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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.48 no.3 São Paulo set. 2014

 

RESENHAS

 

Reverie e interpretação: captando algo humano

 

 

Elias Mallet da Rocha Barros

Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)

Correspondência

 

 

Autor: Thomas H. Ogden

Editora: Escuta, São Paulo, 2013, 256p.

Resenhado por: Elias Mallet da Rocha Barros1

 

 

Thomas H. Ogden é um dos principais e mais criativos autores da psicanálise contemporânea e cada vez mais conhecido no Brasil. Seus artigos estão entre os dez mais citados na literatura psicanalítica internacional. Incompreensivelmente, até hoje poucos de seus livros foram traduzidos para o português, ainda que muitos de seus artigos tenham sido publicados em nossas revistas científicas e tenhamos muitos seminários sobre sua obra nos nossos diversos Institutos.

Reverie e interpretação: captando algo humano, publicado em inglês em 1997 e só agora traduzido, é considerado um marco editorial no desenvolvimento do pensamento psicanalítico.

Este livro é seminal não somente pelo seu conteúdo mas também por sua forma. Ogden (2005) define como um dos objetivos da psicanálise “promover a capacidade do paciente no extremo do possível de tornar-se humano e de experimentar todo o espectro da experiência humana” (p. 8). Nesta frase elegantemente construída, o autor sintetiza aspectos nem sempre enfatizados nos trabalhos de Melanie Klein e de Wilfred Bion, isto é, o quanto o ser humano é capaz de viver sua vida pobremente, tornando-a medíocre, e tendo uma relação com seus afetos muito superficial. Klein (1985) corajosamente definia a superficialidade emocional como uma patologia endêmica à sociedade humana, e Bion nos advertia de quanto uma vida pode ser vivida apenas mecanicamente, de forma a transformar o ser humano numa espécie de zumbi.

Reverie e interpretação, nesse sentido, é um livro para ser vivido e não apenas lido. Imediatamente me vem à mente algo dito pelo Prêmio Nobel de Literatura Orhan Pamuk, em seu discurso perante a academia sueca. Pamuk (2010) diz que o significado de um romance não reside no texto nem no contexto, mas em algum ponto intermediário entre os dois. Afirma ainda que o significado do romance só emerge quando ele é lido, e assim, quando fala do leitor implícito, atribui a ele ou a ela um papel especial (p. 36). No caso, está se utilizando das reflexões de Foucault e de Wolfgang Iser sobre o que constitui um autor.

A ideia de um leitor implícito é complementar à existência - proposta por Ogden - de um eu-intérprete, contido no conceito de eu-dade (I-ness), como elemento fundador da subjetividade. Ler, por conseguinte, deve constituir uma experiência de criar um autor na mente do leitor, conectando cada sentença com sua experiência vivida.

Neste livro, Ogden cita o poeta Robert Frost, que aconselhava seus leitores a ler seus poemas em voz alta, de forma a se apropriar com a boca e os ouvidos das palavras que os constituíam. Ogden, ao escrever, nos convida a dialogar com ele - inclusive, a desafiar suas percepções e ideias. Neste contexto, existe uma comparação entre ler o poema e estar junto ao paciente. Como é ouvi-lo? Que tipo de experiência é estar com ele ou ser ele? Qual a forma de tocá-lo através da linguagem? Quais os instrumentos de que dispomos para recriar em nós o que é ser o paciente?

Um dos pontos centrais de seu livro é o conceito de reverie, que progressivamente incorpora e transforma a noção de contratransferência. Estar com o paciente é deixar-se invadir por um estado semelhante ao onírico - para tanto, talvez necessitemos de um neologismo: “oniroide” seria a palavra -, que se caracteriza por uma ausência de foco e por um deixar-se invadir pelas evocações que o paciente produz na mente do analista. No momento do impacto inicial, essas evocações geram uma desconstrução, uma desorganização seguida de uma nova articulação que permite a manifestação dos elos inconscientes entre afetos que interferem na constituição do significado da experiência emocional. Esses elos não são detectáveis na consciência e, assim, não são vividos como experiência viva. Antes que possa haver uma interpretação, é necessário que o analista passe por um trabalho psíquico complexo, em parte consciente, em parte não. Não basta que este se conscientize de quais sentimentos são projetados em sua mente pelo paciente, mas é também necessário que ele detecte de que maneira a vivência desses sentimentos o afetou.

A semelhança do estado “oniroide” com o trabalho do sonho é patente. Ogden (2005) sugere que

sonhar é o processo através do qual nós atribuímos um significado simbólico pessoal à nossa experiência vivida, e neste sentido nós sonhamos a nós mesmos e também as outras pessoas à nossa volta, dando-lhes existência (p. 6).

Boa parte deste livro é dedicada à linguagem, buscando encontrar nesta as características que a tornem viva para o paciente, que realmente o toquem produzindo uma experiência. Todos nós sabemos que captar o inconsciente de um paciente não é a mesma coisa que ser capaz de conversar com ele sobre aquilo que percebemos. Interpretar, para Ogden, é parte de uma conversa que expressa a vivência de uma individualidade da forma captada numa área especial da intersubjetividade.

A noção do terceiro analítico intersubjetivo é muito rica, útil, e clama por uma reflexão profunda de nossa parte pelas suas implicações. Este conceito é construído a partir de sua releitura das noções de espaço transicional (potencial) de Winnicott e da relação continente/contido proposta por Bion. Ele sugere que, no espaço transferencial, o paciente projeta parte de sua subjetividade inconsciente numa terceira área da experiência, isto é, num espaço potencial que é extraterritorial, tanto em relação ao analista quanto ao analisando. De maneira simultânea, o mesmo ocorre por parte do analista, que igualmente projeta sua experiência da subjetividade do paciente neste espaço. Este campo comum, que não é nem de um nem do outro, constitui o terceiro analítico intersubjetivo. Esta noção define um novo espaço para o discurso analítico, como pontua James Grotstein (2000).

Ainda no capítulo 4, no qual o conceito seminal do terceiro analítico intersubjetivo é tratado, Ogden enfatiza a importância da experiência de privacidade para o bom desenvolvimento de um processo analítico. Tanto o analista quanto o paciente necessitam de privacidade, e grande parte da noção do setting fica associada a este requerimento básico. O setting não é algo aleatório. É um espaço inventado por Freud para permitir o desenvolvimento de um tipo de contato humano nunca antes definido: a relação analítica.

Thomas Ogden confessa que escreveu o capítulo final dessa coleção de oito ensaios por prazer. A meu ver, porém, esta afirmação não é gratuita. Ao contrário, define a relação de nosso autor com a escrita e sugere uma postura para nós analistas. Este capítulo prenuncia o tema do último livro por ele publicado, tendo como autor principal seu filho, o crítico literário Benjamin H. Ogden; o título do livro, O ouvido do analista e os olhos do crítico (2013),1 explicita a relação entre a observação analítica e a vivência tanto na sala de análise como diante de uma obra literária. Ogden (2005) conta que nunca foi capaz de escrever um artigo psicanalítico em menos do que em algumas centenas de horas, e acrescenta que o tempo para escrever psicanálise precisa ser criado, e não simplesmente visto como algo que está lá para ser usado a fim de escrever nossos artigos. Com isto, acentua que tanto a psicanálise quanto a literatura são algo para ser vivido, experimentado, saboreado e deglutido, para depois ser metabolizado.

Acredito que o leitor sairá muito enriquecido da leitura destes ensaios.

 

Referências

Grotstein, J. S. (2000). Resenha do livro Reverie and interpretation: sensing something human, de Thomas Ogden. The International Journal of Psychoanalysis, 48,628-631.         [ Links ]

Klein, M. (1985). Sobre a saúde mental. In M. Klein, Inveja e gratidão (J. O. A. Abreu, Trad., pp. 305-312). Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Ogden, Th. H. (2005). This art of psychoanalysis. London; New York: Routledge.         [ Links ]

Ogden, B. H. & Ogden, Th. H. (2013). The analyst's ear and the critic's eye. London: Karnak.         [ Links ]

Pamuk, O. (2010). The naive and the sentimental (N. Dikbas, Trad). London: Vintage International.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Elias Mallet da Rocha Barros
Rua Tupi, 579, ap. 161
01233-001 São Paulo, SP
Tel.: 11 3662-2343
erbarro@terra.com.br

 

 

1 Este livro está sendo traduzido e será publicado pela editora Escuta, na coleção Kultur, em 2014.

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