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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.48 no.4 São Paulo set./dez. 2014

 

DIÁLOGO

 

Yolanda Gampel: psicanálise quando uma bomba cai1,2

 

 

Tradução de Sonia Maria Scala Padalino

 

 

Um percurso de aprendizagem pelo mundo

RBP Estamos aqui com Yolanda Gampel, psicanalista de origem argentina, que mora em Israel há muitos anos e que tem um percurso interessante na prática psicanalítica. Para começar, você poderia nos contar de que modo surgiram seus interesses e os temas da clínica com os quais se envolveu nos últimos anos?

YG Meu percurso teve início em Buenos Aires, com pessoas que me abriram caminhos, como José Bleger, os Grinberg e Uchoa. Além deles, no meu começo em Buenos Aires, houve o encontro e o trabalho com Janine Puget, Isidoro Berenstein, Silvia Amati. Cheguei a Israel em 1963 e comecei a trabalhar em uma clínica de crianças. Mas percebi que ali eu teria muitas experiências e pouco aprendizado, e senti que precisava continuar a aprender. Nos anos 1960, não havia em Israel o que havia em Buenos Aires: a possibilidade de estudar e aprender de infinitas formas.

Entrei em contato, então, com a Sociedade de Psicanálise de Israel para começar minha formação como analista. Segundo as condições dessa Sociedade naquela época, não bastava ter licenciatura ou mestrado; era preciso ter, pelo menos, doutorado. E como eu não tinha, pensei que seria uma oportunidade para continuar a estudar e aprender. Para isso entrei em contato com Didier Anzieu, de quem José Bleger falava muito. Assim, fui fazer o doutorado em Paris com ele.

Depois de dois ou três anos, eu voltei a Israel. E comecei minha formação na Sociedade Psicanalítica, que era muito clássica, pois seus analistas provinham de Viena ou da Alemanha e faziam uma psicanálise muito diferente da que eu aprendera na Argentina.

Continuei a estudar e a conhecer muitos profissionais, porque inúmeros analistas famosos vinham a Israel para ensinar e formar grupos. Foi assim que entrei em contato com Betty Joseph e com Hanna Segal, mantendo contato ainda com Anzieu e os franceses. Conheci Esther Bick, que passava férias lá. Ela era divina. O mês de agosto era incrível para estudos e supervisão. Ou seja, eu tive muita sorte, porque fui aprendendo com todos aqueles que chegavam.

 

Trabalhando a Shoah3

Quando comecei a fazer a formação na Sociedade de Israel, todos os meus analisandos eram filhos de pais que haviam passado pela Shoah. Percebi que as análises sempre chegavam a um impasse: ou não se podia falar sobre isso ou não havia o que dizer. E não avançávamos mais. Comecei a pensar: "Sou eu que não quero falar e não quero saber da Shoah, ou são os pacientes que não querem?"

Eu trabalhava em um serviço de psiquiatria cujo chefe, que era um sobrevivente, me disse: "Yolanda, essa senhora precisa fazer terapia. Todos os filhos dela casaram, ela esteve em Auschwitz e entrou em depressão psicótica. Não acho que podemos tratá-la apenas com medicamentos. Ela precisa conversar muito. Talvez você possa fazer alguma coisa." Eu respondi de um modo que só quem é jovem pode responder: "Mas o que eu posso fazer? Escutar sempre a repetição daquilo que ela passou?" Ele disse: "Está bem. Você vai crescer. Por enquanto, não entende nada." E me deixou de lado.

Comecei a pensar que, para lidar com aqueles impasses, era preciso conhecer a cultura interna e sociopolítica em que haviam vivido os pais desses pacientes. Mas não podia convocar esses pais para uma entrevista, pois essa não era a forma clássica de agir em nossa Sociedade.

Eu pensava em um modo de entrevistar aqueles que haviam sido crianças durante a Shoah quando vi um anúncio no jornal que convidava para um encontro as pessoas que haviam estado num orfanato em Varsóvia, depois da guerra. Havia um número de telefone, para o qual liguei. Atendeu um senhor que disse que não gostava nem de psicólogos, nem de jornalistas. Mas eu me apresentei como pesquisadora da Universidade, que queria fazer um trabalho sobre as pessoas que haviam sido crianças durante a Shoah. Ele repetiu:

Não gosto de psicólogos, nem de pesquisadores, nem de jornalistas. Por isso, você não virá a nossas reuniões. A única coisa que posso fazer por você é que, ao final das reuniões, você venha me entrevistar. Se eu achar que você é correta, posso ensinar-lhe mais coisas.

E assim tive a primeira entrevista.

Com as entrevistas, eu buscava saber de que modo essas crianças haviam enfrentado a situação de, num único dia, perder tudo: casa, pais, avós, família. E de que modo haviam sobrevivido, chegado a Israel, construído suas famílias. De onde saíra a força para fazer tudo isso? Assim, uma das perguntas que eu fiz para esse senhor foi: "Qual foi o objeto que você manteve, na fantasia ou na realidade - a que se apegou e que o ajudou a aguentar toda a guerra e a passar pelo que passou?" Ele respondeu: "Mas que raio de pergunta é essa? Você não sabe que não podíamos ter objeto nenhum, para que não descobrissem que éramos judeus, nem mesmo uma foto, nada?" Ficou irritado: "Se você faz essa pergunta, é porque não entende e nunca entenderá o que foi a Shoah." E praticamente me expulsou da casa dele. Quando eu já havia descido quatro andares, ele me chamou:

Por favor, suba. Lembrei-me de algo que estava esquecido, e por isso fiquei tão irritado. Agora me lembro, pode parecer tolo. No meu último aniversário que comemorei com minha mãe, o de 7 anos, ela me presenteou com dois caramelos. Você tem ideia do que era conseguir uma bala no gueto de Varsóvia? Você consegue entender que isso não existia para nenhuma criança? Eu os comi e guardei o papel que os envolvia. No dia seguinte, minha mãe foi presa em uma rusga policial. Conservei esses papeizinhos durante todo o tempo que passei escondido na casa de uma senhora polonesa, inclusive depois de finda a guerra.

Sua mãe fora levada no dia seguinte e ele nunca mais a vira. Ele chupou as balas, mas guardou as embalagens, que ficaram sempre em seu bolso. Quando chegou a Israel e cresceu, os papéis de bala passaram sempre de bolso em bolso. E ele os tocava o tempo todo. Nos momentos de medo e angústia, tocava-os. "Então, era como se a minha mãe estivesse ao meu lado. Tinha me esquecido deles até que você me perguntou"

Havia sido esse o objeto que lhe dera força, em minha opinião, para resistir psiquicamente. A partir disso, ele me deu a lista de todos os que haviam estado naquele orfanato. No livro que escrevi, chamei isso de "objeto tesourizado", pois não é um objeto transicional. O objeto é um tesouro que ajuda a viver.

Comecei a receber muitas ligações, porque todos queriam contar suas histórias. Então, no segundo ano de clínica na Universidade, propus duas alternativas aos estudantes: ou fazer um exame ao final do ano, sobre a matéria "Introdução ao trabalho psicoterapêutico com crianças", ou fazer duas entrevistas com aqueles que haviam sido crianças durante a Shoah. Como justificativa, acrescentei que, vivendo em Israel, não é possível ignorar, como eu havia ignorado até então, a cultura dos pais e avós de todos os nossos pacientes. Durante os quase trinta anos em que trabalhei com isso, os estudantes fizeram sempre essas entrevistas, com exceção daqueles que não se sentiam à vontade para fazê-las.

Muitos participaram, mas não tínhamos recursos, pois não interessava à Universidade financiar um projeto que não tinha finalidades estatísticas. E era preciso pagar as viagens até as casas dos entrevistados e as fitas cassete que se usavam na época. Eu mesma paguei, durante muitos anos; achei melhor assim. Não adiantava pedir ajuda que ninguém queria dar.

Depois encontrei Judith Kestenberg, em Nova York, que já fazia esse trabalho há anos, e passamos a trabalhar juntas em outros países (França, Polônia, Alemanha). Mais tarde, criei um grupo na Universidade para os estudantes que faziam essas entrevistas e eram muito afetados por esse trabalho; e também para entrevistados que, depois, precisavam de algum acompanhamento. Assim, criei um grupo de reflexão que se chamava O que acontece, agora, a nós, que éramos crianças durante a Shoah? O grupo durou dez anos; era frequentado por cerca de cinquenta a sessenta pessoas, que haviam sido entrevistadas e que convidaram, com o correr dos anos, seus filhos e netos. Era um verdadeiro acontecimento.

Comecei no Departamento de Psicologia, mas depois foi aberta a biblioteca, concentrada no antissemitismo e que buscava reunir todas as informações possíveis sobre a Shoah. A biblioteca era circundada pelos mapas dos campos de concentração, e isso foi maravilhoso, porque as pessoas encontravam neles os lugares onde haviam estado. Deixei de fazer esse trabalho quando um grupo de judeus holandeses abriu em Israel clínicas para entrevistas, tratamento e grupos de reflexão para aqueles que haviam passado pela Shoah. Então, não tinha mais sentido fazer aquele trabalho separadamente. Mas aquilo que havia começado com uma pergunta tornou-se um trabalho de mais de trinta anos, o trabalho de toda uma vida, e produziu muitas investigações, trinta teses, escritos, diálogos e jornadas.

 

Ação na Intifada4

Mais tarde, quando a Primeira Intifada começou, criamos um grupo chamado Imut, formado por pessoas que trabalhavam com saúde mental e eram contra a ocupação de Israel, e por colegas palestinos dos territórios ocupados. Entre muitas coisas que fizemos, colaboramos com a criação de uma clínica em Gaza, dedicada a tratamentos. No Departamento de Psicoterapia da Universidade de Tel Aviv, formamos onze terapeutas com três anos de psicoterapia, que incluía supervisão. Juntamente com outras quatro universidades do mundo, criamos na Universidade de Gaza um mestrado em saúde mental, oferecendo formação em psicoterapia a todas as pessoas que trabalhavam com saúde mental ali. Eu, pessoalmente, passava lá um mês e meio por ano, para dar cursos de psicopatologia com três aulas por semana. Tudo isso até o ano 2000 - porque depois do começo da Segunda Intifada não tivemos mais acesso a Gaza. Mas continuamos em conexão, por telefone e por Skype, fazendo supervisão.

Mantenho contato com dois companheiros que estão em Gaza, e um deles me diz, pouco antes de eu sair em viagem, em plena guerra5:

Quando a guerra acabar, Yolanda, nós vamos começar outro projeto, para o teu país e para o meu. Vamos fazer com que todos no mundo participem. O projeto é Como tratar o ódio de uns contra os outros, vivido pelas crianças de Gaza e de Israel, e prepará-las para o futuro.

Isso mostra que ele está muito mais otimista do que eu em relação ao que está acontecendo.

Por trabalhar durante anos com as crianças da Shoah, fui convidada por universidades da Alemanha e da Áustria para formar grupos com estudantes que faziam doutorado sobre esse assunto. Porque os arquivos haviam sido abertos e eles começavam a perguntar: "Vovô, o que você fez enquanto tudo isso acontecia na Alemanha?" E o avô respondia: "Eu não vi nada!Estava em casa." Pensei, então, que quando meus netos me perguntassem: "Vovó, o que você fez enquanto tudo isso acontecia em Gaza?", não queria responder: "Não fiz nada".

 

O trauma como núcleo radioativo

RBP Qual é a diferença entre trabalhar com os filhos da Shoah e trabalhar com a Intifada, que é do tempo presente?

YG Quando trabalho com alguém que viveu a Shoah, vejo que a pessoa tem a necessidade de contar a história que viveu. Mas é muito difícil contar o trauma pelo qual se passou, porque a pessoa nem consegue acreditar que passou por aquilo. Contar não é um trabalho sobre o passado, é uma "retraumatização". Neste momento, junto comigo, a pessoa lembra aquele outro momento. Agora, escuto o passado e nós dois, juntos, pensamos. Vivemos presente, passado e futuro ao mesmo tempo.

Na análise, o importante é estar no presente, em presença de outro, que não sei quem é e que não sabe quem sou. Em geral, quem passou pela Shoah diz: "Não quero te contar nada, porque você não sabe o que é isso" Eu não sei mesmo o que é isso. Eu aguardo. Ou seja, não tenho um programa. Vou trabalhando com o que sinto na hora. Se eu sinto horror, terror ou pena, posso perguntar: "O que é essa pena terrível que você está sentindo agora e que você me faz sentir também?". Está tudo junto, em diferentes níveis, e aproveitamos para fazer uma diferenciação, uma discriminação, para que a pessoa não fique grudada em algo que não tem cura. Porque isso nunca será curado. O máximo que podemos fazer pelos que passaram pelaShoah é estar presentes, escutar, relacionar aquelas experiências com o presente. Em minha opinião, não há cura. Só há a possibilidade de estar presente para permitir que o outro continue a crescer e a criar. Mesmo com toda a dor.

RBP A mãe da escritora Noemi Jaffe esteve em Auschwitz aos 19 anos e escreveu um diário, que sua filha retomou e publicou em livro.6 A mãe sempre usava, como tempo verbal, o presente contínuo, como se aquilo não pudesse se tornar passado ou memória. Estive há pouco em Israel e constatei o que você disse sobre o ódio recíproco que se acentua cada vez mais. Como trabalhar com isso dentro de uma perspectiva psicanalítica como a sua, que não é a psicanálise aplicada à cultura, mas sim a cultura na qual a pessoa está imersa e vive plenamente?

YG Todos os que passam por traumas terríveis na vida sentem que não podem ser entendidos porque, penso, na dor, a pessoa está sozinha. Digo isso porque tenho uma paciente, há muitos anos, que pertence ao grupo religioso ultraextremista Haredi. Eles se vestem de preto, usam chapéus, vivem separados de todos, não assistem a TV, só comem kosher - e, mesmo assim, o kosher que comem os judeus religiosos em Israel não é suficientemente kosher para eles. Eles estão dentro de Israel, mas levam uma vida completamente diferente da que se vive no país, são de uma tribo diferente. A mulher é aquela de duzentos anos atrás: é o homem que manda. Minha paciente tem sete filhos e 38 netos. Vive em uma casa de dois cômodos e é lá que ela atende os pacientes, e é para lá que, nos dias de festa, vão todos os filhos, com todos os netos. Ela é uma mulher inteligentíssima e é maltratada pelo marido.

Eu sou considerada de extrema esquerda porque estive em Gaza. Todo mundo sabe que eu realmente não entendo por que precisamos nos matar uns aos outros. Quando sequestraram os três adolescentes israelenses7, essa paciente ficou muito preocupada e veio conversar sobre isso. Na verdade, ela falou e eu me calei, pois não exponho minhas ideias e ideologias. Na sessão seguinte, aquele rapaz árabe havia sido queimado e ela chega desesperada. Ela diz que isso não se faz, não se pode vingar com sangue, é preciso fazer outra coisa. E pergunto: "O que pensam em sua tribo? O que pensam os rabinos?" Ela diz que pensam que só um psicótico podia ter feito isso. E tinham razão, pois o rapaz é psicótico. E me diz: "Isso não pode ter sido feito por um judeu, pois nenhum judeu mata assim" Fiquei perplexa e disse apenas: "Foi um judeu que matou Rabin8." "Mas isso é política" diz ela. Eu não disse nada, não disse o óbvio, ou seja, que existem perversos, psicóticos, e isso não tem nada a ver com o fato de serem judeus ou não.

Na sessão seguinte, ela chega com um medo terrível, quase terror com conotação paranoica em relação a mim. Pelo modo como passou pela soleira da porta e se sentou, parecia quase que eu ia atacá-la e matá-la. Perguntei o que estava acontecendo: "O que houve? Do que você não gostou ao entrar aqui?" E ela: "Não gostei do paciente que saiu. Ele é um grande advogado que defende os árabes. Não posso nem vê-lo" Digo que ela parece mais assustada do que isso e que o medo dela parece ir além. Ela me conta tudo o que aconteceu durante a semana, em tom persecutório. Digo que acho que ela está com muitíssimo medo de que alguém lhe faça algo:

Chego a pensar que você tem medo de que eu possa fazer algo a você. Outro dia você me disse que um judeu não podia fazer aquilo e que eu estava muito errada se achava que podia. Talvez você esteja pensando que vou te castigar por isso. Eu, o advogado e outros.

Ela começou a chorar muito e disse: "Pode ser, não sei. Mas estou com medo. É claro que tenho medo que você me faça alguma coisa". Ou seja, uma parede caiu (Puget). E reverteu-se para dentro da sessão, já está relacionado a mim, não é mais o que aconteceu do lado de fora.

O que mais me aflige é que, com pessoas extremamente religiosas (independentemente da crença), é algo sobre o qual não há possibilidade de diálogo. Há uma coisa agressiva, fechada. Isso pode ser trabalhado na sessão, mas a pessoa continua com medo, continua achando que sou de extrema esquerda e que ela precisa tomar cuidado comigo. Mas as escuto; há sofrimento. Realmente não sei o que podemos fazer. Muita gente tenta em Israel. Mas o medo, a perseguição e a propaganda usados pelo governo - tudo isso não ajuda.

RBP Quando criança, morei em Israel e muitos amigos eram filhos da Shoah; eu via as marcas de Auschwitz mãos deles. Nas escolas estudávamos a questão, mas dentro das casas reinava o silêncio. Na literatura mundial, vários autores estão resgatando essa memória, que traz o trauma de volta para que possa ser falado por um povo. Então, de um lado aparece o tempo de elaboração da Shoah e, de outro, há a atualidade, a relação de árabes e judeus. Estava em Israel quando a guerra estourou e vi, na rua, uma mulher em choque pós-traumático, depois da queda de uma bomba. Qualquer barulho fazia com que ela fugisse e se escondesse. Os traumas de guerra certamente não são "trabalháveis".

YG Para começar, não podemos dar à Shoah e ao que conhecemos como trauma o mesmo nome. Trauma é o do nascimento, são os traumas descritos por Freud. Precisaria inventar outro nome para denominar o trauma da Shoah. Senão, parece ser como qualquer outro trauma. E não é. É completamente diferente e impensável. Não são feridas curadas. São cicatrizes. Cicatrizes na alma são incuráveis. Cada vez que acontece alguma coisa, a cicatriz abre de novo. Aqueles que conseguiram apagar o número escrito no braço não resolveram nada. Porque o número está inscrito dentro deles.

Mas a Shoah não é vivida apenas por quem passou por ela, e sim também por seus filhos e netos. Criei um conceito através de uma metáfora para a violência social e política: "identificação e transmissão radioativa".

A metáfora do "núcleo radioativo" serve como representação conceitual de um processo particular: a penetração no aparelho psíquico de aspectos terríveis, violentos e destruidores da realidade externa, sem que o indivíduo tenha nenhum mecanismo de controle e de proteção contra essa penetração, seu enraizamento e seus efeitos. Esta "identificação radioativa" inclui vestígios não representáveis, resíduos de influências "radioativas" do mundo exterior enquistadas no indivíduo inconscientemente. No caso da radioatividade propriamente dita, material, a emanação afeta fisicamente o indivíduo, no momento em que ocorre o impacto e tempos depois. Do mesmo modo, a violência social afeta o indivíduo e nele provoca danos no momento em que se manifesta ou algum tempo depois. No entanto, como em certas pessoas expostas à radioatividade, os "resíduos radioativos" permanecem latentes e somente emergem como doença - física ou psíquica -, neles ou nos seus filhos, muitos anos mais tarde.

O pior, em minha opinião - já que não penso que tudo isso aconteça de modo linear -, é que acredito que a radioatividade nos converte em detentores e transmissores de modo totalmente aleatório. Porque Israel está cheio dessa radioatividade. Os países palestinos estão cheios de sofrimento. A guerra de hoje é semente para a guerra de amanhã. O ódio das crianças de hoje é semente para o ódio das crianças de amanhã. Ou seja, teríamos de ter líderes políticos que pensem de outro modo. Para resolver a questão Gaza-Israel é preciso que haja cabeças criativas, com muita coragem e que proponham coisas diferentes, é preciso reconstruir Gaza, é preciso dar o poder a essas pessoas, é preciso que muitas cabeças participem, mas não só de Israel, e sim de toda a Europa. Não vejo outros líderes, além de Angela Merkel, na Alemanha. É preciso criar algo novo. E então será possível trabalhar com a radioatividade e usá-la de outro modo para transformar em elementos de vida.

RBP Penso que o trabalho com grupos é político. Havia um comitê, na ipa, coordenado pela Janine Puget. Um dos membros era uma americana que coordenou um grupo composto por filhos de pessoas que foram para os campos e filhos de nazistas. Esse é um trabalho político: quando as pessoas podem se vincular como seres humanos, algo começa a acontecer.

YG Político, mas profissional. O que aprendi com o meu trabalho nos últimos anos é que nós não temos nenhuma influência política. Apenas profissional. Trata-se apenas de unir pessoas de modo molecular e conversar. É uma influência mínima que pode produzir outras influências. Mas, em nível político, os que trabalham com isso em Israel não têm nada a dizer. Alguém por acaso nos ouve? Quando meu colega de Gaza diz que devemos fazer alguma coisa para influenciar o governo, para diminuir, no futuro, o ódio que existe hoje nas crianças, o que ele quer dizer com isso é o que eu digo também. Mas o que dizemos entre nós não basta. Precisamos de um governo que o afirme.

 

Psicanálise expandindo limites

Há muitos analistas que falam da influência do social. Na psicanálise isso é considerado fora dos limites. Por exemplo, Judith Kestenberg apresentava, nos congressos, um painel sobre o Holocausto. Mas falar sobre o Holocausto é falar sobre o mundo externo e não sobre a subjetividade interna. Então, o painel era apresentado às quartas-feiras, quando não havia programação científica. Ou seja, fora dos limites do congresso.

Levou muitos anos para que conseguíssemos entrar na programação do congresso, pois tudo o que é social está fora dos limites e não existe. Mais tarde, com os colegas argentinos, a questão dos desaparecidos também foi colocada às quartas-feiras. Só depois de muitos anos entramos na programação oficial. E como após o 11 de setembro tornou-se moda falar da violência social, hoje somos mais aceitos. Mesmo assim, quando queremos mostrar o que acontece na clínica, nem sempre somos bem-aceitos.

Na minha Sociedade há um Fórum cujo nome foi inspirado em um artigo de Puget: Quando uma parede do consultório cai.9 Ou seja, quando acontece algo no social, acontece algo a nós e aos pacientes. Pois vivemos no mesmo contexto social. Quando um homem-bomba explode na rua, quando cai um míssil, temos os mesmos medos; estamos em completa simetria. Como abordar isso? Como levar em conta essa simetria?

Nesta guerra, pela primeira vez, não há paciente que não tenha estado em meu refúgio. No meio da sessão, toca a sirene e eu pergunto ao paciente se ele quer descer ou não. O refúgio fica dentro da minha casa e está preparado com sofás, rádio, telefone, TV. O paciente responde: "Sim. Tenho filhos e prometi a eles que, se a sirene tocasse, eu desceria ao refúgio, assim como eles" Estamos na mesma situação. A bomba não pode cair em só um de nós.

O que fazer então? Como trabalhar com todo esse material clínico? O grupo na Sociedade trabalha com esse tema, uma vez por mês - nós acabamos de nos reunir, agora, para analisar a situação. Não só as questões clínicas, mas também para pensar o que podemos fazer com relação ao ódio que surgiu em Israel. Há uma extremização dos extremos. Os que são de direita são de extrema direita até o final, e os de esquerda, de extrema esquerda. Há ódio. Ninguém escuta ninguém. Há luta dentro do país. De que modo podemos intervir nisso? Talvez possamos fazer uma reunião para discutir as diversidades, a aceitação do outro, o ódio que leva às guerras. Não é entre palestinos e israelenses; isso está acontecendo dentro de Israel. Veremos o que pode ser feito pela Universidade e pela Sociedade Psicanalítica.

RBP Nos últimos anos, a psicanálise tem pensado sobre o irrepresentável, e você nos diz que há algo irrepresentável na cultura. O alcance do que um psicanalista faz na clínica é atravessado pela dimensão cultural. Mas, se a cultura não fizer um trabalho de luto e representação do que está sendo vivido como grupo social - como a Alemanha tem feito em torno do nazismo -, fica faltando alguma coisa. Fica um lugar vazio, um buraco. Talvez seja esse buraco radioativo que não dá condições de maior simbolização.

YG Acho que é algo para ser pensado. Precisa ser um trabalho da sociedade toda. Estive na Guatemala e nos Estados Unidos, onde encontrei os maras, que são o horror dos horrores no mundo. São jovens que formam gangues e, para fazer parte delas, é preciso matar alguém. Começou nas prisões de Los Angeles e depois passou para El Salvador, Honduras e Guatemala. Para viver é preciso matar. Cada pessoa que matam está tatuada no rosto deles em forma de lágrima. Não é crueldade, não é culpa. It's nothing. É só morte. Para ter uma ideia, há alguns meses, prenderam em El Salvador os grandes chefes dos maras. O presidente do país prometeu a eles melhores condições carcerárias se fizessem alguma coisa para reduzir a crueldade dos jovens nas ruas. Matam porque você tem um reloginho, não tem a menor importância. Como foi que isso surgiu? De onde veio? O que é este câncer no mundo? Organizado, mentalizado e simbolizado por pessoas muito inteligentes.

A psicanálise tem um trabalho muito sério a fazer, pesquisas dolorosas. É preciso pensar historicamente. De que modo isso foi implantado na Guatemala? Por que no México? Por que em El Salvador? É preciso olhar a história desses países e ver o que aconteceu na América Latina para ter se convertido nisso. Isso deve ser objeto de pensamento multidisciplinar, com historiadores, antropólogos, sociólogos e psicanalistas - porque o ponto de vista psicanalítico não pode faltar. Para, pelo menos, começar a pensar de onde vem e, a partir disso, ver o que fazer. Sem dúvida é uma radioatividade.

RBP Nós estamos conscientes das limitações da psicanálise em relação às cicatrizes incuráveis. Mas temos também consciência do poder da psicanálise e da influência que ela pode exercer sobre instituições que cuidam de crianças, como hospitais, orfanatos e escolas. Gostaria que você falasse sobre o que a psicanálise pode fazer especificamente nessas instituições.

YG Concordo com você. Se todas as instituições adotassem um olhar psicanalítico não arrogante, considerando os limites do que podemos fazer, os movimentos das instituições mudariam. Dou um exemplo muito simples de como o psicanalista pode mudar alguma coisa do sofrimento de uma criança no hospital. Eu trabalhava como consultora de psicologia do Hospital Tel Hashomer. Numa ocasião, fui chamada no meio da noite por causa de uma criança que havia sido colocada no balão de oxigênio, em razão da doença que tinha. A criança não parava de chorar e eles queriam que eu, como psicanalista, a acalmasse. A criança estava só com as roupas de baixo, de peito nu, por causa dos tubos. Eu disse para cobri-la e ela parou de chorar. Ela se sentia completamente isolada e não tinha a mãe, a pele, a roupa que a acariciasse. Todos os médicos que estavam lá disseram: "Uau! Como não pensamos nisso?" Bem, eu estava acompanhada por Esther Bick e Anzieu...

Se qualquer um de nós entrasse em um orfanato, descobriria o que acontece em nível profundo à criança e saberia o que fazer para acariciá-la, do modo que for possível acariciar naquele momento. Esse seria um dos lugares para começar a trabalhar contra a violência. Porque, a partir daí, a equipe do hospital passou a fazer coisas lembrando-se disso. É uma grande mudança com muito pouco. Se os analistas trabalharem, ainda que apenas uma vez por semana numa instituição, produziremos uma mudança. Penso que o legado freudiano pode ser usado como um laboratório potencial de investigação e aprendizado, o que nos dá a oportunidade única de aprender com o paciente nos vínculos no consultório, mas também em contextos diferentes, como hospitais, orfanatos, com meninos de rua em Gaza. Usar a psicanálise não como técnica metapsicológica fechada, mas sim apreciando sua riqueza para criar, cada vez mais, algo novo. Algo que permita ao outro crescer e juntos criarmos.

 

Adoção

RBP Passando para o tema da adoção, como você vê essa questão em Israel? Você falou das famílias religiosas com muitos filhos, mas haverá também as que querem adotar.

YG Nunca estudei esse problema. Ninguém viria até mim para discutir esse assunto. Iriam falar com o religioso, com o rabino. Nós temos pouco acesso ao que ocorre dentro dos grupos de judeus ortodoxos. Por exemplo, eu quis fazer as entrevistas com pessoas que, após a Shoah, tinham permanecido judeus ortodoxos; porque muitos, depois, deixaram de ser religiosos. Tive que pedir permissão a um rabino nos Estados Unidos que tinha influência em Jerusalém. Assim, permitiram que eu fizesse dez entrevistas, mas de modo muito controlado. Quanto à questão da adoção, não me deixariam abordá-la.

Mas fizemos um congresso em Roma sobre a questão dos filhos adotados na Argentina, depois do assassinato dos pais. Roubados e adotados. Esse tema eu estudei. Nessa ocasião falei sobre as crianças judias adotadas por famílias católicas. Houve crianças judias, bonitas e inteligentes, adotadas e convertidas pelos alemães. Mas esse é outro tema.

RBP Prezada Yolanda, em nome da equipe editorial da Revista Brasileira de Psicanálise, queremos agradecer a sua valiosa entrevista, que testemunha um percurso clínico extremamente rico, assim como a coragem de penetrar e investigar os efeitos psíquicos de traumas provocados pelo ódio e pela violência social.

 

Bibliografia sugerida

Gampel, Y. (1996). The interminable uncanny. In L. Rangell & R. Moses-Hrushovski (Eds.), Psychoanalysis at the political border (pp. 85-96). Madison: International Universities Press.         [ Links ]

Gampel, Y. (2000). Reflections on the prevalence of the uncanny in social violence. In A. C. G. M. Robben & M. M. Suárez-Orozco (Eds.), Cultures under siege: collective violence and trauma in interdisciplinary perspectives (pp. 48-69). Cambridge: Cambridge University Press.         [ Links ]

Gampel, Y. (2001). Rethinking transmission: the riddle of survival. (The Prized Presentation for the Hayman Lecture. Psychoanalysis: Methods and Applications, 42nd Congress of the ipa, Nice, France)

Gampel, Y. (2003). Violence social, lien tyrannique et transmission radioactive. In A. Ciccone et al., Psychanalyse du lien tyrannique (pp. 102-125). Paris: Dunod.         [ Links ]

Gampel, Y. (2005). Ces parents qui vivent à travers moi: les enfants de guerres. Paris: Fayard.         [ Links ]

 

 

1 Yolanda Gampel é analista didata da Sociedade de Psicanálise de Israel. Formou-se em Psicologia em Buenos Aires e fez doutorado em Paris. Membro do Site Visiting Committee em Roma, Madri e Brasil. Vice-presidente da Federação Europeia de Psicanálise. Professora convidada nas universidades de Sorbonne, Lyon e outras.
2 Entrevista realizada no dia 8 de agosto de 2014, na sede da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Participaram: Alice Paes de Barros Arruda, Alicia Beatriz Dorado de Lisondo, Ana Maria Brias Silveira, Bernardo Tanis, Daniel Delouya, Gina Khafif Levinzon, Susana Muszkat e Thais Blucher.
3 Palavra hebraica para Holocausto, Shoah refere-se ao genocídio, ou assassinato em massa, de cerca de seis milhões de judeus, em um programa sistemático de extermínio étnico patrocinado pelo Terceiro Reich durante a Segunda Guerra Mundial.
4 Nome árabe do levante palestino contra a ocupação israelense, em 1987.
5 Quando se deu a entrevista, havia uma nova situação de guerra em curso entre Israel e o grupo terrorista do Hamas, em Gaza. (N.E.)
6 Jaffe, N. (2012). O que os cegos estão sonhando? São Paulo: Editora 34.
7 O sequestro e a morte dos três adolescentes judeus em junho de 2014 foi o disparador de uma nova situação de violentos conflitos.
8 Yitzhak Rabin, ex-primeiro-ministro israelense e ganhador do prêmio Nobel da Paz com Shimon Peres e Yasser Arafat, foi assassinado por um judeu radical de extrema direita por suas propostas de paz, em novembro de 1995. (N.E.)
9 Puget, J. & Wender, L. (1982). Analista y paciente en mundos superpuestos. Psicoanálisis, 4(3),502-532.

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