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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.48 no.4 São Paulo set./dez. 2014

 

ARTIGOS TEMÁTICOS: SEXUALIDADE E GÊNERO

 

As neossexualidades e a discussão do modelo binário

 

Neosexualities and the discussion of the binary model

 

Las neosexualidades y la discusión del modelo binario

 

 

Susana Muszkat1

Membro efetivo e docente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Mestre pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). Autora do livro Violência e masculinidade (2011, Casa do Psicólogo)

Correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo propõe uma reflexão sobre as chamadas neossexualidades e procura: (1) identificar o porquê de sua manifestação mais expressiva na atualidade a partir de um contexto psico-histórico-cultural; (2) discutir as repercussões destas transformações na construção das subjetividades e o consequente impacto nos vínculos familiares; e (3) abordar como o questionamento do conhecido modelo binário da sexualidade exige, do psicanalista comprometido com uma verdadeira função analítica aberta à investigação, um deslocamento teórico, arriscando questionar teorias psicanalíticas consolidadas.

Palavras-chave: neossexualidades; psiquismo ampliado; modelo binário; complexidades; novas vincularidades.


ABSTRACT

The author proposes a reflection on the so-called neosexualities and attempts to: (1) identify motives for their more expressive manifestations in current times, based on a historical, cultural and psychological contextualization; (2) discuss the repercussions of such transformations in the construction of subjectivity as well as their impacts on family links; (3) approach how the questioning of the familiar binary model of sexuality requires the psychoanalyst, committed to a true analytical function which is open to investigation, to displace himself from theories, running the risk of questioning consolidated psychoanalytical theories.

Keywords: neosexualities; expanded psyche; binary model; complexities; new forms of links.


RESUMEN

Este trabajo propone una reflexión sobre las llamadas neosexualidades y busca: (1) identificar la razón de su manifestación más expresiva en la actualidad a partir de un contexto psico-histórico-cultural; (2) discutir las repercusiones de estas transformaciones en la construcción de las subjetividades y el consiguiente impacto en los vínculos familiares; y (3) abordar cómo el cuestionamiento del conocido modelo binario de la sexualidad requiere del analista, comprometido con una verdadera función analítica abierta a la investigación, un desplazamiento teórico, arriesgando cuestionar teorías psicoanalíticas ya consolidadas.

Palabras clave: neosexualidades; psiquismo ampliado; modelo binario; complejidades; nuevas vincularidades.


 

 

Um jovem homem adulto, casado, leva pela primeira vez sua filhinha bebê à consulta pediátrica. A recepcionista cumprimenta-o e, preenchendo a ficha de identificação de paciente, pergunta:

- Você é o pai desta menininha?

- Sim - responde orgulhoso.

Em seguida, a mesma recepcionista:

- Nome da mãe?

- Ela não tem mãe, tem dois pais - responde firmemente à pergunta para a qual vinha se preparando desde que ele e seu marido iniciaram o projeto filho.

Segue-se um certo constrangimento geral, da recepcionista e das outras pessoas presentes; é uma cena não convencional e, por isso, desconcertante. A recepcionista não tem registro pessoal, simbólico, afetivo para esta situação, que lhe é inusitada. Responde então:

- Ah, que lindo! - numa tentativa de reequilibrar o desequilíbrio de seu repertório.

Contudo, ao me relatar essa situação - inédita tanto para ele como para os demais presentes -, a mim que venho acompanhando-o há alguns anos e testemunhando a maneira como cuida de sua filha, sua "preocupação materna primária", sua conexão e atenção para com esta bebê, seus relatos das vivências cotidianas e familiares, angústias, temores... respondo-lhe, então, com uma pergunta que naquele momento impõe-se a mim como absolutamente essencial:

- Mas você acha que sua filha não tem mãe?

O que pensamos quando dizemos que alguém não tem mãe? Nossa representação de alguém sem mãe é a de uma criança órfã daquela pessoa que lhe seria imprescindível na construção de uma mente, na construção de sua subjetividade. A mãe é aquela pessoa responsável pelo holding, por exercer funções de reverie, ou seja, aquela capaz de conter ou acolher dentro de si as angústias, violências pulsionais e frustrações do filho, provendo-o de condições para a construção de um aparelho de pensar pensamentos, tolerar e transformar sensações em sentido.

É ainda aquela responsável por cuidar do bebê em seu estado de dependência absoluta, em seu desamparo fundamental inerente à condição humana, sem a qual o bebê sucumbiría, como lemos em Freud (1921/1969).

Mas, se meu paciente é quem provê tudo isto para sua bebê, o que justifica dizer que sua filha não tem mãe?

Abriu-se a partir daí uma nova porta para interessantes questionamentos, em que eu e meu cliente passamos a conversar sobre suas experiências - experiências estas para as quais não há verdades ou modelos consolidados na cultura -, procurando encontrar o que faz sentido para ele. É um território novo e desconhecido que vai sendo construído, revisto, pensado, no correr das sessões.

Alguns autores do universo acadêmico voltados aos estudos de gênero, bem como alguns psicanalistas, trazem contribuições interessantes ao tema do que aqui denomino de neossexualidades.2

Um traço comum a esses estudos é seu caráter especulativo, inconclusivo, tendo primordialmente como mérito expor e discutir as possibilidades de expressão do humano no que diz respeito tanto à construção da própria identidade quanto à orientação na escolha de objeto.

Proponho, no contexto atual, usar neossexualidades para designar a ampla gama de expressão das sexualidades, as distintas formas de vinculação afetiva, não restritas ao sistema binário da heterossexualidade normativa. Entendo as neossexualidades como forma de expressão da subjetividade que atende ao sujeito-de-desejo naquilo que lhe é autêntico e singular. Isto é, não submetido de maneira permanente a modelos hegemonicamente naturalizados como sadios.

É nesse sentido que Judith Butler (2004) discorre sobre a problemática trans (transgênero, transexual), território tão complexo quanto não consensual, dentro e fora das comunidades trans. Ao falar de gênero, entenda-se identidade de gênero, designação autoatribuída (como são as informações sobre raça e cor nos questionários do censo), para além do que é masculino ou feminino, inserida num contexto de problemática política, que inclui toda a vasta gama de posicionamentos trans como formas de existir do sujeito. Butler esclarece que transgénero passa a ser o termo coloquialmente utilizado de forma ampla e indistinta por aqueles que se identificam como homens (de mulher para homem) ou como mulher (de homem para mulher), ainda que tenham ou não se submetido à cirurgia de redefinição sexual, ou que façam ou não uso de hormônios (p. 6). O que predomina é a singularidade dos corpos sexuados e do desejo. Estes grupos se encontram numa escala social de ainda maior exclusão e discriminação - a patologização como marca principal de sua exclusão do sistema normativo mais amplo - do que os grupos de gays e lésbicas. Isso possivelmente se deve aos movimentos políticos dos últimos (que antecederam aos trans), conferindo-lhes, se não completa aceitação social, certamente o reconhecimento e a garantia de direitos na sua condição de cidadãos.

Se isso não é pouca coisa, temos ainda dados obtidos através de longo e aprofundado estudo crítico da literatura sobre homoparentalidades masculinas entre os anos de 1979 e 2011 (Gato & Fontaine, 2014), que revelam a complexidade do que significa estar fora da corrente de normatividade social.

Os preconceitos enfrentados por estes homens provêm de estereótipos externos (sociais/culturais/familiares) e internos (intrapsíquicos). Alguns dos externos: homens são menos ligados aos filhos e, portanto, menos aptos do que homossexuais mulheres; homens são menos talentosos no cuidado com crianças do que as mulheres; ou ainda risco de pedofilia e instabilidade nas relações afetivas duradouras. Há também o preconceito dos grupos LGBT contra os gays que se estabelecem num modelo tido como tradicionalmente heterossexual.

Quanto aos internos, os estudos revelam sentimentos e vivência de inadequação e sofrimento por não corresponder ao que é prevalente na sociedade, experimentando um conflito entre um ideal de ego apoiado no modelo social e aquilo que lhe é legítimo pessoalmente. Cito Gato e Fontaine, quando se referem a uma pesquisa de Berkowitz e Masiglio (2007): "assim, ao entrarem num domínio tradicionalmente feminino, os homens que exercem um papel parental sem a presença de uma mulher violam as expectativas tradicionais acerca do gênero masculino" (2014, p. 314).

Certamente, pensamos em mãe como mulher - sempre foi assim. Chamamos um pai afetivo de "pãe", ou ainda "um pai que é uma mãe". São denominações que mereceriam revisitação?

A linguagem não dispõe de termos para designar tais situações, que nos são novas. A linguagem, como símbolo que se constrói a partir da falta, terá que inventá-los, já que é de falta que se trata.

Da mesma forma, a literatura psicanalítica é ainda bastante escassa no estudo das neossexualidades. Encontramos, contudo, principalmente na teoria das relações vinculares, a noção de um psiquismo ampliado, em que a constituição do sujeito se dá no interjogo complexo entre o intrapsíquico, o interpsíquico e o transubjetivo (o que nos é transmitido pela cultura). A incorporação da noção de psiquismo ampliado nos fornece recursos fundamentais para pensar esses novos fenômenos no âmbito da psicanálise, sem que tenhamos que relegá-los exclusivamente à psicologia social ou à sociologia.

Ainda assim, deparamo-nos com uma problemática nova que suscita em nós novas perguntas, como as que formulo a partir das vinhetas clínicas deste trabalho.

Em tempo: a pesquisa sobre homoparentalidade acima mencionada conclui sua revisão afirmando que, embora ainda sejam poucos os estudos sobre as famílias formadas por homens gays, estes revelam que não há motivo para preocupação nem para alarme social (p. 319). Esta é também a afirmação feita por Roudinesco (2003) em seu A família em desordem.

 

Pensando sem receita

Não são raros os alertas (McDougall, 1986; Mondrzak, 2008; Puget & Muszkat, 2009) para o risco de sermos tentados a usar teorias já consolidadas, com as quais nos identificamos e sobre as quais nos sustentamos em nossa identidade psicanalítica, arriscando comprometer o essencial do olhar e da escuta psicanalítica: abertura para o novo, a construção de sentidos legítimos para cada indivíduo no ineditismo da cena vivida, provendo-o de liberdade para exercer-se em sintonia consigo mesmo.

Desde McDougall, as neossexualidades vêm obrigando os psicanalistas a refinar seus instrumentos teóricos para dar conta da clínica. Em seu artigo "Identificações, neonecessidades e neossexualidades" (1986), ela já dizia:

Avanços teóricos são fruto de incontáveis experiências clínicas que nos estimularam a reconhecer nossos impasses teóricos e questionar nossos conceitos já existentes. Além do mais, há o risco sempre presente de que nossas crenças teóricas influenciem nossa técnica de maneira indevida, de forma que o processo analítico de um paciente acabe sendo grandemente marcado pela necessidade de provar verdadeiras as expectativas teóricas do analista. (McDougall, 1986, p. 19)

No tocante ao estudo das homossexualidades, em um artigo publicado recentemente na Revista Brasileira de Psicanálise, Oswaldo Ferreira Leite Netto afirma:

A psicanálise precisa ser mantida e defendida em sua especificidade radical. O exame das questões trazidas pela homossexualidade oferece uma oportunidade para questionamentos. A instrumentalização da psicanálise a serviço de moralismes me parece inaceitável e deve ser combatida (2014, p. 88).

Do meu lado, gostaria de propor que as neossexualidades, que agora incluem também todos os transgêneros, bem como as homoparentalidades, igualmente obrigam o analista a pensar sem receita, porém firmemente ancorado tanto no método quanto numa conceituação de psiquismo ampliado.

Desde o mestrado, venho sentindo a necessidade de incluir a dimensão da cultura no âmbito do psíquico. Na época, trabalhava havia uns dez anos coordenando grupos de discussão de gênero masculinos em uma ong que atendia famílias em situação de violência. Não era possível dar conta da compreensão das práticas violentas, tanto masculinas quanto femininas, sem incluir em meu pensamento as representações sociais e culturais. A escolha do Departamento de Psicologia Social na usp foi a maneira que encontrei para unir o instrumental psicanalítico de que já dispunha às questões da cultura, seus paradigmas e o peso que isso representa na formação da subjetividade do indivíduo. Os estudos das relações de gênero abriram para mim o campo para pensar num psiquismo ampliado, submetido e constituído a partir de três instâncias: o intrapsíquico, o intersubjetivo e o transubjetivo, ou seja, a cultura.

O paciente que abre este texto me obriga a pensar e a questionar o que é um pai e o que é uma mãe do ponto de vista psicanalítico. Neste texto, apresento mais perguntas do que respostas.

 

A desconstrução de modelos e as reconstruções ampliadas

Nos anos 1960-70, os movimentos feministas, a participação das mulheres na renda familiar, o advento da pílula como primeira desvinculação de sexualidade e reprodução revolucionaram os modelos da chamada "família moderna", que até então regiam as relações entre homens e mulheres, dando lugar ao que se passou a denominar "família contemporânea" ou "pós-moderna" (Roudinesco, 2003).

Seguiram-se, nos anos 1980, os movimentos de gays e lésbicas, que, a partir do surgimento da aids e do consequente aprofundamento nos estudos das relações de gênero, propuseram a desconstrução de valores tradicionais da cultura, quanto ao que se convencionou tomar como "natural" ou "próprio" de homens e mulheres (Muszkat, 2011).

Os estudos de gênero vieram questionar a naturalidade de conceitos fortemente enraizados na cultura, como a heterossexualidade ou o lugar atribuído ao feminino em função de sua condição reprodutiva; ou seja, questionam-se tanto o lugar quanto os papéis naturalmente atribuídos a homens e mulheres em função de sua constituição biológica e de sua capacidade reprodutiva (Muszkat, 2011).

Não parece haver discórdia entre psicanalistas de que o sujeito não se constitui sem um outro que o subjetive. Mas a crença naturalizada de que este outro deva ser uma mãe, de sexo feminino, é algo cuja necessidade de questionamento se nos impõe.

Badinter, em seu controverso livro Um amor conquistado: o mito do amor materno (1980), já questionava o tão propagado e instituído instinto materno, perguntando-se: será ele um instinto inerente à condição feminina ou um mito construído social e historicamente? E, se construído, com que finalidade?

O paciente antes mencionado é maternal ainda que biologicamente seja homem. Desejo vs. Biológico? Pulsão vs. Instinto?

Por ser biologicamente homem, ele não tem óvulos, mas tampouco os tem uma mulher de idade incompatível com uma primeira gravidez a quem seu médico sugere que engravide com o espermatozoide do marido e o óvulo de uma doadora mais jovem, implantados em seu útero. O código genético do bebê será uma combinação do de seu marido com o de uma doadora desconhecida. O seu próprio código genético não fará parte do bebê. A genética e os novos procedimentos reprodutivos são da área da biologia; o desejo de ter um filho e constituir família não. Do ponto de vista biológico, a situação desta mulher e a do jovem homem são a mesma!

Ao mesmo tempo que Freud sempre procurou encontrar bases biológicas que sustentassem suas construções sobre a psique humana, é também em sua obra que encontramos a mais clara desvinculação do biológico e exógeno daquilo que é simbólico, do universo das representações, manifestado pelas fantasias, sonhos, atos falhos, sintomas. O corpo regido exclusivamente pelo biológico não se sustenta no humano, sendo este movido pelo desejo, ativado pelas pulsões.

Laplanche, por sua vez, questionará a centralidade do sujeito sobre si mesmo, assim como proposto por Freud, pondo em xeque a ideia de um núcleo do inconsciente filogeneticamente determinado (Hartke, 2014).

Contrariando a tese da filogênese, afirma a imprescindibilidade de um outro para a constituição de um ser humano (Laplanche, 1997). Citando Hartke (2014): "Laplanche [...] restabelece a 'prioridade do outro' na psicanálise" (p. 85) e na constituição do sujeito, que teria então, como matriz fundante do inconsciente, as mensagens inconscientes transmitidas pelo adulto cuidador e decodificadas, também inconscientemente, pela criança.

Entendo que essa formulação nos fornece subsídios que levam à noção de um psiquismo ampliado, de múltiplas determinações, inserido numa teia de transmissão de elementos, significados ou não, que se estende para além e aquém do sujeito, recebendo deste o colorido de sua metabolização singular intrapsíquica que o distinguirá como sujeito ao mesmo tempo único e vinculado.

Mais uma vez, vivemos tempos de "abalos" paradigmáticos. Questionam-se modos de vinculação entre pessoas, de organização familiar, de projetos de vida, de produção e de trabalho, de expressão da sexualidade, de reprodução humana, de filiação.

O que é uma mãe? O que é ter uma mãe? O que é uma família? O que é ter um pai? Ou não tê-lo e ter duas mães? Será a falta de um pai biologicamente masculino impeditivo da lógica da interdição? Da entrada na cultura que pressupõe um terceiro?

A ideia de que o pai insere a criança num universo de lei e pertença, conceito fundamental na teoria psicanalítica, pode ser reduzido ao pai biológico? Ou esta é uma noção concreta que não condiz com o das representações? A função paterna é dada pelo biológico?3 O filho de duas mães estará impedido de adentrar o Édipo?

Estarão as teorias psicanalíticas ameaçadas como instrumento de compreensão das relações humanas? Não podemos, como psicanalistas, negar os movimentos humanos e as transformações do mundo a fim de garantir a idoneidade de nossas teorias. Tampouco podemos dispensar as teorias a fim de que não nos sintamos obsoletos.

Silvia Bleichmar (2014) propõe uma maneira de pensar essas questões a partir da diferenciação do que ela denomina produção da subjetividade e constituição do psiquismo. Ouçamos o que ela diz:

Concebendo-se a produção de subjetividade como os modos históricos, sociais e políticos instituintes, de formas de organização dos sistemas representacionais, a pergunta é: o que haverá caducado do que vimos carregando em um século de psicanálise a respeito das formas de produção da subjetividade e o que segue sendo vigente quanto aos ordenadores do funcionamento psíquico? (p. 13)

Ou seja, a permanência de modelos versus modos históricos de funcionamento.

A ideia de sexualidade e família se construiu sobre um conceito binário em que as diferenças se expressam nos pares de opostos: homem/mulher, homossexual/heterossexual, permitido/proibido, certo/errado. A condição binária privilegia uns sobre outros, incluindo uns e excluindo outros, o que não condiz com a noção de complexidade intrínseca às famílias atuais (Moscona, 2008).

Ouvindo outros pacientes, tão frequentes nas clínicas de todos nós, cujas famílias se compõem de variadas formas: irmãos comuns de pai e mãe, irmãos só de mãe, outros só de pai, madrastas, padrastos, pais, mães...

Uma paciente me diz:

- Viajei com a minha família.

Pergunto-lhe:

- Com a família? E quem era?

Ela me responde:

- Eu, meu pai, a mulher dele e meu irmãozinho - filhinho deles -, o filho mais velho do meu pai e meu irmão por parte de mãe.

E complementa logo em seguida:

- Que bagunça, né?!

Identifico no comentário desta jovem, moderna e nada convencional, os traços de um ideal de estrutura ou composição familiar que a deixa aquém dos valores normativos da cultura, que a coloca como uma "fora da norma", uma estranha, "fora do desejável". Os valores normativos são impeditivos do sentimento de valor próprio, ainda que ela tenha relatado imenso prazer em ter estado com a família "bagunçada". Serão as expectativas idealizadas de uma família "não bagunçada", ou "normal", alguns dos possíveis obstáculos que vêm impedindo esta jovem adulta de estabelecer vínculos criativos e gratificantes para si?

Temos privilegiado, até os dias de hoje, o complexo de Édipo como elemento principal de estruturação do indivíduo. É o complexo instaurador do terceiro na relação dual do bebê com sua mãe, que marca as diferenças sexuais entre pai e mãe, atravessa a criança pela interdição, sendo o caminho de entrada na cultura, da instituição de um sujeito desejante (sujeito da falta) e da simbolização.

Sem considerarmos as diferenças sexuais, cairá por terra este conceito central da psicanálise?

Novamente remeto a Bleichmar, que, questionando o caráter absoluto do complexo de Édipo para tratar de lógicas não mais exclusivamente pautadas pela equação fálico/castrado, ressalta o caráter de proibição do gozo intergeracional contido neste conceito, que se mantém como constitutivo imprescindível do psiquismo (2014, p. 14).

Serão as diferenças dadas exclusivamente pelo sexo?

Como é possível ir se constituindo o desejo?, não do sexo, mas do outro? O outro como diferente em sua condição de ajenidad (termo cunhado por Berenstein y Puget), naquilo que tem de radical singularidade?

Moscona (2008) sugere que o paradigma da complexidade dá lugar a uma causalidade ampliada em que o complexo de Édipo resulta em um traço a mais dentro de um conjunto de outros traços possíveis. Desse modo, a subjetividade se constitui a partir de múltiplas regulações de maneira permanente.

Kancyper (2004) nos abre portas ao dar corpo a estes outros traços em suas postulações sobre as relações fraternas e diferenças geracionais.

Diante da multiplicidade de arranjos possíveis na composição familiar, como iremos pensar as formas de estruturação e subjetivação do sujeito? Os novos arranjos impostos pelo desejo dos sujeitos privilegiam projetos pessoais e amorosos temporários em lugar de projetos familiares tradicionais. Também se alteram os modos de reprodução, dissociando sexualidade e reprodução. O filho entra num outro registro de desejo? Como entender?

"Quer queiramos, quer não, no mundo em que vivemos surgem, visíveis e legalizadas, outras formas de relação entre os sexos, novas modalidades de aliança e filiação" (p. 82), constata Oswaldo Ferreira Leite Netto.

Estamos diante de um "admirável e perturbador mundo novo". As relações interpessoais e vinculares se tornaram mais complexas e nos impõem o questionamento quanto ao que se convencionou pensar como "natural", frequentemente entendido como universal. A naturalização leva a modelos normativos incompatíveis com o pensar psicanalítico.

Um deslocamento dos estabelecidos lugares hegemônicos, idealizados, se faz necessário, obrigando-nos a considerar novos modelos, criando novos estruturantes. Ampliam-se as expressões e manifestações do existir sexual e das formas de vinculação afetiva que exigem reflexão.

Teremos coragem de enfrentar a ameaça imposta pela necessidade de nos deslocarmos e reconfigurarmos nossas crenças e valores? Ou nos restará sacrificar não só os sujeitos em suas práticas originais e singulares como também a psicanálise?

 

Referências

Badinter, E. (1980). Um amor conquistado: o mito do amor materno (W. Dutra, Trad.). Rio de Janeiro: Nova Fronteira.         [ Links ]

Bleichmar, S. (2014). Las teorías sexuales en psicoanálisis: qué permanece de ellas en la práctica actual. Buenos Aires: Paidós.         [ Links ]

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Correspondência:
Susana Muszkat
Rua Jericó, 255, conj. 68
05435-040 São Paulo, SP
Tel: 11 3031-9232
smuszkat@terra.com.br

Recebido em 11.11.2014
Aceito em 25.11.2014

 

 

1 Agradeço a Marion Minerbo pela leitura cuidadosa e crítica, que muito contribuiu para a escrita deste trabalho; às amigas Thais Blucher e Raya Zonana, pela leitura generosa e pelo incentivo para publicação; e a Janine Puget, pela disponibilidade e pela conversa frutífera.
2 Expressão cunhada por Joyce McDougall em 1986 para descrever tipos de práticas sexuais que observava em sua clínica, nos quais constatava a necessidade que certas pessoas tinham de criar cenários eróticos específicos e imprescindíveis, altamente investidos e singulares.
3 Sobre o tema da função paterna, sugiro o artigo de Marion Minerbo intitulado "Assassinato e sobrevivência do pai" (2014), apresentado no III Colóquio de Psicanálise com Crianças, cujo tema foi Onde está o pai?.

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