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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.48 no.4 São Paulo set./dez. 2014

 

ARTIGOS TEMÁTICOS: SEXUALIDADE E GÊNERO

 

A diferença entre os sexos na teorização psicanalítica: aporias e desconstruções

 

Gender dierence in psychoanalytical theory: aporiae and deconstructions

 

La diferencia entre los sexos en la teorización psicoanalítica: aporías y deconstrucciones

 

 

Thamy Ayouch

Psicanalista, psicólogo clínico, maître de conférence (professor titular) na Université Lille III, professor visitante estrangeiro no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP)

Correspondência

 

 


RESUMO

A questão da diferença entre os sexos fundamenta-se, em muitas teorias psicanalíticas, sobre uma suposta evidência anatômica. Neste artigo, trata-se de saber se o corpo testemunha tão diretamente uma atribuição de sexo, masculino ou feminino, interrogando algumas concepções analíticas da sexuação e da sexualidade. De que articulação da visibilidade dos corpos procede a diferença dos sexos, que inscrição da ordem simbólica ela permite, e como ela é designada e estabelecida pela teoria? Trata-se de interrogar o trajeto do corporal ao sexuado e do sexuado ao sexual, para examinar se a anatomia é verdadeiramente um destino. Após apontar o enquadre político, social e histórico no qual se inscreve esta questão da diferença dos sexos, pretendemos considerar as múltiplas camadas da sua abordagem pela teoria freudiana, e a proximidade, nesta categoria, entre a psicanálise e os estudos de gênero.

Palavras-chave: psicanálise; diferença entre os sexos; corpo; gênero.


ABSTRACT

The issue of gender difference is based, in many psychoanalytical theories, on supposed anatomical evidence. In this article, we wish to find out if the body actually gives testimony of gender assignment, whether masculine or feminine. The psychoanalytical concepts of sexuation and sexuality will be tackled, questioning how gender difference may stem from the visibility of bodies, what inscription of the symbolic order it allows and how it is designated and established by psychoanalytical theory. The aim is to ponder over the trajectory from the bodily to the sexuated dimension, and then to the sexual dimension, in order to examine whether anatomy really is a destiny. After exposing the political, social and historical context within which gender difference is always conceived, we shall browse through the multi-layered Freudian theory on the subject, and consider the proximity, as far as this category is concerned, between psychoanalysis and gender studies.

Keywords: psychoanalysis; gender difference; body; gender.


RESUMEN

El tema de la diferencia entre los sexos se basa, en muchas teorías psicoanalíticas, en una supuesta evidencia anatómica. En este artículo, se pretende saber si el cuerpo testimonia tan directamente una atribución de sexo, masculino o femenino, interrogando algunas concepciones analíticas de la sexuación y de la sexualidad. De qué articulación de la visibilidad de los cuerpos procede la diferencia de los sexos, qué inscripción del orden simbólico ella permite y cómo es establecida y designada por la teoría. Se trata de cuestionar el trayecto de lo corporal a lo sexuado y de lo sexuado a lo sexual, para examinar si la anatomía es verdaderamente un destino. Tras haber destacado el marco político, social e histórico en el cual se inscribe esta cuestión de la diferencia de los sexos, pretendemos considerar los múltiplos estratos de su teorización por Freud, y la proximidad, en esta categoría, entre el psicoanálisis y los estudios de género. Palabras-clave: psicoanálisis; diferencia de sexos; cuerpo; género.

Palabras clave: psicoanálisis; diferencia de sexos; cuerpo; género.


 

 

Problematização

Considerada como um operador psíquico irredutível, a diferença entre os sexos fundamenta-se, em muitas teorias psicanalíticas, sobre uma suposta evidência anatômica, um testemunho do corpo. Etimologicamente, testemunhar parece vinculado ao corpo e ao gênero, através da homonímia entre a testemunha, testis-is, e a pequena testemunha, testiculus, que evidencia o sexo masculino. Nesta etimologia, a anatomia está inscrita numa rede simbólica jurídica: podem testemunhar apenas os homens, provavelmente jurando sobre a parte anatômica, a mais preciosa.

Eis um estranho testemunho etimológico do corpo para a masculinidade, através dos testículos. No entanto, uma língua semítica, o hebraico, remete o testemunho ao outro sexo. Em hebraico, a testemunha é (ed), e o testemunho, (edot). O segundo sentido de , no dicionário Even Shoshan, remete ao pano utilizado pela mulher menstruada para absorver o sangue.1 O testemunho atesta a não gravidez, inscrevendo a feminilidade como maternidade potencial, da qual se diferencia ao mesmo tempo. Aqui, o corpo é o testemunho de uma diferença anatômica que atribui a um sexo uma potencialidade (a maternidade) e a certeza de uma transmissão: o judaísmo.

Nesta etimologia, testemunhar levanta a questão da visibilidade e da invisibilidade. A primeira letra em , (ain), designa o olho, o olhar e a fonte: ela acrescenta, aos sentidos originários de ver e consultar, o sentido de aparecer e desaparecer, na transição entre a visibilidade da fonte na superfície e a profundidade da terra. A segunda letra, (dalet), designa a porta, a abertura triangular e, portanto, o sexo e o seio da mulher. A testemunha é assim um olho que fica no limiar, na superfície do sexo, e atesta uma passagem do interior ao exterior. Além da abertura do corpo, trata-se aqui também do olhar: a testemunha é aquele/a que, abrindo os olhos, pode conhecer. Efetivamente, por (tserouf), permutação das letras, (ed) se aproxima de (yediaa), conhecimento, e (yedaa), conhecer.2 Conhecer biblicamente equivale aqui a atravessar o limiar, agir sobre esta divisão entre visível e invisível, interior e exterior, numa relação carnal.

Neste percurso de testis a (ed), através desta diferença anatômica observada pelo olhar, parece pertinente perguntar-se se o corpo é testemunha tão diretamente de uma atribuição de sexo e como isso acontece. Cabe ressaltar que esta dimensão do olhar remete a um imaginário irredutível. Como é salientado pela psicanálise, as redes do ver, do tocar ou de qualquer atestação sensível não correspondem ao imediatismo natural da percepção, mas à multiplicidade das inscrições imaginárias e simbólicas pelas quais o corpo é psiquizado e simbolizado. O sujeito só percebe o corpo próprio e o corpo do outro por meio de uma certa simbolização do seu desejo: o corpo é sempre abordado a partir da estruturação da fantasia.

Por conseguinte, levantar a questão da diferença entre os sexos, enquanto diferença anatômica observada através do testemunho do corpo, equivale a se perguntar o que o corpo atesta aqui. Isso não deixa de interrogar algumas concepções analíticas da sexuação e da sexualidade. De que articulação da visibilidade dos corpos procede a diferença entre os sexos, que inscrição da ordem simbólica ela permite, e como ela é designada e estabelecida pela teoria? Trata-se de interrogar o trajeto do corporal ao sexuado e do sexuado ao sexual, para examinar se a anatomia é verdadeiramente um destino.

 

A dimensão política da questão

Essa questão da diferença entre os sexos não deixa de se inscrever num enquadre social, cultural e político no sentido lato. Surge o problema das teorizações, ao longo da história, do masculino e do feminino nas diversas teorias psicanalíticas, e da função destas categorias na organização do pensamento psicanalítico enquanto:

a. pensamento da singularidade e da diversidade psíquica, subvertendo as evidências e denunciando a intrassubjetivação das teorias (Ayouch, 2013); a abordagem e a escuta analítica almejam abrir um espaço para a desconstrução das certezas teóricas, clínicas e naturais;

b. pensamento que, como toda teoria, se inscreve na historicidade do surgimento de suas concepções e teorizações.

Cabe perguntar, portanto, se a clínica da singularidade subjetiva isenta a psicanálise de uma reflexão sobre as implicações sociais dos seus dispositivos teóricos e práticos. O debate sobre a diferença entre os sexos é muito atual: surgiu na França, por exemplo, quando correntes da psicanálise pretenderam falar de assuntos sociais e definir o caminho certo da subjetivação. Vários psicanalistas3 gratificaram a comunidade com as suas preferências subjetivas pouco analisadas e reproduziram estereótipos revestidos com uma metapsicologia eterna. Vale questionar, porém, se a diferença entre os sexos revela o funcionamento eterno e inalterável do aparelho psicossexual humano. Em nome de uma identidade de gênero fixa, vários analistas denunciam as transformações sociais que conduzem a um declínio do poder social do pai e as consideram como faltas em relação à Lei simbólica. Por conseguinte, a categoria de diferença de sexos, nesta função de operador imutável da subjetivação, não pode ser considerada unicamente numa lógica intrapsíquica. Ela é reivindicada e articulada em discursos apresentados como psicanalíticos quando, numa sociedade, aparecem novas elaborações das possibilidades de vínculos entre sujeitos - quando surgem tentativas de repensar os laços de aliança e filiação. Assim, esta questão implica a dimensão irredutivelmente política e social da psicanálise. No entanto, como recorda Patrícia Porchat (2010) em sua entrevista com Judith Butler, não há nenhum antagonismo entre a perspectiva psicanalítica e as mudanças sociais e políticas que aparecem numa sociedade, porque, em vez de favorecer uma imutabilidade reacionária, a psicanálise pode fornecer uma crítica da normalização, da regulação social e da forma como o poder social se inscreve na psique.

Então, para tentar ver de onde procedem os discursos que, em nome da psicanálise, reivindicam a centralidade da diferença entre os sexos na formação da subjetividade, convém examinar esta noção na psicanálise freudiana.

 

A anatomia: um destino?

Comecemos por notar que a noção freudiana de sexualidade infantil, perversa polimorfa, introduz uma desbiologização inédita da sexualidade, e portanto da sexuação, já na primeira edição dos Três ensaios (Freud, 1905/1996g). O primeiro dos ensaios, "As aberrações sexuais", trata da sexualidade num registro contrário à opinião popular, que a relaciona com a reprodução: Freud desvincula a pulsão de qualquer aspecto do objeto4 (uma posição confirmada pelo texto "Pulsões e destinos da pulsão" [Freud, 1915/2004]). Esta desnaturalização da sexualidade, ao dissociá-la da reprodução, introduz uma desbiologização da sexuação. Quando o alvo da prática sexual não é o destino biológico da reprodução, a complementaridade de dois sexos da espécie se revela totalmente relativa.

Além disso, a própria definição dos sexos parece problemática: Freud sublinha muitas vezes que, embora as noções de masculino e feminino tenham um significado que parece "tão inequívoco às pessoas comuns", elas são totalmente "confusas" (1905/1996g). A psicanálise "não pode elucidar" a essência destas noções - "ela simplesmente toma os dois conceitos e faz deles a base do seu trabalho" (Freud, 1920/1996e). A diferença entre os sexos é totalmente fraca, afirma Freud; ela procede da oposição, insuficiente, entre atividade e passividade.5

É nestes termos que Freud conclui o texto "Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos":

todos os indivíduos humanos, em resultado de sua disposição bissexual e da herança cruzada, combinam em si características tanto masculinas quanto femininas, de maneira que a masculinidade e a feminilidade puras permanecem sendo construções teóricas de conteúdo incerto (Freud, 1925/1996a).

No entanto, a teoria freudiana não é unívoca no que diz respeito a este assunto. Num outro texto, Freud recusa a "exigência feminista de direitos iguais para os sexos", porque esta esquece que "a distinção morfológica está fadada a encontrar expressão em diferenças de desenvolvimento psíquico". Parafraseando Napoleão, Freud conclui que "a anatomia é o destino" (1924/1996c).

Esta tendência parece radicalizada em 1937, quando, em "Análise terminável e interminável", Freud afirma que a fonte mais potente da resistência na análise é, para os homens, a luta contra a sua atitude passiva ou feminina para com outro homem e, para as mulheres, a inveja do pênis, aspiração a possuir o órgão genital masculino. O determinismo biológico que foi contestado anteriormente é introduzido de novo aqui: "para o campo psíquico, o campo biológico desempenha realmente o papel de fundo subjacente. O repúdio da feminilidade pode ser nada mais do que um fato biológico, uma parte do grande enigma do sexo" (Freud, 1937/1996b).

Terá realmente o campo biológico a última palavra na diferença dos sexos, ou interviria este campo metafísico-biológico apenas como o índice do enigma irredutível da sexualidade?

Resolvemos nos limitar a falar aqui de sexo anatômico, definido, em Freud, pela alternativa de ter/não ter o pênis, uma diferença anatômica que desencadeia grandes consequências imaginárias. Contudo, caberia retomar a interrogação deste "campo biológico" a partir do conceito lacaniano de falo. Fica difícil, porém, desenvolver plenamente um estudo desta perspectiva num texto dedicado à diferença de sexos na obra freudiana. Apontemos apenas que a teoria lacaniana do falo visa a desfazer a concepção biológica da diferença entre os sexos, sendo o falo o significante de um desejo que não é estruturado pela diferença anatômica entre os sexos. O falo é deduzido por Lacan da doutrina freudiana de uma libido única, de essência masculina e própria a ambos os sexos (Lacan, 1966, p. 695). Nós nos limitaremos aqui, por razões evidentes de espaço, a indicar que, no texto de 1958 dedicado ao falo, "A significação do falo", Lacan coloca na base da relação entre os sexos o "semblante", isto é, uma comédia atuada por todo ser humano que busca as "manifestações ideais ou típicas dos comportamentos de cada um dos sexos" (p. 694). Entretanto, as posturas de sexuação definidas por este semblante (feminilidade mascarada, impotência masculina menos suportada do que a frigidez feminina ou homossexualidade feminina provindo de uma decepção) remetem a uma série de posturas históricas e historicizadas particulares. Sem entrarmos em detalhes, observemos também que, no Seminário XX (Lacan, 1998), as fórmulas da sexua-ção definem uma postura feminina e masculina na relação com o falo e o gozo, mas, se elas abandonam a referência a um sexo definido "naturalmente", elas invocam os grupos universais dos "homens" e das "mulheres", distinguidos de forma binária pela convocação do pai da horda primitiva. Porém, tanto estes grupos "universais" quanto o pai da horda primitiva são constituídos e reconhecidos de forma irredutivelmente historicizada, inscrita no postulado de um dualismo de gênero apresentado como inquestionável e a-histórico - lá onde se poderia pensar, além do dualismo, numa diversidade múltipla.

Cabe então remeter estas concepções psicanalíticas dos sexos e dos seus atributos a uma evolução histórica na qual Freud e Lacan não deixavam de se inscrever.

 

A diferença: produto da história

Thomas Laqueur, na sua obra Inventado o sexo: corpo e gênero dos gregos a Freud (2001), historiciza as diferenças de sexo baseadas na anatomia. Contestando a ideia de que a verdade dos corpos reside num "dimorfismo sexual", Laqueur desconstrói a oposição "por natureza" de dois corpos, corpo-homem e corpo-mulher, radicalmente contrários, diferenciados pelo aparelho biológico. A "natureza" dos corpos sexuados se inscreve sempre numa interpretação definida por uma estratégia política, historicamente localizada, por trás do entendimento das sexualidades e das sexuações.

O dimorfismo passou a ser a marca da diferença entre os sexos só muito recentemente. Da Antiguidade Clássica até o século XVIII, prevalecia um "modelo do sexo único", antes de qualquer oposição entre o corpo-homem e o corpo-mulher. Com Galeno, a medicina começou a considerar as mulheres como homens "virados para dentro": o órgão sexual feminino era visto como um pênis interno, e o padrão principal era o masculino, sendo o feminino meramente uma outra versão dele. A separação entre masculino e feminino era uma diferença de grau, e não de natureza: eles variavam essencialmente pela quantidade de "calor vital" - seres masculinos tinham mais calor, eram mais potentes e ficavam assim mais próximos da "perfeição".

Na época antiga, homens e mulheres eram separados mais quanto à divisão de tarefas e à atribuição específica de poder e de caracteres conseguintes do que quanto ao aparelho genital. Considerava-se que as atividades fora de casa, dos homens, os tornavam ativos, enquanto as mulheres, que permaneciam em casa, eram passivas. Os corpos se distinguiam por consequência da adaptação a estes papéis sociais e políticos, e não por uma especificidade ontológica prévia a estes papéis.

Foi só no século XVIII que começou a aparecer o modelo do dimorfismo, dando ênfase às diferenças anatômicas. No século XIX, prevaleceu a concepção da origem da sexualidade e das sexuações na biologia dos corpos: o modelo reprodutivo científico permitiu opor radicalmente os corpos masculino e feminino a partir de uma diferença que passou a ser considerada como originária e determinada pela natureza. Na base da divisão binária dos gêneros e das suas atribuições respectivas, havia corpos sexuados incomensuráveis, com órgãos sexuais distintos, pela primeira vez nomeados nas mulheres. Foi o contexto ideológico de redefinição das relações de poder entre gêneros, agora justificadas pela biologia, que colocou em relevo constatações que eram até então desconsideradas.

Assim como o modelo do isomorfismo, o modelo do dimorfismo aparece então como um produto cultural, dando relevo a diferenças biológicas pertinentes pela hierarquização daqueles gêneros que elas permitem manter. Foi dentro deste contexto histórico e epistêmico que a abordagem freudiana se inscreveu, perpetuando um dimorfismo consagrado pela psiquiatria do século XIX. Porém, este dimorfismo é longe de ser binário em Freud. A perspectiva de Monique Schneider (Schneider, 2000, 2004b) mostra com minúcia e erudição as nuances do texto freudiano.

 

Além do binário: diversidade dos sexos e nos sexos

Segundo Monique Schneider, a diferença dos sexos não pode ser abordada só de forma binária na teoria freudiana. Esta autora dá relevo às múltiplas passagens do texto freudiano em que homem e mulher, pênis e vagina, masculino e feminino ficam misturados. A autora enfatiza, em Freud, a constante feminilização dos órgãos masculinos e a masculinização dos órgãos femininos. Por exemplo, evocando a ereção em "Sobre o narcisismo: uma introdução", Freud escreve:

Ora, o protótipo familiar de um órgão que é dolorosamente delicado, que de alguma forma é alterado e que, contudo, não está doente no sentido comum do termo, é o órgão genital em seus estados de excitação. Nessa condição, ele fica congestionado de sangue, intumescido e umectado, sendo a sede de uma multiplicidade de sensações. (Freud, 1914/1996f)

Este órgão congestionado, blutdurchströmt, atravessado por um rio de sangue, revela uma estranha proximidade com o órgão feminino (Schneider, 2000). Por conseguinte, quando a diferença entre os sexos excede a binariedade da comparação pelo olhar, ela é ao mesmo tempo semelhança e dessemelhança.

Em muitas outras passagens da obra freudiana, aparece de novo essa feminilização do masculino. Monique Schneider aponta, por exemplo, o modo como os testículos são sempre suprimidos da descrição de Freud do órgão, de forma similar à pouca atenção que a criança presta a esta parte, segundo Freud. O escroto, pequena bolsa, procederia de uma feminilidade,6 ligada à fecundidade, tanto nas teorias sexuais infantis quanto na separação, em sociedades antigas, da paternidade e da fecundidade. A autora lembra que o plural patres se opõe aos proletarii, definidos por Alain Rey como "aqueles que dão à luz crianças" (Schneider, 2010), e assevera que não é o sexo, mas a fecundidade, que faz a diferença entre masculino e feminino.

Observemos que a diferença surge aqui dentro do mesmo sexo e opõe o poder à fecun-didade. Se Freud retoma uma "lógica da espada" e uma concepção socializada da diferença de sexos, ele, porém, questiona todo pensamento binário e introduz uma proximidade entre os sexos. Por exemplo, o sonho da "grande realização", comentado em A interpretação dos sonhos, vincula a ereção com um parto do próprio sexo:

UMA "GRANDE REALIZAÇÃO" NUM SONHO. Um homem sonhou que era uma mulher grávida deitada na cama. Achou a situação muito desagradável. [...] Por trás da cama pendia um mapa cuja extremidade inferior era mantida esticada por uma barra de madeira. Ele arrancou a barra, segurando-lhe as duas extremidades. Ela se quebrou no sentido transversal, mas dividiu-se em duas metades no sentido do comprimento. Esta ação o aliviou e, ao mesmo tempo, ajudou no parto. (Freud, 1900/1996d)

A gravidez e o parto apresentam aqui uma "sobreposição entre os marcadores do masculino e do feminino" (Schneider, 2006, p. 34), uma hibridez retomada por Ferenczi na sua concepção da ereção como parto do próprio sexo. Monique Schneider remete este sonho à fecundidade do masculino e recorda o costume da subincisão praticada pelos homens de certos povos: feminizando-se com esse corte (rachadura) realizado no pênis, os homens ficam mais fecundos.

As funções do masculino, conclui Monique Schneider, não têm valor universal: os diversos períodos históricos indicam uma alternância entre o masculino como ordem e como fecundidade. Na obra freudiana, as repartições entre masculino e feminino não se deixam reduzir a uma diferença de sexos binária, mas remetem muitas vezes a uma sobreposição, um entrelaçamento dentro do mesmo sexo, "uma vacilação nas operações destinadas a se pronunciar sobre a diferença" (Schneider, 2006, p. 34).

No seu segundo livro sobre esse assunto (Schneider, 2004b), Monique Schneider compara a imprecisão freudiana na nominação do sexo feminino, sobretudo designado como "região genital", à prescrição cultural de um dever de ignorância do feminino originário. Se Freud desenvolve em muitos textos a imagem de uma rachadura/fenda, esta caracteriza tanto a anatomia quanto o lugar da psique. A fenda é a propriedade do espaço psíquico que permite a admissão (Aufnahme) do recalcado num ritmo de abertura-fechamento, sim-não: "A topografia feminina, que apresenta esta 'rachadura estreita' que dá acesso a uma habitação interna, serve portanto de paradigma para figurar o espaço psíquico, que pode expulsar e acolher diversas manifestações imprevisíveis" (p. 99).

O corpo feminino não se reduz a uma identidade fixa de gênero: ele constitui o paradigma do psiquismo. Porém, para designar o feminino, Freud não usa este paradigma do espaço interno; ele se limita à ausência externa de visibilidade, e a sexualidade feminina é pensada só no que diz respeito às regiões liminares: clitóris e vagina. Monique Schneider identifica aqui um movimento de nojo e o aproxima do recalque que leva Freud a dessimbolizar o feminino e vincular o matricial, o interno, aquilo que é retirado do olhar, com o cloacal (Schneider, 2004a).

Ora, o que se poderia dizer da diferença de sexos binária? Observemos que esta diferença definida com respeito ao ter/não ter pênis provém de uma visibilidade, quer dizer, de um primeiro momento de captação imaginária. Além da dimensão cultural epistêmica que confere formas definidas a esta diferença, a dimensão subjetiva da percepção é sempre imaginária: a percepção do corpo próprio ou alheio não se reduz a uma soma de inervações brutas, mas se inscreve sempre sobre uma estruturação da fantasia, uma simbolização do desejo. A diferença entre os sexos definida de forma binária (ter/não ter) procede então desta captação imaginária da percepção do corpo: ela provém da "teoria sexual infantil" do menino que, comparando pelo olhar a "região genital" da menina, introduz a alternativa de ter/não ter. Aparece aqui o fascínio deste olhar que fica no limiar do corpo: é a captação imaginária do menino reparando a dessemelhança sexual. Quando a teoria retoma a proibição de conhecimento própria ao fascínio horrorizado frente ao sexo feminino, acontece um duplo movimento. A teoria reproduz, na sua conformação, uma teoria sexual infantil que apreende a diferença dos sexos apenas pelo olhar, numa dupla captação imaginária. Assim como é pelo olhar sobre esta "região genital" da menina que o menino, comparativamente, deduz a diferença sexual, é pelo olhar que a teoria reduz esta diferença à binariedade de ter/não ter. Mas é também pelo olhar que o menino atribui à menina uma identidade de gênero e é pelo mesmo olhar que a teoria reproduz esta atribuição de identidade sexuada.

 

A prescrição de gênero

Como se efetua esta atribuição de uma sexuação pelo olhar da criança e da teoria? Retomo aqui a palavra "atribuição" nos seus três sentidos para nomear esta operação. A atribuição é:

1. um ato ou afeito de atribuir;
2. a prerrogativa, o direito e a competência;
3. no plural, a jurisdição e os poderes de uma autoridade.

A sexuação do outro é sempre uma atribuição nesses três sentidos: atribui uma identidade sexuada, prerrogativa e direitos sociais, e se inscreve em jurisdições e jogos de poder particulares. A perspectiva de Judith Butler em Gender troubles (1990/2005) dá conta desta atribuição, revisita profundamente as relações entre sexo e gênero, e define outros sentidos da diferença entre os sexos. Fica evidente que a palavra "gênero" surgiu, na psicanálise, antes dos estudos de Judith Butler, já na obra de Robert Stoller (1968). Se esse autor teve o mérito de introduzir a categoria de gênero na psicanálise, ele, porém, a reduziu a uma mera construção social que se sobrepõe à camada primeira, biológica e ontológica, do sexo. A "identidade de gênero" se fundamentaria, segundo Stoller, sobre a convicção de ser masculino ou feminino, cuja congruência com a anatomia estabelece uma diferença entre o normal e o patológico. Esta perspectiva resulta na patologização de qualquer transidentidade ("transexualismo", segundo o termo instituído por Stoller), que desvincula sexo e gênero, indissociavelmente ligados nos indivíduos "normais".

No entanto, a prescrição de gênero há de ser abordada para além destas patologizações. Para Judith Butler, a oposição entre sexo e gênero não é pensada conforme o modelo simplista de um divórcio entre natureza (sexo) e cultura (papel de gênero). Este modelo não deixa de fundar a construção social do gênero sobre um substrato de identidade biológica, e, embora historicize a diferença entre os gêneros, mantém uma diferença naturalizada entre os sexos. Como o gênero, o sexo é também uma construção cultural e histórica: a anatomia não é um destino, mas uma fabricação histórica.

Para Judith Butler, não existe nenhuma natureza ontológica, não há nenhuma diferença anatômica entre os sexos que já não esteja sempre incluída numa instituição cultural do gênero, construída socialmente e definida historicamente. Ou seja, o gênero é que precede, fabrica e define o sexo. O gênero designa o aparelho de produção e instituição dos sexos: é a série de modos discursivos e culturais pelos quais "uma 'natureza sexuada' ou um 'sexo natural' é produzido e estabelecido num domínio 'pré-discursivo' que precederia a cultura, tal qual uma superfície politicamente neutra na qual a cultura interviria só posteriormente" (Butler, 1990/2005, p. 69). Assim, a identidade do gênero é que constrói os sexos e a interpretação binária da diferença entre eles, por práticas reguladoras que determinam as relações entre sexo, gênero, sexualidade e desejo.

Aqui, o corpo não indica nenhum substrato natural da diferença sexual, mas aparece só como uma construção cultural enformada, erigida e modelada por atribuições de gênero que produzem o sexo. Não se trata, porém, como indica Butler (1993/2009), de negar a materialidade do corpo, mas de abordá-lo sempre, em vez de como uma realidade prévia, como o efeito real das regulações sociais e das atribuições normativas. Falar de um corpo que precederia a linguagem, de uma natureza essencializada que precederia a instituição cultural, é uma contradição que funciona num modo performativo (cria o que nomeia) e produz as alternativas do masculino e do feminino.

O gênero, o sexo produzido pelo gênero e a diferença entre os sexos são, portanto, performativos, no sentido de Austin (1965): os discursos, atos, gestos e desejos considerados como conformes a um sexo ou a outro criam a ilusão de um núcleo interno (do sexo), e esta ilusão é mantida pela repetição constante da norma. Ser mulher ou ser homem consiste aqui em retomar gestos, atos, discursos, desejos, atitudes, e repeti-los. Mas é a imitação reiterada que cria a ideia de um modelo original - que não existe fora desta repetição, mas resulta da performatividade. Esta performatividade do gênero e a produção do sexo que ela determina não é, porém, uma escolha deliberada: é uma interpelação social. Não é um ato subjetivo isolado, mas uma reiteração coletiva, uma atribuição normativa.

Fundar a diferença entre os sexos sobre uma essencialização da natureza ou uma "rocha biológica" procede então da captação imaginária do olhar do menino e do/a teorizador/a que se mantém só no limiar do sexo feminino. Mas esta perspectiva se inscreve também numa repetição das normas de gênero, que cria originários masculino e feminino ilusórios.

 

Um ser identificado pelo outro

Esta desconstrução do gênero e do sexo não é ausente de certas abordagens psicanalíticas que procuram destrancar a diferença entre os sexos na teoria. Vários psicanalistas de origens diversas trabalharam a construção da noção de gênero na subjetivação: tal é o caso de Monique David-Menard (2009), Sabine Prokhoris (2000) ou Laurie Laufer (2014) na França, Nancy Chodorow (1994), Ken Corbett (2011) e Jessica Benjamin (1995) nos Estados Unidos, Silvia Bleichmar (2006) na Argentina, Márcia Arán (2006) ou Patrícia Porchat (2010, 2014) no Brasil. Para a maioria desses autores, é uma diferença de gêneros intersubjetiva e totalmente social que opera na atribuição da sexuação. Como assevera Jean Laplanche (1980), previamente à diferença de sexos, há uma diferença de gêneros, do masculino e do feminino, admitida pela psicanálise sem ser teorizada. Do mesmo jeito que a criança, submersa num universo adulto, recebe sem interrogar a oposição social entre masculino e feminino, a psicanálise retoma às vezes esta oposição sem questioná-la; ela a essencializa situando-a como uma distinção terminal à qual se chega (Laplanche, 1980, p. 170), mas que, no entanto, é prescrita anteriormente pelo social. Na sequência cronológica, o gênero é primeiro; o outro social precede e constitui a fantasia de um sexo biológico pela atribuição de gênero que efetua. "É uma menina!", "É um menino!", dizem os pais, a prefeitura, a família, a escola, a sinagoga, o nome, as cores da roupa e até a forma de levar a criança no colo.

Laplanche coloca em perspectiva três termos-chave:

O gênero é plural. Pode ser duplo, como masculino-feminino, mas não o é por natureza. Muitas vezes é plural, como na história das línguas e na evolução social.

O sexo é dual. Tanto pela reprodução sexuada como por sua simbolização humana, que fixa esta dualidade de maneira estereotipada em: presença/ausência, fálico/castrado.

O sexual é múltiplo, polimorfo. Descoberta fundamental de Freud que encontra seu fundamento no recalcamento, no inconsciente, no fantasma. É o objeto da psicanálise.

Proposição: O sexual é o resíduo inconsciente do recalcamento-simbolização do gênero pelo sexo. (2007, p. 153)

Os três são associados com a sedução originária, indução do sexual infantil na criança pelo adulto encarregado de lhe propiciar cuidados, marcados pelos afetos conscientes e inconscientes do/a cuidador/a. Os conteúdos de gênero provêm deste tempo originário de sedução e têm a forma de um enigma. O adulto atribui um gênero à criança, nomeando a sua pertença de gênero ("Você é uma menina/um menino") e "bombardeando-a" de mensagens prescriti-vas. Estas mensagens, todavia, são ambíguas: carregam tudo aquilo que o adulto pensa acerca das mulheres e dos homens, mas também todas as suas dúvidas, ambivalências, incertezas e conflitos inconscientes. O infante precisa simbolizar esses enigmas e encontrar um recurso para traduzir essas mensagens plurais do gênero em termos de sexo anatômico e binário. Esta simbolização, na maioria dos casos, visa a recalcar toda subjetivação plural e diversificada do gênero, mas produz assim um resto da tradução, o "sexual", que é constitutivo do inconsciente.

É esta prevalência do gênero, determinando a sexuação, que apareceu numa situação clínica com uma paciente. Já no primeiro encontro, Jeanne, uma moça de 25 anos, afirmou detestar a palavra "mulher", considerada indecente quando se lhe aplica. Ela aceitava apenas, em última instância, a palavra "moça", recusando, porém, uma série de atividades associadas a ela.

Estudante brilhante de Medicina, ela justifica a sua escolha da especialidade de trau-matologia por uma vontade de não corresponder ao que se esperaria dela. Uma mulher é mais suscetível, afirma Jeanne, de escolher a especialidade da pediatria, pelo seu "instinto maternal", e ela, ao contrário, busca "uma atividade de rapaz" na traumatologia. Os traumatologistas são descritos como "animais fortes" que não hesitam em "cortar em carne viva" [trancher dans le vif]. Eles são livres de sentimentos, porque, acrescenta Jeanne, "é sempre mais fácil cortar em carne adormecida do que falar com alguém".

Associando, ela chega a uma série de oposições: a primeira, menina/menino, se apoia, nesta prática dos traumatologistas, sobre gentil/cruel, fraca/forte, gorda/magra (uma oposição central nos seus comportamentos alimentares). Ela lembra aí a acusação de ser fraca, que lhe dirigia seu irmão, por considerá-la gentil demais. Evoca então o nascimento deste primeiro irmão, quando ela tinha 3 anos. Jeanne detestava esse bebê, que ela chama de "pedaço de carne barulhento", e ela afirma ter querido matá-lo. Quando ele estava adormecendo, ela jogava objetos no seu berço para acordá-lo. Intervenho dizendo: "Assim, você ficava 'cortando em carne viva'". Jeanne fica perplexa, antes de soltar novas associações, considerando esta proximidade entre o seu desejo de ser traumatologista e o complexo de intrusão que ela sentia com este irmão.

Cabe ressaltar aqui que a diferença entre os sexos é uma distinção que funciona dentro de uma série de outras diferenças (gorda/magra, gentil/cruel, fraca/forte), igualmente instituídas pelo outro social. A base desta diferença não é tanto a binariedade anatômica quanto o nascimento do irmão, que destrona Jeanne da centralidade da atenção parental. Não é qualquer Penisneid ou fantasia de ter sido privada de pênis que determina a sexuação de Jeanne, mas uma atribuição, por outros, de uma identificação de gênero, contestada aqui por ser vinculada à oposição ao seu irmão.

Jeanne não recusa de forma unívoca uma identificação feminina, pois ela retoma, na sua roupa, na sua maquiagem, nos brincos e colares chamativos que usa e na sua inscrição explícita "do lado das mulheres", alguns estereótipos culturais considerados femininos. Porém, ela dá a ver a multiplicidade das identificações que uma posição de gênero pode convocar: "mulher" é o destino rejeitado pela menina cuja primazia é roubada por um novo bebê menino, e que, através de um comportamento alimentar anoréxico-bulímico, quer se livrar de uma feminilização exacerbada do seu corpo. Mas "mulher" é também a imagem que ela reflete quando brinca com atributos clássicos da feminilidade no seu vestuário, ou quando se diferencia da crueldade dos irmãos por uma gentileza incansavelmente renovada. E "mulher", e pior se for "maternal", é também o destino profissional que ela recusa na sua escolha da traumatologia. Cada uma destas posturas identificatórias de gênero não é definida de uma forma solipsista, mas sempre na troca com os outros: é o nascimento de um irmão menino que completa a sua prescrição de gênero, tanto pelos pais quanto por comparação ao irmão. Diante daquilo que vivencia como perda da exclusividade dos pais, ela define a feminilidade como uma inferioridade que ela recusa. A rejeição, ainda que jamais direta, da figura de sua mãe, que renunciou à sua carreira para cuidar das crianças e se dedicar a obras sociais, a "boa educação" compulsória de menina que lhe foi imposta, a necessidade de se diferenciar da crueldade "masculina" dos seus irmãos, o papel de pediatra mulher-mãe são outras prescrições de gênero pelos outros com as quais ela lida de várias formas. Aqui, não há nada originário, nem ontológico, nem biologicamente definido nas suas escolhas identificatórias, mas consta, pelo contrário, o recurso ao mesmo mecanismo defensivo de formação reativa que ela usa muito frequentemente. É por formação reativa que ela elogia o mérito da sua mãe, afirma a prioridade do amor fraternal e justifica as suas crises de bulimia como desabafo necessário para continuar a ser amável com os outros na universidade ou na casa familiar. E assim, do mesmo modo, é por formação reativa que ela substituiu o ódio pelo primeiro irmão por uma excelência universitária, e a crueldade fantasmática na troca com aqueles que lhe atribuem uma posição de "mulher" por uma gentileza constante. As suas identificações de gênero não são nem primárias nem separadas de outras identificações, mas participam de todas as suas trocas com os outros, e retomam a multiplicidade inconsciente do gênero própria ao seu inconsciente e às mensagens enigmáticas dos outros. A simbolização de todas estas mensagens enigmáticas por Jeanne visa, como salienta Laplanche, a recalcar a pluralidade e a diversidade do gênero e ofuscá-las por uma simples recusa da palavra "mulher"; no entanto, o resto das traduções destas mensagens enigmáticas produz a multiplicidade do "sexual" nas identificações de Jeanne.

Sobre a identificação de gênero atribuída pelo outro, Laplanche escreve:

Para definir o gênero, o termo capital [...] é o de atribuição [assignation]. Atribuição designa a primazia do outro no processo. [...] A atribuição é uma série complexa de atos que se prolonga na linguagem e nos comportamentos significativos do entorno. Poderíamos falar de uma atribuição contínua ou de uma verdadeira prescrição. Esta ideia de atribuição ou de "identificação como" muda completamente o modelo da identificação. Eis aqui, a meu ver, uma forma de sair da aporia daquela fórmula tão linda de Freud que provocou tantos pensamentos e comentários: "a identificação primitiva ao pai da pré-história pessoal". [...] Não seria, antes do que "identificação a", uma "identificação por"? Em outros termos, seria um "ser identificado primitivo pelo socius da pré-história pessoal". (Laplanche, 2007, p. 167)

Muitos teorizadores da psicanálise esquecem, infelizmente, esta identificação primária, e reduzem a multiplicidade de gêneros atribuída pelo socius primitivo a uma diferença binária de sexos, definida pela lógica identitária de ter/não ter. A diferença entre os sexos age como princípio de um pensamento identitário, subordinando a sexualidade a uma sexuação imutável. Porém, na sua teorização tanto como na sua prática, a psicanálise pretende desconstruir esta lógica identitária, dando ênfase a uma lógica da psique exatamente oposta. A identidade, categoria da metafísica clássica, remete ao caráter do que permanece: designa aquilo que fica idêntico a si mesmo no tempo. Os efeitos do inconsciente quebram esta ideia de uma ipseidade oriunda da continuidade da consciência no tempo. Contra a identidade, a plasticidade psíquica, numa abordagem psicanalítica, se inscreve em movimentos identificatórios. A identificação é sempre temporária e mutável: é definida por uma situação no tempo, uma história, uma finitude e uma atribuição vinda do outro. As identificações de gênero de Jeanne não são nem unitárias, nem definitivas, nem ontologicamente primárias: elas emergem das suas relações com os outros. O sujeito se forma e se transforma sendo identificado pelo outro: apropriando-se, em momentos da sua evolução, de elementos, atributos, rasgos distintivos dos seres do seu entorno e prescritos por eles. Em termos metapsicológicos, quando se coloca a ênfase sobre a multiplicidade psíquica e as camadas de conflitos, sobre a pulsão e a dinâmica psíquica, não faz nenhum sentido falar em termos de categorias unificadas e enrijecidas de masculinidade e feminilidade e de diferença binária entre os sexos.

 

Conclusão

Freud sempre questionou a motivação do ato de conhecer. Subentendido por um princípio de prazer, ligado à curiosidade sexual ou condenado a ser apenas uma construção parcial a posteriori, o conhecimento, segundo Freud, depende do afeto. Desta crítica da motivação pulsional e do ganho narcísico que a psicanálise dirige às outras teorias, ela não está isenta.

Em outros termos, a teorização analítica está ligada ao conjunto de afetos do/a analista-teorizador/a e provém da sua fantasmatização. Ela contém, portanto, um núcleo pulsional, passional, procedendo do infantil do/a teorizador/a. Este eixo narcísico da teoria pode ser evitado somente através de uma intersubjetividade, garantida pela transferência na sessão clínica e pelo contato com as mudanças da História e com outras teorias.

O pensamento, tal como almejado por uma abordagem psicanalítica, não é um engessamento de identidades, mas um movimento além da coincidência consigo mesmo. O pensamento é vínculo, não agarramento; ele excede o simplismo ou a binariedade e abre um espaço além da identidade, na mudança perpétua das identificações. Grande parte da dimensão política da psicanálise consiste em lutar contra o simplismo do pensamento, o que implica que o discurso psicanalítico não se deixe engessar em proposições simples.

Não caberia então assumir a multiplicidade dos níveis da teoria? Sobre a divisão da diferença sexual e a sua naturalização, Freud, como muitos pós-freudianos, manifesta uma verdadeira ambivalência. Se o feminino e o masculino são relativizados, polissêmicos e desnaturalizados, eles procedem, porém, da atribuição de identidades historicizadas de homem e mulher, apresentadas como "rocha biológica".

Os significantes da sexuação não exprimem uma realidade ontológica; eles traduzem o ângulo de percepção de semelhanças e diferenças entre os sexos. Se concebemos que o sexo é produzido pelo gênero, a diferença entre os sexos revela resultar de uma perspectiva de relacionamento dos corpos, de uma abordagem particular, de uma operação interpretativa. Não se trata aqui, obviamente, de negar uma diferença anatômica e instituída socialmente em gênero-sexo: há mulheres, homens, transexuais e transgêneros. Trata-se, porém, de ver que esta diferença não opera psiquicamente de forma isolada, não é o Alfa e o Ômega da alteridade e do pensamento, mas é sempre inscrita num sistema de oposições simbolicamente, e portanto socialmente, instituídas. Ela não é a primeira, a principal ou a única diferença que estrutura a psique: se significa numa série de outras diferenças pelas quais é produzida. A tarefa da psicanálise é então permitir uma plasticidade na construção psíquica das dessemelhanças e das semelhanças, uma atividade psíquica em constante movimento, além de qualquer teoria binária engessada.

 

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Correspondência:
Thamy Ayouch
18, Avenue du Président Hoover, 59000
Lille, França
Tel: + 336 11 34 50 26
thamy.ayouch@gmail.com

Recebido em 14/01/2014
Aceito em 14.08.2014

 

 

1 Agradeço a Keren Gitai por ter me confirmado esta etimologia.
2 Agradeço a Esther e Laurent Picard a sua preciosa ajuda nesta pesquisa etimológica.
3 Aqui vamos circunscrever os exemplos ao debate vigente na França nos últimos quinze anos, no qual psicanalistas tomam posições públicas. Portanto, as referências psicanalíticas serão majoritariamente francesas. Veja-se, por exemplo, os artigos de vários psicanalistas franceses contra o Paes (união civil de parceiros do mesmo sexo, uma lei votada em 1999 na França) e mais recentemente contra o casamento igualitário: Ana-trella (1998, 1999), Balmary (2013), Flavigny (1999), Korff-Sausse (1999), Legendre (1997), Lesourd (1999), Magoudi (1997), Schneider (2002) e Winter (2000).
4 "É provável que a pulsão seja primeiro independente do seu objeto, e que não seja a atração dele que determina a aparição da pulsão" (Freud, 1905/1996g).
5 "Quando tentamos reduzi-los mais ainda, descobrimos a masculinidade desvanecendo-se em atividade e a feminilidade em passividade, e isso não nos diz o bastante" (Freud, 1920/1996e).
6 Em vários dialetos do árabe meio-oriental, o sexo feminino é designado pela palavra kis ("bolsa").

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