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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.48 no.3 São Paulo Sept. 2014

 

RESENHAS

 

O tronco e os ramos: estudos de história da psicanálise

 

 

Noemi Moritz KonI; Thiago Pereira MajoloII

IMembro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, mestre e doutora em Psicologia Social pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), autora de Freud e seu duplo: reflexões entre psicanálise e arte (1996) e A viagem: da literatura à psicanálise (2003)
IIMestre em História Social, psicanalista, membro da comissão editorial da Revista Percurso (sessão Debates) e do Grupo Acesso: Estudos, Intervenções e Pesquisa sobre Adoção da Clínica Psicológica do Instituto Sedes Sapientiae

Correspondência

 

 

Autor: Renato Mezan
Editora: Companhia das Letras, São Paulo, 2014, 623p.
Resenhado por: Noemi Moritz Kon e Thiago Pereira Majolo

 

 

O tronco, os ramos e os frutos

Não há isenção na narrativa da história. E disto sabe bem, por sua própria experiência, o psicanalista. Não há, tampouco, isenção na construção da memória. Ela é feita de inúmeros rearranjos e é, assim, uma memória criadora da história pessoal e coletiva.

Essa memória é constituída, do ponto de vista da psicanálise, de uma temporalidade singular, que permite que o presente seja capaz de recriar o passado - como nos ensinou Freud (1950[1895]/1976c) com sua noção de a posteriori (nachträglich) - por meio de uma causalidade de ação retroativa, que movimenta incansavelmente nosso aparelho psíquico e reorganiza incessantemente nossas inscrições mnêmicas.

Nesse sentido, a história jamais será absoluta e definitiva: será sempre perspectiva.

É justamente sobre a história da psicanálise que se debruça Renato Mezan em seu mais recente livro, O tronco e os ramos, escrito sob a inspiração de uma “ambição juvenil”, como o autor a denomina, a de construir uma história geral da psicanálise. E se detém sobre a história, evidentemente, em seu modo e método particularíssimos: construindo-a com seu imenso repertório histórico, filosófico e cultural; conjugando generosamente erudição e humor, conhecimento vasto e agudo com exímia e meticulosa capacidade argumentativa.

A filosofia, campo de origem de Mezan, baliza e determina sua historiografia psicanalítica, levando-o a compor uma espécie de cartografia multidimensional, um grande mapa constituído por quatro camadas - as “matrizes clínicas” - que se substituem e se interpenetram (assim como as fases do desenvolvimento psicossexual estabelecidas por Freud). É também uma história que busca se mostrar holograficamente - à imagem da Roma fantástica, um dos modelos de aparelho psíquico concebidos por Freud (1930/1976b) -, e, nesse sentido, uma história ao mesmo tempo particular e absoluta.

Mezan coloca esse eficiente programa em ação: o amplo e preciso esquema orientador torna-se animado, um mecanismo vivente, que tem a função de apresentar, delimitar e dar a compreender a lógica inerente a todos e a cada um dos grandes movimentos intestinos à obra freudiana, movimentos capazes de gerar novas “eras” epistemológicas - como as eras geológicas, resultantes do movimento de placas tectónicas -, as quatro “matrizes clínicas”, das quais falaremos logo adiante, que reconfiguraram, a cada rodada, a totalidade do pensamento freudiano. Apresenta a complexificação e a transformação no decorrer do tempo desse plano guia meticuloso, estabelecendo com exatidão a localização e o sentido amplo das especificidades estudadas - quer se trate do contexto sociopolítico geral e particular de Freud e de outros personagens históricos da psicanálise, quer da criação e da evolução metapsicológica, as ampliações conceituais que respondem a questões teórico-clínicas e epistemológicas - em sua conexão com o todo.

Cria, assim, uma espécie de projeto arquitetônico na história, um sistema lógico que se ramifica no tempo, no qual as singularidades mantêm-se enredadas e ganham seu sentido justamente por seu vínculo com a grande estrutura, com a grande árvore da psicanálise. Uma história muito bem edificada, em todos os seus pormenores, e apresentada tal qual uma maquete eletrônica em 3D, ao modo de, na falta de uma imagem melhor, um SimCity da psicanálise.

E assim, depois de A trama dos conceitos (1998) e Freud, pensador da cultura (2006) - estudos de fôlego nos quais a compreensão da disciplina psicanalítica se conformava ao âmbito da vida e da obra do homem Freud -, Mezan avança pelo território da psicanálise e busca vincular as ideias de Freud - o tronco - com aquelas que serão constituídas por seus sucessores - os ramos. É justamente a decifração dessa coerência orgânica entre o denso tronco e o surgimento e desenvolvimento de seus ramos que constituiria, na visão do autor, o propósito do historiador da psicanálise.

Ou seja, da perspectiva aqui assumida por Mezan, estabelecer a história da psicanálise é formular e tornar evidente o modo pelo qual a herança de Freud foi assimilada e transformada por cada um de seus sucessores, para enfim facilitar, pelo reconhecimento dos laços comuns, a superação da intolerância ignorante que vigoraria entre as várias correntes da psicanálise atual.

Para o autor, a chave mestra - a razão interna - que oferece inteligibilidade para a história da psicanálise e seus desenvolvimentos é a potente intuição da existência de quatro paradigmas que teriam sido configurados no decorrer da construção da obra freudiana, isto é, quatro modelos me-tapsicológicos - as grandes eras geológicas já citadas -, cada qual baseado numa matriz clínica1 diferente (a da histeria, a da psicose, a da melancolia e a da neurose obsessiva) e que redundariam, a seu tempo, nas diferentes escolas da psicanálise. Haveria, assim, uma organicidade instituinte, um nexo interno entre o legado freudiano jamais superado e seus vários desenvolvimentos.

É da seguinte maneira que o autor apresenta seu objetivo: “A psicanálise contemporânea só podia ser compreendida por meio de uma abordagem que entrelaçasse as circunstâncias factuais, o movimento das ideias e a análise epistemológica”. O tronco e os ramos surge, portanto,

para dar conta da estrutura conceitual da teoria adotada por cada escola, para esclarecer os vínculos delas com a obra da qual se afirmavam continuadoras, e para ter uma visão mais nítida de quem foram os homens e mulheres que as formularam. (Mezan, 2014, p. 12-13)

Freud e sua obra permanecem como marcos inaugurais inescapáveis.

É na primeira parte do livro que Mezan esmiúça a obra de Freud e apresenta em detalhes as matrizes clínicas nela presentes, aquelas que conformarão o solo para as escolas posteriores. Desse trabalho rigoroso decorre a comprovação de que os tantos e diferentes ramos que teriam brotado do grosso tronco freudiano partilhariam uma mesma seiva, se estruturariam por meio de um mesmo constructo, adotariam premissas comuns: a ideia do inconsciente, do conflito psíquico, da permanência do sexual infantil no psiquismo adulto, reatualizado na relação transferencial, e da existência de processos de defesa e resistência que se manifestam no jogo entre as instâncias psíquicas (Mezan, 2014, p. 31).

As diferenciações entre os ramos surgiriam, então, como resultado da ação, da sobredeterminação, de fatores acessórios, eventualmente fortuitos, sejam eles geográficos, temporais, interpretativos, pessoais (incluindo-se aí as motivações mais passionais e transferenciais entre Freud e seus seguidores, principalmente os primeiros e mais próximos) ou, ainda, motivados pela experiência clínica dos analistas. Mas é necessário enfatizar que a singularidade de cada uma das diferentes escolas reflete fundamentalmente a matriz clínica particular adotada, o recorte específico feito sobre a obra de Freud. As escolas são, portanto, derivações da matriz freudiana, variantes do espécime primeiro, que anunciam diferenças e particularidades, que estabelecem diálogos entre si, mas que se desenvolvem todas no interior do grande território da história geral da psicanálise: “me parece plausível a hipótese”, escreve Mezan, “de que estejam estreitamente correlacionadas com uma dessas quatro [matrizes clínicas], cujo primeiro esboço - e certamente mais do que isso - se encontra nos escritos de Freud” (Mezan, 2014, p. 34).2

O projeto de historicizar a psicanálise, esse esforço de estabelecer um corpo único para a disciplina em suas diferentes manifestações, tem também o objetivo de oferecer ao leitor a resposta a uma pergunta que Mezan se fazia desde muito jovem e que parece tê-lo orientado na realização desse livro: como é possível que tantas e tão diferentes vertentes de pensamento, às vezes inconciliáveis, façam parte do grande espectro que chamamos psicanálise? Nesse sentido, as muitas e diferentes compreensões do humano formuladas no decorrer da história da psicanálise seriam contribuições inovadoras, que escapariam ao escopo freudiano, ou apresentariam apenas versões da obra original? Haveria autores, que não Freud, capazes de oferecer contribuições singulares para a disciplina psicanalítica, ou a história da disciplina psicanalítica começa e termina na figura insuperável de Sigmund Freud? Os ramos teriam a potencialidade de transformar o tronco, ou seriam apenas uma reprodução sua? Poderíamos, enfim, ir além de nosso pai?

Desse ponto de vista, o projeto de constituição da história da disciplina psicanalítica implicaria sempre a retomada do conflito edípico - e de suas possíveis soluções -, conflito que regula as relações entre as gerações e que foi tematizado por Freud em tantos textos.

O que fazer diante da culpa e do remorso oriundos do assassinato do pai primordial perpetrado por seus filhos? O que fazer com o júbilo de ter se livrado do tirano? O que fazer com seus despojos? Incorporá-los? Rejeitá-los? “O pai morto torna-se mais forte do que o fora vivo”, como escreve Freud em “Totem e tabu” (1913/1976d), ou “Rei morto, rei posto”, como diz a expressão popular? Enfim, o que fazer com o legado do pai para conquistá-lo e torná-lo nosso?3

A depender da resposta que dermos a essas perguntas, em função do jogo entre as identificações e os investimentos libidinais que nos organizam, nos constituiremos internamente à matriz na especularidade e na reprodução alienada do mesmo, ou estabeleceremos, em meio aos elos fecundos que nos ligam à tradição, diferenças e inovações, alteridade; do mesmo modo, a depender das diferentes respostas que pudermos dar a essas questões, constituiremos historiografias da psicanálise muitíssimo diversas.

Vemos ainda que, apesar de ser esse, predominantemente, um livro de história das ideias, de forma especial em sua primeira parte, o autor flerta com outras ferramentas historiográficas, como a micro-história, a história factual-cronológica etc.

Fernand Braudel, precursor da escola historiográfica dos Annales, desenvolveu há várias décadas o conceito de múltiplas durações dentro de uma mesma narrativa histórica, conectando geografia, homens e acontecimentos ao estabelecer relações entre estruturas, conjunturas e fatos. Braudel não tinha, contudo, uma pretensão totalizante, mas sim de ampliação da capacidade analítica a partir de uma maior e mais intricada abrangência metodológica. Sua proposta era uma investida tanto contra os historiadores factuais como contra os estruturalistas, que de um lado excluíam enormes parcelas da população da participação histórica e, de outro, cooptavam a vivacidade dinâmica dos acontecimentos para dentro de ideologias estanques. Braudel pretendia que as narrativas históricas tivessem outra serventia: a de incluir no campo das macroanálises outras mais conjecturais, trazendo para o campo historiográfico conhecimentos diversificados. A história, assim, serviria a um campo ampliado de atores políticos. Sabia, no entanto, que a história jamais escaparia à injunção de estar a serviço de algo ou alguém.

Mezan busca, assim como Braudel, distintos recursos para dar conta da imensa tarefa a que se propôs. Mas o que certamente é uma virtude acaba por gerar também dificuldades. Pois há muitos livros dentro de O tronco e os ramos: há ecos dos já citados A trama dos conceitos e Freud, pensador da cultura, dos quais o autor empresta sua construção histórica sobre o fundador da psicanálise e de suas ideias para buscar agora o desenvolvimento de uma história geral da psicanálise; além disso, há artigos e palestras reunidos em capítulos, com focos, abordagens metodológicas e estilos dissociados entre si, aplicações da tese que orienta a obra, resultando um conjunto híbrido e desigual.

Mas é também essa característica multifacetada que dá ensejo a que pensemos a história da psicanálise de diversas formas, construídas sobre outros tantos recortes ou abordagens teórico-metodológicas possíveis e que estabeleceriam outras tantas perspectivas para a história da psicanálise. A história oral traria ferramentas e recortes importantes, mas também as mais tradicionais historiografias das instituições, as crônicas ou as linhas do tempo, entre outras, têm a contribuir, não devendo ser descartadas. Assim como as escolas psicanalíticas, as historiográficas não podem ser dogmáticas e únicas, e precisam saber a quem ou a que estão servindo. A história precisa da imaginação e da posição do autor frente ao mundo para existir; não é um território neutro, em que se olha para um passado que está à espera de ser visto, imóvel e pronto. História é construção. O próprio Freud sempre se serviu da história para criar sua concepção de homem, e foi ele mesmo quem disse, em “Análise terminável e interminável” (1937/1976a), que, sem certo grau de fantasia, não avançamos um passo sequer. Uma história não imaginativa não é capaz de trazer o passado para o presente, mas apenas, como uma regressão sintomática, nos leva de volta ao passado, deixando-nos fixados e servindo a um desejo do qual não temos posse. A história é o que nos livra da eternidade, esse espaço-tempo em que nada pode se mover e se transformar.

Na apresentação de seu livro, Renato Mezan diz identificar-se, em virtude de sua dedicação bígama à epistemologia e à história da psicanálise, com a figura bíblica de Jacó, aquele que aceitou Lia para ter Raquel (p. 9). No “Sermão de Nossa Senhora do Ó”, o Padre Antônio Vieira escreveu que Jacó só foi capaz de servir tanto tempo a Labão porque habitou a mesma tenda que sua desejada Raquel, a quem podia ver diariamente. E porque a via, seus dias eternos se transformaram em eternidades breves. A distância histórica, o contexto, faz exatamente esse movimento: de nos separar do objeto para que possamos vê-lo e desejá-lo, sem que com isso deixemos de ter uma parte de nós no objeto e do objeto em nós.

 

Referências

Freud, S. (1976a). Análise terminável e interminável. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 23 [CD-ROM]). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1937)        [ Links ]

Freud, S. (1976b). O mal-estar na civilização. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 21 [CD-ROM]). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1930)        [ Links ]

Freud, S. (1976c). Projeto para uma psicologia científica. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 1 [CD-ROM]). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1950[1895]         [ Links ])

Freud, S. (1976d). Totem e tabu. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 13 [CD-ROM]). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1913)        [ Links ]

Freud, S. (2013). Compêndio da psicanálise (R. Zwick, Trad.). Porto Alegre: L&PM. (Trabalho original publicado em 1939-1940)        [ Links ]

Mezan, R. (1998). A trama dos conceitos (4a ed.). São Paulo: Perspectiva.         [ Links ]

Mezan, R. (2006). Freud, pensador da cultura (7a ed.). São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Noemi Moritz Kon
Rua Augusta 2.445, conj. 2
01413-100 São Paulo, SP
Tel.: 11 3083-6193
noemi.m.kon@gmail.com

Thiago Pereira Majolo
Rua Itapeva, 202, conj. 54
01332-000 São Paulo, SP
Tel.: 11 2157-4530
tmajolo@gmail.com

 

 

1 Matriz clínica é um tipo determinado de organização psicopatológica, com estrutura própria, seus conflitos organizadores e suas modalidades específicas de defesa (Mezan, 2014, p. 34). Cada matriz clínica tematiza quatro dimensões: uma teoria geral da psique (metapsicologia), uma teoria da gênese e do desenvolvimento da psique, uma teoria do funcionamento normal e patológico da psique (teoria psicopatológica) e uma concepção do processo psicanalítico.
2 Embora uma outra linha, um subtexto - menos totalizante, mas bem mais tênue -, se insinue em seu raciocínio, como podemos ver nesse parágrafo: “A historicidade da psicanálise consiste nisso: as teorias dos sucessores são ao mesmo tempo psicanalíticas e diferentes das propostas por Freud, novas na acepção forte do termo, sendo impossível derivar cada uma delas somente do 'implícito' ou do 'entrevisto, mas não elaborado' pelo fundador da disciplina. Eis por que é necessário insistir: há história, ou seja, irrupção do novo e do inédito, ruptura e transformação, em função das quais certa continuidade - cujo estatuto necessita determinação - se estabelece e se preserva” (Mezan, 2014, p. 29). É também verdade que nessa outra vertente de pensamento Mezan atenta para a importância de se colocar tanto o personagem Freud como seu pensamento dentro da história. Não haveria mais lugar para leituras míticas e mistificadoras do homem Freud e de sua obra. É preciso entendê-los também na relação com seus contornos exteriores, ou seja, no âmbito da história das ideias. O pensamento freudiano não está fora do tempo; é tributário do associacionismo e do platonismo, como bem identifica Mezan, o que não diminui em nada a singularidade de sua obra. Sua nova “ciência” foi, na verdade, uma amostra bem-sucedida do conhecimento dialético, cuja história também é preciso se fazer entender, divulgar e dar importância, principalmente no cenário atual, em que o cientificismo se tornou uma espécie de religião.
3 Lembramos aqui o ditame de Fausto de Goethe: “Aquilo que herdaste de teus pais, conquista-o para fazê-lo teu” - citado por Freud em “Totem e tabu” (1913/1976d) e em Compêndio da psicanálise (1939-1940/2013, p. 150).

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