SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.48 issue4From adults to children: retrospective and psychoanalytic analysis of outpatient services of the population with gender dysphoria, gender identity disorder and transsexualismThe rainbow path: the lost hope author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.48 no.4 São Paulo Sep./Dec. 2014

 

ARTIGOS TEMÁTICOS: SEXUALIDADE E GÊNERO

 

A problemática da sexualidade infantil, segundo D. W. Winnicott: desfazendo mal-entendidos

 

The issue of child sexuality by D. W. Winnicott: an attempt to correct mistaken interpretations

 

La problemática de la sexualidad infantil según D. W. Winnicott: esclareciendo malentendidos

 

 

Alfredo Naffah NetoI1

Psicanalista, mestre em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), doutor em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), professor titular da PUC-SP no Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica, autor de vários livros e artigos sobre psicanálise e música

Correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo pretende explicitar a concepção de sexualidade infantil de D. W. Winnicott, desfazendo os inúmeros mal-entendidos que cercam tal noção, tentando dar consistência à ideia de que a sexualidade infantil não se forma de imediato, logo nas primeiras mamadas, como propõe Freud, mas exige um tempo de amadurecimento do bebê e de integração do seu self para que possa ganhar existência efetiva.

Palavras-chave: sexualidade infantil; pulsão de morte; elaboração imaginativa das funções corporais; memória.


ABSTRACT

This paper intends to elucidate D. W. Winnicott's conception of child sexuality, undoing numerous wrong interpretations which surround the notion, trying to support the idea that child sexuality is not formed immediately, in the first feedings, as Freud proposes, but requires a period of maturing in the child and of integration of its self in order to acquire an effective existence.

Keywords: child sexuality; death drive; imaginative elaboration of body functioning; memory.


RESUMEN

Este artículo pretende dilucidar la concepción de sexualidad infantil de D. W. Winnicott, esclareciendo los numerosos malentendidos que rodean dicha noción, intentando dar consistencia a la idea de que la sexualidad infantil no se forma de inmediato, en las primeras mamadas, como Freud propone, sino que exige un periodo de madurez del bebé y de integración de su self para que pueda obtener una existencia efectiva.

Palabras clave: sexualidad infantil; pulsión de muerte; elaboración imaginativa de las funciones corporales; memoria.


 

 

Talvez nenhuma outra problemática, dentre as propostas winnicottianas, gere tantas críticas e tantas discórdias quanto aquela que envolve a sexualidade infantil dos primeiros tempos.

Como um psicanalista ousa discordar da postulação freudiana que afirma que a sexualidade infantil forma-se de imediato, logo nas primeiras mamadas e como uma excrescência prazerosa da pura satisfação biológica, criando uma marca mnêmica que leva o bebê a alucinar o seio e a sugar o dedo, como o seu substituto, em busca do prazer (Freud, 1905/1975c, pp. 164-166)? Mais ainda: como ousa afirmar que existem laços afetivos apoiados numa afinidade de ego (ego-relatedness) distintos daqueles pautados por um relacionamento de id (id-relationship) - os primeiros sendo a matriz das relações nas quais domina um "gostar" (como as amizades), os segundos descrevendo o que se denomina "amar", no sentido pleno do termo (Winnicott, 1958/1990a, pp. 31-33)? O que o leva a desconsiderar a universalidade do conceito freudiano de sublimação e o primado da sexualidade em todas as relações humanas (Freud, 1905/1975c, pp. 218-219)?

Trata-se, aí, de uma concepção de sexualidade restrita e pré-psicanalítica, como ouvi certo colega afirmar? Não teria razão André Green, quando lança suas críticas a Winnicott, dizendo que ele não levava suficientemente em conta a sexualidade humana e que chegava, mesmo, a censurá-la (Green, 2003, pp. 81-82)?

É para tentar responder a essas críticas e desfazer esses mal-entendidos que resolvi escrever esse artigo.

Mas, para elucidar questões tão complexas, é preciso caminhar passo a passo.

 

1. O primado da experiência na constituição da psique

A primeira questão que temos de considerar é um dos pontos de partida essenciais à teoria winnicottiana: a afirmação de que a constituição da psique se faz a partir da experiência infantil, definindo experiência como "um constante trafegar na ilusão, a repetida consecução de um entrejogo [inter-play], tendo de um lado a criatividade, do outro, o que o mundo tem a oferecer" (Winnicott, 1987/1999, p. 43). Ou seja, dado o fundamento da ilusão paradoxal do bebê, de criar/encontrar o seio materno (constituição do objeto subjetivo), grande parte da experiência infantil dá-se nesse trafegar no espaço da ilusão, tendo de um lado a sua criatividade (que é primária, ou seja, existe desde o início) e de outro o meio ambiente, num entrejogo entre ambos.

Deve-se, pois, considerar, em primeiro lugar, que essa ilusão nunca é abolida de fato, nem mesmo quando a criança descobre o mundo externo e tem acesso ao princípio de realidade, já que ela será um elemento constitutivo do espaço potencial, que sempre se produz numa sobreposição entre o mundo subjetivo e o mundo objetivo, entre a ilusão e a realidade compartilhada.

Mas o início da experiência, para Winnicott, é ainda anterior ao período da criação do objeto subjetivo; ele se dá ainda dentro do útero materno, quando o bebê, em formação, advém de um estado de não ser para um estado de ser (Winnicott, 1988, pp. 131-134). A partir daí, desenvolve-se ao longo de toda a existência humana, até a morte.

Esse é um dos fundamentos que leva Winnicott a rejeitar a noção de pulsão de morte freudiana. Alegando que o bebê não advém de um estado inorgânico, mas de componentes orgânicos (um espermatozoide e um óvulo), e que a sua experiência mais pregressa, mais regredida, é a de advir de um estado de não ser para um estado de ser, ele advoga que não cabe dentro da experiência infantil qualquer impulso que tenha como meta um estado inorgânico - já que este suposto "estado inorgânico" é totalmente exterior à experiência humana, a não ser como um puro conhecimento intelectual do mundo natural, e que advém bem depois desse início de vida (p. 133).

Com base nisso, Winnicott afirma que o desejo de morrer, em qualquer ser humano, sempre encobre, na verdade, o desejo de regredir a esse estado de não ser, primevo, e, a partir dele, renascer (p. 132). Poderíamos acrescentar: isso não significa que, biologicamente, não possamos falar de um impulso em direção à morte (que na física, aliás, se confunde com a noção de entropia). Mas um princípio biológico não implica diretamente experiência psíquica, pois - para Winnicott -, para que todos os processos biológicos possam constituir um sentido psíquico, eles necessitam ser elaborados imaginativamente, e esse é um dos postulados mais importantes do seu pensamento.2

Esses argumentos levam à conclusão de que a morte somente pode adquirir sentido - na experiência humana - na hora em que se morre. Poder-se-ia rebatê-los alegando que existem as experiências de morte dos entes queridos - incluindo o luto indispensável - e que isso já daria um sentido humano para o ato de morrer. Entretanto, podemos pensar que o sentido que a nossa elaboração imaginativa consegue extrair dessas mortes, efetivamente sentidas e sofridas, é somente o de um mistério, um enigma. O que acontece de fato quando se morre? Quando se fala num desejo de morrer, talvez possamos concluir que desejar um acontecimento que existe para nós apenas como um enigma somente deve sua razão de ser às fantasias que projetamos nele.3 Para Winnicott, o sentido oculto dessas fantasias é o de regredir e renascer.

É evidente, entretanto, que esses argumentos de Winnicott não rebatem, em nenhuma instância, aqueles da postulação freudiana da pulsão de morte, já que se desenvolvem em bases teóricas diversas, que não são as freudianas. Ou seja, Freud não pensa, em momento nenhum, que a pulsão de morte tenha de ter algum lugar na experiência infantil para ter a sua justificativa como conceito metapsicológico. Muito pelo contrário, ele a deduz da compulsão à repetição - presente, principalmente, nas neuroses e nos sonhos traumáticos (Freud, 1920/1975a, pp. 31-32) -, como um processo mais básico do que o princípio do prazer. Ou seja, ela é postulada como agindo na dinâmica psíquica, independentemente de qualquer experiência humana, qualquer que seja o seu caráter. Além disso, no mesmo texto em que formula tal conceito, Freud se estende pelo reino da biologia, da proliferação, reprodução e morte das células do corpo humano, para referendar, nesse domínio puramente biológico, as justificativas das noções de pulsão de vida e de pulsão de morte (Freud, 1920/1975a, caps. v e vi), o que nos informa que, para ele, essas noções são postuladas como impulsos da natureza, presentes tanto no domínio biológico quanto no psíquico, sem que haja nenhuma distinção considerável entre esses dois domínios - pelo menos, no nível da ação da pulsão de morte.

Ora, Winnicott trabalhava num solo conceitual bastante diverso. Conforme já mostrei em outros artigos (Naffah Neto, 2007a, 2012), para ele, somente possui realidade psíquica aquilo que passa pela experiência infantil, o que quer dizer, pelo processo de elaboração imaginativa das funções corporais. Isso funda, sem dúvida, uma distinção muito clara - se não um abismo - entre o domínio biológico e o psíquico. Além disso, conforme já evidenciei em outro artigo, Winnicott tende a ver as compulsões à repetição - na linhagem do último Ferenczi4 - como tentativas de produção de uma regressão a estágios de dependência com

a função saudável de criar uma segunda, terceira, enésima chance de reviver o trauma em condições ambientais mais propícias, a fim de fazer passar, pela área da experiência, acontecimentos que não puderam atingi-la, devido à cisão produzida como defesa contra falhas ambientais. (Naffah Neto, 2007a, p. 237)

Outra consideração importante a ser lembrada aqui é que se a experiência infantil efetivamente começa ainda dentro do útero materno (Winnicott, 1988, pp. 131-134), isso significa que grande parte dela dá-se num nível inconsciente, não de um inconsciente recalcado, mas de um inconsciente incapaz de atingir um limiar de consciência, já que esta somente se constitui, enquanto tal, muito mais tarde.5 Não se pode, pois, confundir - em nenhuma instancia - experiencia com consciência.6

Feitas essas considerações, a conclusão a que se chega, de imediato, é a de que a sexualidade infantil somente poderá se constituir, psiquicamente, por meio da experiência da criança, e assim seguirá, passo a passo, o tempo e as circunstancias necessários à sua elaboração.

 

2. O recém-nascido: uma identidade evanescente, sem articulações espaçotemporais

Outro ponto de partida da teoria winnicottiana é que o recém-nascido possui uma identidade totalmente evanescente, sem qualquer permanência e articulação no espaço e no tempo. Podemos, com um pouco de imaginação, tentar descrever essa condição.

Vivendo fundido ao meio ambiente, sem qualquer distinção entre sujeito e objeto, a identidade evanescente do bebê é garantida pelo holding e pelo handling maternos; assim, naqueles estados que Winnicott denominou como relaxados, na ausência de qualquer impulso instintivo,7 o bebê vem a assumir, por vezes, o formato do colo da mãe, quando ela o nina, por exemplo, ou a se descobrir na imagem que ela lhe devolve, em espelho, quando o fita, ao trocar as suas fraldas ou festejar a sua presença, com jogos e mimos. Nos estados excitados, quando é atravessado pelos instintos, ele também assume a forma do objeto alvo; quando mama, por exemplo, transforma-se, ao longo do processo alimentar, em boca faminta, em seio e em leite. Vigora, pois, tanto nos estados relaxados quanto nos excitados, o que Winnicott denominou identificação primária, na qual o bebê está totalmente identificado ao outro, seja à mãe-ambiente, nos estados relaxados, seja à mãe-objeto, nos estados excitados.

A alternância contínua entre estados excitados e relaxados, mais a presença dos instintos nos primeiros e sua ausência nos segundos criarão, gradativamente, para o bebê, uma espécie de distinção entre os dois estados, já que, na excitação, é atravessado por uma urgência em busca de um objeto desconhecido que (com a formação da memória) logo virá a ser reconhecido (Winnicott, 1964, p. 90), enquanto no relaxamento não está atravessado por nada, mas "derramado" no ambiente, numa espécie de vivência oceânica.

Também criarão uma distinção entre as duas mães. Isso porque quando o bebê se sacia inteiramente na mamada - tendo uma mãe suficientemente boa, que lhe permite explorar o seio para além do tempo da alimentação fisiológica (aquele necessário à elaboração imaginativa da função alimentar) e entrar num estado de relaxamento -, desaparece da experiência infantil a mãe-objeto (o seio, vorazmente sugado) e entra em cena outra mãe, a mãe-ambiente (que troca as fraldas, nina, acalenta etc.), que o bebê não associa à primeira, visto que - além de ele ainda não ter condições de reconhecer o objeto total, mas apenas recortes deste, devido à sua imaturidade - todo o seu universo é tecido de instantes descontínuos no espaço e no tempo.

Assim, o que marcará alguma diferença, nesses primeiros tempos, será a presença e ausência dos instintos nos dois estados, o que levará o bebê a viver em dois universos distintos e a experimentar duas mães, também distintas, ainda sem condições de serem integrados no fluxo da experiência temporal.

Nesse contexto, a sexualidade infantil formar-se-á primeiramente como oralidade. Por meio da repetição intercalada entre os estados excitados e os estados relaxados, o bebê gradativamente passa a poder prever a vinda do seio e a aluciná-lo, para antecipá-lo e não depender inteiramente da qualidade de resposta do meio ambiente (muito embora a alucinação do seio somente possa substituir o seio real por um curto espaço de tempo, após o qual, sem a presença do seio real, o bebê pode entrar em sofrimento). Então, a elaboração imaginativa das funções corporais começa a dar um sentido psíquico às sensações fisiológicas geradas pela mamada (e que são prenunciadas pela presença do instinto), e o bebê vem a distinguir, pouco a pouco, sensações de pura saciedade fisiológica de sensações de prazer.8 É somente a partir desse sentido dado às funções corporais pela elaboração imaginativa que as experiências do bebê podem começar a ser armazenadas como memória, vindo a formar progressivamente uma história de vida.9

A partir daí, pode-se dizer que, sempre que o instinto entra em ação, ou a qualquer aumento da excitação corporal, esse processo aciona a memória do seio e o bebê o alucina, levando o dedo à boca. Essa memória pode ser evocada devido ao estado de integração momentâneo promovido pelo instinto, que, quando surge, atravessa todo o corpo e toda a psique (ainda incipiente e em formação), articulando-os como uma totalidade. É esse estado fugaz de integração - que reúne, ainda que por curtos períodos, corpo e psique - que permite evocar a memória do seio com a entrada em cena do instinto ou da excitação corporal. Entretanto, assim que a tensão desaparece e o bebê entra em estado de relaxamento, misturando-se novamente ao ambiente, a memória se desvanece inteiramente, não podendo mais evocar qualquer imagem ou lembrança, já que o corpo (que produz a experiência de excitação) e a psique (que guarda a memória do seio) se desassociam, retornando a um estado de não integração. Mas convém precisar melhor esse processo.

Comecemos dizendo que, para Winnicott, a vida sensorial do corpo, tendo no início um estatuto puramente fisiológico, necessita, para adquirir um sentido psíquico, passar pelo processo de elaboração imaginativa (assim, a experiência das primeiras mamadas, para criar uma imagem de seio capaz de ser memorizada como "aquilo que sacia a fome", necessita desse processo). Entretanto, muito embora os sentidos psíquicos10 das funções corporais estejam sendo produzidos pela elaboração imaginativa a cada vez que alguma delas entra em ação, na experiência do recém-nascido essa produção se dá sob a forma de momentos descontínuos. Para que uma memória se produza e esses sentidos ganhem consistência temporal - passível de evocação, a partir da experiência armazenada -, é necessário que o bebê ultrapasse esse tipo de temporalidade evanescente, criada pelas necessidades instintivas e de caráter puramente pontual. Enquanto ele vigora, é tão somente nos momentos das integrações pontuais entre corpo e psique, produzidas pela emergência do instinto, que uma imagem pode ser evocada como associada a ele. Ou seja, devido ao estado de não integração do bebê no espaço e no tempo, nem sempre ele pode dispor de suas experiências armazenadas de forma mais livre, independentemente da emergência instintual; isso perdura até que a psique venha a se alocar no corpo permanentemente (integração espacial, dada pelo processo de personalização')11 e o bebê conquiste uma temporalidade efetiva (integração temporal, por meio da qual a sucessão de momentos descontínuos forma um presente contínuo, passível de se desdobrar num passado - uma história de vida - e num futuro projetável).12

É por essa razão que a sexualidade infantil somente estará constituída, com algum nível de consistência e de permanência, após o processo de integração do self, quando a criança pode experimentar e usufruir das sensações eróticas num continuum de tempo não fragmentado, e com uma articulação funcional entre corpo e psique, capaz de evocar a memória das sensações de prazer (sem mais depender das integrações fugazes, criadas pela presença do instinto).

Nesse sentido, é possível conjeturar que Freud podia pensar na sexualidade como se formando de imediato, logo nas primeiras mamadas, porque não chegou a considerar a imaturidade do bebê recém-nascido (e o seu estado de não integração espaçotemporal), não tendo desenvolvido uma teoria do amadurecimento infantil, como Winnicott. Então, tudo podia ser descrito como acontecendo de um modo mais direto e imediato: bastava a criação de uma marca mnêmica do seio como lembrança evocativa do prazer - e Freud chegou a tentar criar bases neurológicas a fim de fundamentar esse processo (Freud, 1950[1895]/1975b) - e o bebê passaria a sugar o dedo na sua ausência: estavam, assim, lançados os fundamentos da sexualidade. Mais adiante, com a segunda teoria tópica, a noção de id veio dar um estatuto mais constitucional à sexualidade - com Freud espraiando-se largamente no apelo à filogênese (Freud, 1923/1975d).

Winnicott sempre teve uma posição mais empirista com relação a essas questões: nunca admitiu a existência de protofantasias (nem tampouco de phantasias, no início da vida, como traduções diretas do instinto, como Melanie Klein) e, quando se referia ao id, sempre dizia que ele é exterior à experiência do recém-nascido, somente vindo a se tornar interior a partir da apropriação dos instintos, realizada pela elaboração imaginativa das funções corporais. Assim, ele nos diz:

As forças do id clamam por atenção. No início, elas são externas ao infante. Na saúde, o id é reunido a serviço do ego e o ego assenhoreia-se do id, de tal forma que as satisfações do id se tornam fortalecedoras do ego. Isso, entretanto, é uma conquista do desenvolvimento saudável e, na infância, existem muitas variações que dependem do fracasso relativo dessa conquista. [...] Na psicose infantil (ou esquizofrenia), o id permanece relativa ou totalmente "externo" ao ego, e as satisfações do id permanecem físicas, e têm o efeito de ameaçar a estrutura do ego, isto é, até que defesas de qualidade psicótica sejam organizadas. (Winnicott, 1960/1990b, p. 40)

Nos primeiros tempos, as experiências de cunho sexual se constituem lentamente. Embora não se possa dizer que a experiência de alucinar o seio e sugar o dedo seja isenta de prazer, Winnicott pensava que, no início da vida, essa característica autoerótica é secundária, já que o que está em questão é a posse e o controle do objeto. Eu o cito:

Esses fenômenos (de sucção) somente podem ser explicados assumindo que o ato é uma tentativa de localizar o objeto (seio etc.) e mantê-lo a meia distância entre o dentro e o fora. Isso é uma defesa contra a perda do objeto ou no mundo externo ou no interior do corpo, quer dizer, contra a perda de controle sobre o objeto.
Eu não tenho dúvidas de que a sucção normal do polegar tenha essa função também.
O elemento autoerótico [aí] não é sempre de importância soberana... (Winnicott, 1958/1992b, p. 156)

Ou seja, Winnicott pensa que, para um bebê nos primórdios da vida, é mais importante uma sensação de controle do objeto - indispensável à sua sobrevivência - do que qualquer experiência de prazer. Entretanto, é inegável que a experiência autoerótica está presente desde os primórdios e é elaborada, imaginativamente falando, vindo a ganhar cada vez mais importância à medida que a segurança e a confiança do bebê no seu entorno aumentam e as questões de sobrevivência tornam-se asseguradas.

Mas o tempo passa e, com cerca de 12 meses, o bebê já possui uma boa integração do self, surgindo a fase do "Eu sou". Isso significa dizer que, por essa época, a sexualidade infantil já se encontra razoavelmente constituída, faltando ainda, porém, uma maior fusão dos impulsos agressivos/destrutivos com os impulsos eróticos.13

Essa fusão somente advirá com a experiência repetida, inúmeras vezes, do ciclo benigno, característico do estágio do concern, que se desenrola entre cerca de 8 meses e 2 anos e meio. Por essa ocasião, a mãe-ambiente e a mãe-objeto já se integraram, para o bebê, numa única mãe, que ele já reconhece como um ser semelhante. Aí, surge a fantasia de destruir o corpo materno devido ao sadismo oral (já constituído), seguida de sentimento de culpa (geralmente inconsciente) e de desejo de reparação do que foi destruído (na fantasia), processo esse que, quando devidamente recebido e sustentado pela mãe, constitui o ciclo benigno. A partir da repetição dessa experiência ao longo do tempo, a criança começa a não temer tanto os seus impulsos agressivos/destrutivos, podendo vir a se apropriar deles, pois sente que, o que destrói, ela consegue reparar. Como consequência dessa apropriação, eles vêm se fundir aos impulsos eróticos já apropriados, criando condições para a sustentação infantil da ambivalência afetiva, característica do complexo de Édipo. Assim, é forçoso admitir que é somente por volta dos 2 anos e meio que a criança possui uma sexualidade infantil solidamente constituída, capacitando-a a enfrentar, sem grandes problemas, a experiência e elaboração do complexo de Édipo.14

Entretanto, a partir daí o desenvolvimento sexual se processa tal qual Freud o descreveu, descrição que Winnicott retoma, ainda que com um colorido próprio (Winnicott, 1988, parte II). Aparecem na sua descrição: a sexualidade oral, a anal e a fálica, a inveja do pênis na menina (e a evolução desse processo até a descoberta da vagina), o complexo de castração e a passagem da fase fálica para a genital; e, com a elaboração do complexo de Édipo, a formação do superego (Winnicott, 1960/1992a). Portanto, penso que a afirmação de que Winnicott não levava devidamente em conta a sexualidade infantil é parcial e advém, a meu ver, de uma leitura insuficiente da sua obra.

Cumpre ainda salientar que, para Winnicott, a sexualidade infantil somente será uma sexualidade verdadeira se constituída a partir da experiência própria do bebê, ou seja, de dentro para fora, partindo da experiência subjetiva da criação do seio rumo ao processo de personalização e temporalização, cabendo à mãe oferecer o seio no momento oportuno e sustentar toda a experiência ao longo do tempo. Quando isso não acontece - e a sexualidade forma-se de fora para dentro, por imposições e invasões ambientais -, pode constituir-se o que eu denomino sexualidade falsa, como parte de um falso self patológico, cindido do restante da personalidade e formado por mimetizações ambientais.

Essa noção de sexualidade falsa não chega a ser formulada explicitamente por Winnicott, mas é uma dedução necessária, a meu ver, da noção de falso self cindido. O que ele afirma, de fato, é que quando o self verdadeiro é isolado do contato ambiental por um falso self patológico, a experiência cessa completamente. Ora, a experiência cessando, não se pode formar nenhuma sexualidade verdadeira, já que cessa também a elaboração imaginativa das funções corporais, capaz de produzir, gradativamente, a transformação de impulsos de cunho biológico em experiências pessoais. No entanto, pode formar-se outro tipo de "sexualidade", a partir da mimetização de traços ambientais pelo falso self, criando um padrão falso, com finalidades mais primárias do que a busca de prazer.

A sexualidade falsa cria uma impressão errônea de desfrute erótico - para o observador externo - e está presente na maior parte dos pacientes de tipo borderline, servindo geralmente a fins mais primitivos do que os ligados à busca de prazer. Lembro-me, aqui, de um paciente meu que, durante certas crises de angústia, necessitava copular com várias prostitutas, dizendo-me que essa era uma forma de "não se sentir dissolvendo no nada". Ou seja, essa suposta "sexualidade" servia para criar uma integração psicossomática mínima, capaz de afastar o terror de aniquilamento.15 Esse é um exemplo típico de falsa sexualidade de patologia borderline.

Com relação a essa questão, André Green analisou uma paciente borderline que fora anteriormente analisada por Winnicott,16 e a partir dessa experiência acusa o psicanalista inglês de não levar devidamente em conta os aspectos sexuais do caso (Green, 2003, pp. 81-82). Green refere-se ao traço que denominava analidade primária da paciente - analidade esta que ele considerava como tendo uma constituição erótica, pela fixação da libido no narcisismo anal - e que produz uma forma de constipação intestinal crônica, na qual o bolo fecal retido funciona como uma espécie de eixo da personalidade, expressando-se psiquicamente por obstinação, paralisia psíquica e incapacidade de tomar decisões.17 Figueiredo e Ulhoa Cintra assim se expressam sobre essa patologia psicossomática:

O resultado da obstinação como forma de ligação opositiva, de amor-ódio conjugados, é justamente a constituição de uma prótese - a coluna fecal - que procura substituir as estruturas mal-formadas ou inexistentes. A ambivalência e a paralisia em que ela redunda são, assim, a própria "espinha dorsal" desses indivíduos. (2004, pp. 43-44)

Ora, esse tipo de analidade poderia, a meu ver, ser claramente classificado como falsamente sexual. Isso na medida em que serve a fins mais primitivos do que a busca do prazer, é mais uma defesa de sobrevivência - manter uma espinha dorsal psíquica, ainda que precária - do que a busca e manutenção de um prazer erótico. Além disso, ele se forma como uma defesa primitiva, provocando um retraimento esquizoide, o que - na concepção winnicottiana - implica a proteção do self verdadeiro por um falso self cindido, conforme já demonstrei em outro artigo (Naffah Neto, 2007b). Ou seja, um tipo de dinâmica psíquica em que a experiência cessa, impedindo a constituição de qualquer sexualidade verdadeira.

Mas Green insiste na sexualidade da paciente em questão, contando-nos um sonho relatado por ela, no qual Elizabeth Taylor dançava com a sua mãe. E assim o interpreta: "Na verdade, o sonho com Elizabeth Taylor representa uma relação homossexual com a sua mãe. Suponho que Elizabeth Taylor representava a menina de 15 anos voltando para casa, com a expectativa de seduzir a mãe" (2003, p. 81).

Ora, essa interpretação parece-me forçada e não convincente, especialmente na medida em que Green não descreve as associações livres da paciente nem como chegou a essa formulação. Assim, outras interpretações do sonho são possíveis: a imagem onírica de Elizabeth Taylor dançando com a mãe da paciente, tal qual descrita por ela, pode simplesmente significar uma cisão da figura materna em duas imagens: uma idealizada, glamorosa, tal como os outros a percebiam, dizendo: "Sua mãe é tão maravilhosa" (Winnicott, 1971, p. 24), e outra real, empobrecida, a mãe mentirosa (assim como a paciente realmente a experimentara, em função de a mãe ter-lhe mentido em certa ocasião). Winnicott referendaria, possivelmente, tal interpretação, por considerar que o mecanismo de introjeção da figura materna tem, muitas vezes, a função defensiva de produzir introjetivamente uma mãe idealizada, para fazer frente à mãe real, deficiente (Winnicott, 1988, pp. 75-77). Nesse sentido, Elizabeth Taylor não pode, simplesmente, representar a mãe introjetada, idealizada, frente à mãe real, deficiente (mentirosa)? E a dança, a coexistência das duas mães como objetos cindidos, mas que coexistem na dança da vida?

No entanto, é evidente que Green, considerando a sexualidade, tal qual Freud a postulava, como uma espécie de substância primordial da qual toda a vida se tece, tendia a buscá-la em qualquer material onírico, fosse ele qual fosse. Não levando em conta as distinções winnicottianas entre o verdadeiro e o falso, nunca poderia chegar a esse tipo de consideração sobre verdadeira e falsa sexualidade.18

Concluindo, podemos afirmar que é a presença do instinto infantil nos estados excitados e a elaboração do prazer advindo da sua satisfação que constituirão, paulatinamente, a sexualidade infantil. Por isso Winnicott nunca propõe - assim como alguns psicanalistas franceses pós-lacanianos como Serge Leclaire (1968/1977, cap. 3) - que a sexualidade advenha por meio de uma erotização materna do corpo infantil. Assim se expressa Serge Leclaire:

Imaginemos antes a doçura do dedo de uma mãe a brincar "inocentemente", como nos instantes do amor, com aquela covinha original do lado do pescoço e o rosto do bebê a se iluminar com um sorriso. Podemos dizer que o dedo, com sua carícia amorosa, vem imprimir nessa cova uma marca, abrir uma cratera de gozo, inscrever uma letra que parece fixar a intangível instantaneidade da iluminação. No oco da covinha abre-se uma zona erógena, fixa-se um intervalo que nada pode apagar, mas sobre o qual se realizará de maneira eletiva o jogo do prazer, sempre que um objeto qualquer venha reavivar nesse lugar o brilho do sorriso que a letra fixou. (1968/1977, p. 60)

É obvio, e ninguém poderia negar, que uma mãe, quando troca as fraldas de seu bebê, produz algum tipo de carinho ou de carícia no corpo infantil e podemos até afirmar que é desejável que assim seja. No entanto, se prevalecer o estado de preocupação materna primária - descrito por Winnicott -, temos de considerar que essas carícias nunca serão invasivas, nunca atingirão um limiar capaz de levar o bebê a descobrir a existência da alteridade (o desejo sexual de outrem) num momento em que ainda não tem condições para tal. Ou seja, elas serão suficientemente boas, caso em que poderão ser incorporadas pela área de onipotência do bebê sob a forma de cuidados, como todo o restante do manuseio. Nessa direção, elas poderão produzir, no bebê, uma experiência de se sentir amado, cuidado, e não uma "cratera de gozo", como propõe Leclaire.

Temos, porém, de considerar que o solo psicanalítico de Leclaire é outro; como um pós-lacaniano, ele parte das pulsões postuladas por Freud e, assim, procura descrever como o manuseio materno é capaz de despertar as pulsões de vida, dando origem à sexualidade infantil (de uma forma bastante convergente, aliás, com o pensamento de Green, outro pós-lacaniano). Entretanto, no âmbito da teoria winnicottiana, de duas uma: ou temos de pensar que esse manuseio é suficientemente bom, de forma a não interromper a continuidade de ser do bebê pela revelação prematura da existência de uma alteridade, ou que ele tem um efeito traumático.19 E traumático, para Winnicott - se estamos falando do estágio de dependência absoluta ou relativa -, significa, necessariamente, gerador de patologias.

 

3. Relacionamentos de afinidade de ego (ego-relatedness)

Winnicott postulou, num texto de 1958 (Winnicott, 1958/1990a, pp. 34-35), que existem diferentes tipos de prazer, chegando a um conceito de êxtase ou de orgasmo egoico que não tem nada a ver nem com instinto nem com sexualidade.

Nessa mesma linha de raciocínio, considerou que o tipo de relacionamento do bebê com a mãe-ambiente, nos estados relaxados, é um relacionamento de afinidade de egos, distinto de um relacionamento pautado no id, isto é, na satisfação instintual; por essa razão, ele é postulado como não sexual. É importante, contudo, salientar que essa consideração está pautada na diferença criada pela presença do instinto infantil nos estados excitados e na sua ausência nos estados relaxados, bem como na condição de não integração existente entre os dois estados e entre as duas mães na experiência do bebê (até ocorrer a integração do self). Corrobora isso tudo aquilo que salientei nos parágrafos anteriores, ou seja, que o papel da sexualidade do adulto na "erotização" do bebê, nos casos suficientemente bons, não atinge um limiar capaz de imprimir a esses estados relaxados uma marca distintiva, salvo nos casos patológicos. Concluindo: é a ausência do instinto infantil nos estados relaxados que lhes dá a marca distintiva do não sexual. O que significa que, para Winnicott, sexualidade está sempre relacionada à satisfação instintual. Isso também significa que, nos casos em que a criança se torna objeto da satisfação instintual do adulto, haverá sexualidade sendo criada, mas de cunho patológico.20

O estado de afinidade de egos gera um tipo de afeição distinta do desejo sexual, presente nas amizades, e, como salienta Winnicott, sem que tenhamos de negar a existência ou a importância dos processos de sublimação descritos por Freud (p. 35). Ou seja, podem existir relações sublimadas que eram originalmente de tipo erótico21, mas isso não quer dizer que todas as relações de afinidade de egos sejam produto de sublimação.22

Também a constituição da terceira área, do espaço potencial, tem como matriz principal esse tipo de relação característica dos estados relaxados do bebê, já que o advento dos objetos transicionais e a aquisição da capacidade de brincar pressupõem uma criança capaz de ficar sozinha, inicialmente na presença do adulto e depois - a partir da incorporação dos cuidados maternos e da constituição da mãe como bom objeto interno - sem a presença de ninguém (pp. 31-32). Isso significa que o brincar, para Winnicott, guarda uma maior proximidade com as relações de afinidade de ego, de clímax e de orgasmo egoicos do que com qualquer experiência instintiva. Isso porque - Winnicott argumenta - o brincar envolve uma dimensão simbólica na qual o desfrute psíquico é grande, e o físico-corporal, menor (p. 35). E mesmo no caso das brincadeiras sexuais - nas quais o brincar e a sexualidade se juntam -, podemos dizer que, se a psique não povoar o jogo com criações imaginativas, cujo desfrute informe e sustente o desejo sexual, o relacionamento erótico será pobre e restrito.

Ou seja, é a capacidade de brincar que sustenta a sexualidade, e não o contrário. Nesse sentido, sem dúvida nenhuma, Winnicott inverte o pensamento psicanalítico corrente (para o qual é a sexualidade sublimada que possibilita o brincar). Mas não foi, justamente, por essa liberdade de pensamento que ele conseguiu criar a sua marca distintiva na psicanálise e se tornar um dos seus maiores expoentes?

 

Referências

Ferenczi, S. (1990). Diário clínico (A. Cabral, Trad.). São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Figueiredo, L. C. & Ulhoa Cintra, E. (2004). Lendo André Green: o trabalho do negativo e o paciente limite. In M. Rezende Cardoso (Org.), Limites (pp. 13-58). São Paulo: Escuta.         [ Links ]

Freud, S. (1975a). Más allá del principio de placer. In S. Freud, Obras completas (J. L. Etcheverry, Trad., Vol. 18, pp. 1-62). Buenos Aires: Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1920)        [ Links ]

Freud, S. (1975b). Proyecto de psicología. In S. Freud, Obras completas (J. L. Etcheverry, Trad., Vol. 1, pp. 323-446). Buenos Aires: Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1950[1895]         [ Links ]).

Freud, S. (1975c). Tres ensayos de teoría sexual. In S. Freud, Obras completas (J. L. Etcheverry, Trad., Vol. 7, pp. 109-222). Buenos Aires: Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1905)        [ Links ]

Freud, S. (1975d). El yo y el ello. In S. Freud, Obras completas (J. L. Etcheverry, Trad., Vol. 19, pp. 1-66). Buenos Aires: Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1923)        [ Links ]

Green, A. (2003). A intuição do negativo em O brincar e a realidade. In J. Abram (Ed.), André Green e a Fundação Squiggle (M. Lopes, Trad., pp. 69-86). São Paulo: Roca.         [ Links ]

Kahtuni, H. C. & Paraná Sanches, G. (2009). Dicionário do pensamento de Sándor Ferenczi. Rio de Janeiro: Elsevier; Campus.         [ Links ]

Leclaire, S. (1977). Psicanalisar (D. Checchinato & S. J. de Almeida, Trads.). São Paulo: Perspectiva. (Trabalho original publicado em 1968)        [ Links ]

Lejarraga, A. L. (2012). O amor em Winnicott. Rio de Janeiro: Faperj; Garamond.         [ Links ]

Naffah Neto, A. (2007a). A noção de experiência no pensamento de Winnicott como conceito diferencial na história da psicanálise. Natureza Humana, 9(2),221-242.         [ Links ]

Naffah Neto, A. (2007b). A problemática do falso self em pacientes de tipo borderline: revisitando Winnicott. Revista Brasileira de Psicanálise, 41(4),77-88.         [ Links ]

Naffah Neto, A. (2012). Sobre a elaboração imaginativa das funções corporais: corpo e intersubjetividade na constituição do psiquismo. In N. Coelho Jr., P. Salem & P. Klatau (Orgs.), Dimensões da intersubjetivi-dade (pp. 39-56). São Paulo: Fapesp/Escuta.         [ Links ]

Winnicott, D. W (1964). The child, the family and the outside world. Harmondsworth; Middlesex: Pelican Book.         [ Links ]

Winnicott, D. W (1971). Playing and reality. London; New York: Routledge.         [ Links ]

Winnicott, D. W (1988). Human nature. London: Free Association Books.         [ Links ]

Winnicott, D. W (1990a). The capacity to be alone. In D. W Winnicott, The maturational processes and the facilitating environment (pp. 29-36). London: Karnac (Trabalho original publicado em 1958)        [ Links ]

Winnicott, D. W (1990b). The theory of parent-infant relationship. In D. W Winnicott, The maturational processes and the facilitating environment (pp. 37-55). London: Karnac. (Trabalho original publicado em 1960)        [ Links ]

Winnicott, D. W. (1992a). Joseph Sandler: comment on the concept of superego. In D. W. Winnicott, Psycho-analytic explorations (pp. 465-473). Cambridge, MA: Harvard University Press. (Trabalho original publicado em 1960)        [ Links ]

Winnicott, D. W. (1992b). Primitive emotional development. In D. W Winnicott, Through paediatrics to psychoanalysis (pp. 145-156). London: Karnac. (Trabalho original publicado em 1958)        [ Links ]

Winnicott, D. W (1999). The spontaneous gesture: selected letters of D. W Winnicott. London: Karnac. (Trabalho original publicado em 1987)        [ Links ]

 

 

Correspondência:
Alfredo Naffah Neto
Rua Dr. Alceu de Campos Rodrigues, 309, conj. 73
04544-000 São Paulo, SP
Tel: 11 3045-3082
naffahneto@gmail.com

Recebido em 09.12.2013
Aceito em 14.08.2014

 

 

1 A primeira versão deste texto teve a leitura crítica das colegas e amigas psicanalistas Elisa Ulhoa Cintra e Elsa Oliveira Dias, a quem agradeço. Seus questionamentos e dúvidas, relativos ao texto, ajudaram-me bastante na sua reelaboração.
2 Sobre o processo de elaboração imaginativa das funções corporais, cf. Naffah Neto, 2012.
3 É evidente que a nossa ciência, materialista e positivista, pensa na morte como um acabar completo de qualquer possibilidade de vida. Esse não é, porém, o ponto de vista do budismo, do espiritismo e de tantas outras teorias que circulam por aí. Eu, particularmente, sustento uma postura agnóstica com relação a esse tema.
4 Ferenczi, nos seus últimos escritos, da década de 1930, e especialmente no seu Diário clínico (1990), foi um dos primeiros a postular a compulsão à repetição, no contexto transferencial, como parte de processos regressivos com a finalidade de garantir a elaboração do trauma num contexto ambiental mais propício (cf., nesse sentido, os verbetes "regressão terapêutica" e "regressão traumática" em Kahtuni & Paraná Sanches, 2009, pp. 322-326).
5 O inconsciente recalcado somente se inicia, segundo Winnicott, quando a criança já consegue distinguir fantasia de realidade, podendo, então, recalcar as fantasias sempre que elas gerem uma angústia insuportável. Aí aparece, sem dúvida nenhuma, uma influência kleiniana (para quem o inconsciente é pensado como formado, essencialmente, pelo que ela denominava phantasias, diferentemente de Freud, para quem o recalque se dava primordialmente sobre lembranças). Entretanto, para Klein, as phantasias (inconscientes) existem desde o início, como traduções diretas do instinto, e no seu pensamento a noção de recalque perde, um pouco, a importância, sendo então retomada por Winnicott. Contudo, para Winnicott, conforme tentarei evidenciar ao longo do texto, as primeiras memórias são essencialmente marcas corporais, impressões puramente sensoriais, fisiológicas, que não se articulam ao seu correlato psíquico enquanto psique e corpo não se juntam no processo que ele denominou personalização. Dessa forma, essas puras impressões sensoriais, desprovidas de qualquer correlato psíquico, nos primeiros tempos, não podem ser recalcadas (isso pode ter alguma correlação com a afirmação freudiana de que somente representações podem ser recalcadas, muito embora Winnicott não utilize a noção de representação).
6 Esse é, a meu ver, o principal entrave às tentativas de interpretação da teoria winnicottiana a partir de fenomenologias diversas (como Husserl, Heidegger etc.).
7 É importante salientar, como, aliás, tenho feito em vários artigos, que o termo pulsão é totalmente estranho à psicanálise inglesa (que sempre traduziu o alemão Trieb pelo termo inglês instinct, ao contrário da proposta lacaniana, que sugere o termo francês pulsion para distinguir os termos alemães freudianos Trieb e Instinkt). James Strachey, o tradutor de Freud em língua inglesa, entendia que Trieb e Instinkt são sinônimos, seguindo a tradição da filosofia alemã do final do século XIX (incluindo Nietzsche). Mas, para além das questões de tradução, Winnicott nunca se guiou por nenhuma das teorias pulsionais (ou instintivas) de Freud: nem pela primeira nem pela segunda. Winnicott sempre falou em instintos, no plural e sem quaisquer categorizações.
8 Nas mamadas, o bebê experimenta um sentimento incipiente de si mesmo que, ao mesmo tempo, passa a vir eivado de sensações de prazer. Isso pode ir sendo experimentado e registrado graças a essa integração momentânea entre psique e corpo presente nos estados excitados.
9 Nesse sentido, é possível dizer que a noção de elaboração imaginativa das funções corporais desempenha, na teoria winnicottiana, um papel homólogo àquele que cumpre o conceito de rêverie na teoria de Bion. Entretanto, para Winnicott, é o próprio bebê, sustentado pela mãe, quem realiza a elaboração imaginativa, enquanto que, para Bion, é a mãe quem realiza as funções de rêverie para o bebê.
10 Um exemplo típico do que estou denominando de sentido psíquico é a constituição do seio como aquilo que sacia (ou não) a fome, ou seja, o sentido que adquire o seio, na sua articulação com a fome, por meio da experiência. Ou o colo da mãe, como aquele que sustenta (ou não) o corpo do bebê, produzindo medo de cair ou conforto. Ou seja, sentido designa aí mais uma direção geral (discriminativa do objeto, como suficiente ou insuficientemente bom) do que uma significação, no sentido mais preciso do termo.
11 Winnicott postulava psique e corpo como entidades integradas numa totalidade psicossomática nos indivíduos saudáveis, muito embora irredutíveis uma à outra. Teve pacientes psicóticos que não habitavam o corpo, vivendo em partes isoladas dele - uma de suas pacientes, por exemplo, habitava a região dos olhos e sentia todo o restante do corpo como uma máquina estranha - ou mesmo de forma totalmente desencarnada. Por isso, postulou a alocação da psique no corpo como um processo (denominado personalização) que pode vir a acontecer nos desenvolvimentos saudáveis, realizar-se apenas parcialmente, ou ainda não se realizar, nas grandes patologias.
12 Mesmo assim, muitos dos acontecimentos de cunho traumático permanecem sem sentido psíquico evocável, dado que o falso self protetor - por meio de uma cisão - impede que adquiram estatuto psíquico, bloqueando a sua experiência e consequente elaboração imaginativa (permanecendo esses acontecimentos numa condição de puras marcas corporais desprovidas de sentido). Além disso, se o acontecimento ocorre num período em que a criança ainda não é capaz de dar forma a ele via pensamento, ele permanece num estado não configurável, não representável. Assim, somente pode vir a adquirir uma configuração e um sentido psíquico na relação transferencial com o analista.
13 Grosso modo, Winnicott via a agressividade do bebê como ligada à motilidade infantil, presente, em parte, no impulso amoroso originário ligado à amamentação (nos estados excitados) e, em parte, nos processos de oposição sensorial entre o corpo infantil e o corpo materno (nos estados relaxados). Uma boa amamentação e uma boa sustentação corporal do bebê (envolvendo tônus muscular) ajudam numa apropriação desses impulsos pelo self infantil nos primeiros tempos. O restante do processo, no entanto, será realizado no estágio do concern (mantenho, aqui, o termo concern em inglês devido à sua difícil tradução para o português).
14 Winnicott via como uma das principais aquisições da elaboração do complexo de Édipo, além das normatizações da sexualidade (pela interdição do incesto), a sustentação psíquica da ambivalência afetiva, ligada ao odiar e amar uma mesma pessoa (tanto o pai quanto a mãe, já que o complexo de Édipo é sempre duplo, muito embora uma das formas seja a dominante).
15 Pode-se, sem dúvida nenhuma, tentar estender artificialmente a noção de prazer erótico ad infinitum, por meio de um apelo à dimensão econômica da metapsicologia freudiana; então, tudo o que implicar alguma redução (ou alteração) do nível de excitação pulsional será considerado prazer, incluídas aí as cópulas realizadas com a finalidade de aliviar o terror de desintegração (tão comum em pacientes de tipo borderline). Contudo, é forçoso também admitir que, com esse estiramento, o conceito de prazer vai perdendo a sua consistência, até chegar a não significar mais quase nada.
16 Trata-se da paciente relatada no cap. 1 do livro Playing and reality (Winnicott, 1971, pp. 20-25).
17 Para uma descrição mais completa desse quadro psicossomático, recomendo a leitura de Figueiredo & Ulhoa Cintra, 2004, parte IV.
18 Convém assinalar, aliás, que verdadeiro e falso, no vocabulário winnicottiano, não realizam nunca qualquer distinção de cunho metafísico, mas possuem um âmbito puramente clínico (descrevendo os sentimentos de pacientes com relação à própria vida, sentida por alguns como verdadeira, por outros como falsa). Green nunca levou em consideração essa distinção clínica realizada por Winnicott, ou seja, nunca trabalhou com as noções de falso e verdadeiro self.
19 Embora isso já tenha sido dito anteriormente, relembro aqui o leitor de que o bebê recém-nascido vive totalmente fundido ao meio ambiente; portanto, para ele, não existe outrem, ou seja, tudo que é vivido na sua experiência é sentido como um prolongamento seu, daquilo que Winnicott denominou sua área de onipotência. Nesse sentido, a criação de uma marca sensual vinda de fora, da sexualidade adulta, ou possui um caráter não intrusivo, que lhe permite ser incorporada pela área de onipotência infantil sob a forma de cuidado - isto é, como se ela fosse uma criação do próprio bebê -, ou necessariamente terá um cunho traumático, revelando ao bebê prematuramente a existência da alteridade.
20 Existem os casos mais flagrantes de abuso sexual da criança por parte do adulto - e que, muitas vezes, podem levar à esquizofrenia -, amplamente relatados por Sándor Ferenczi no seu Diário clínico (1990). Como exemplo, cito o da paciente R. N., violentada várias vezes por adultos quando criança e descrita como um caso de esquizofrenia progressiva (Ferenczi, 1990, pp. 38-41). Mas, além desse tipo de abuso sexual mais aberto e grosseiro, existem aqueles mais sutis - geralmente disfarçados de amor -, que mereceriam um estudo à parte e que este artigo não tem condições de contemplar, por questões de espaço e tempo.
21 Por exemplo, com o crescimento, a criança tem de ser desmamada e abrir mão do erotismo oral ligado à mãe, caso em que ele será recalcado ou sublimado, buscando outro tipo de satisfação.
22 São essas considerações que levaram Ana Lila Lejarraga a realizar uma pesquisa interessantíssima de pós-doutorado, supervisionada por mim, e que deu origem a um livro que tem por tema o amor em Winnicott (Lejarraga, 2012). Uma de suas conclusões é a de que o amor, para Winnicott, tem de ser pensado como uma montagem, na qual concorrem diferentes processos ligados tanto às afinidades egoicas quanto aos desejos sexuais.

Creative Commons License