniquilação ou de mutilação de seus pacientes para não somente incorrer em erros derivados de sugestão, mas também em erros derivados de omissão, que podem reeditar a situação de falha, prolongar e/ou intensificar o sofrimento do paciente.

 

Considerações finais

Fica bastante óbvia a ressalva ética que o paralelo exposto entre “aniquilar” e “mutilar”, apontado neste artigo a partir dos casos do Homem dos Lobos e do Pequeno Hans, contém: é preciso que o analista conquiste uma sensibilidade tal que o habilite a diferenciar quando seus pacientes estão imersos em dilemas cuja tônica se localiza em uma ameaça de aniquilação ou em um sinal de perigo de castração, por assim dizer.

Em resumo, o termo “ameaça de aniquilação” é, ele mesmo, inconsistente para circunscrevermos a problemática que aborda, uma vez que o uso de palavras produz como que um afastamento da “coisa mesma”. Não obstante, é como se houvessem já, antes mesmo da formação do Eu, a possibilidade de vivência de perigos tais que, não havendo ainda o suporte de uma ancoragem egoica, significam uma desfragmentação, uma total extinção da vida, como que um “Armagedon” psíquico. Seria como quebrar a casca de um ovo ainda não pronto para ser chocado - a vida não acontece.

Podemos, de outra maneira, fazer uma analogia comparando esses “anúncios apocalípticos” a “perigos de mutilação” evocando o perigo da guerra, na qual há perdas e sofrimentos descomunais, mas que não chegariam aos pés de uma bomba atômica que destruísse completamente o planeta Terra. Ou seja, embora essa “perda total” nos pareça inacessível ao campo da representação, a clínica diversas vezes nos aponta - e, também, especialmente, o caso do Homem dos Lobos - que tal perigo, de alguma forma, é acessado, tangenciável, dedutível, passível de anúncio.

Ora, diante do exposto, clara é a diferença entre nos posicionarmos diante do analisando tendo em vista que ele reconheça e se responsabilize por seu desejo num lugar lá no qual o analisando já conquistou a ancoragem suficiente para desejar, ou num lugar em que ainda nem mesmo a capacidade de desejar foi estabelecida. Conseguir perceber a “idade” do paciente no interior da relação transferencial - aliás, frisa-se exatamente isso: conquistarmos, como psicanalistas, a “sensibilidade ética” necessária para não nos tornarmos o pivô de (re)ações e (re) edições patológicas do paciente, o que seria justamente uma “antipráxis” psicanalítica.

Para concluir, nos parece que está na perspicaz diferenciação que Winnicott proporciona entre o holding e a interpretação uma profunda reflexão sobre o posicionamento e o tato do analista em frente ao que nomeamos de aniquilação e de mutilação - isso, porém, é discussão para outro trabalho.

 

Referências

Freud, S. (1996). Análise de uma fobia em um menino de cinco anos (O pequeno Hans). In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1909)        [ Links ]

Freud, S. (1996). História de uma neurose infantil (O homem dos lobos). In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. (Trabalho original publicado em 1914)        [ Links ]

Freud, S. (2004). À guisa de introdução ao narcisismo. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1914)        [ Links ]

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Winnicott, D. W. (2005). A família e o desenvolvimento individual (3ª ed.; Marcelo Brandão Cipolla, Trad.). São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1954)        [ Links ]

Winnicott, D. W. (1995). O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1971)        [ Links ]

Winnicott, D. W. (1990). Natureza humana (David Litman Bogomoletz, Trad.). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1971)        [ Links ]

 

 

Correspondência:
Ligia Maria Durski
Rua Floriano Essenfelder, 150
80060-270 Curitiba, PR
Tel.: 41 8802-4993
ligiadurski@hotmail.com

Nadja Nara Barbosa Pinheiro
Universidade Federal do Paraná, Departamento de Psicologia
Praça Santos Andrade, 50
80060-240 Curitiba, PR
Tel.: 41 33102625 e 41 9223-9583
nadjanbp@ufpr.br

Recebido em 16.07.2013
Aceito em 30.08.2013

 

 

 

1 Este trabalho é um recorte resultante da dissertação de mestrado de Durski, L. M. (2011): “Entre o psíquico e o somático - Um estudo, a partir das obras de Freud e Winnicott, sobre os limites e as possibilidades da clínica psicanalítica”, sob a orientação de Nadja Nara Barbosa Pinheiro, da Universidade Federal do Paraná (UFP).
2 Obviamente, não relataremos aqui os pormenores do caso do “Homem dos Lobos” (Freud, 1914), bem como do caso de “O pequeno Hans” (Freud, 1909) - assim, pedimos ao leitor que os releiam, para apreciar melhor a linha argumentativa deste trabalho; apenas nos referiremos a alguns apontamentos para explicitar adequadamente nossos argumentos.
3 Como veremos mais claramente na seção “Discussão teórica dos casos”.
4 A palavra “perdas” está aqui entre aspas pelo fato de que, na questão na aniquilação, não poderíamos propriamente falar em “perdas”, mas sim, mais corretamente, em uma “perda total”.
5 Lembremos que Hans tinha por volta de quatro anos quando sua fobia irrompeu - ou seja, era de se esperar que a resolução possível que ele poderia construir diante das ambivalências que o acometiam fosse precária. A questão, nesse ponto, é que a história do adoecimento de Hans aponta a ocorrência de registros psíquicos que podem se prestar a “pontos de fixação”, sustentando o advento de patologias ao longo da vida. Ou seja, em um sentido específico, podemos asseverar que a formação do Eu é sempre precária, não garantida - a conquista da formação do Eu pode ter se dado, mas nada impede que acontecimentos perturbem essa construção.
6 Diferentemente do caso do Homem dos Lobos, cuja tônica parece de fato circunscrever-se a conflitos de indiferenciação sujeito/objeto.

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